O advogado Paulo Fonteles foi assassinado por defender posseiros
Um dos crimes de maior impacto no Pará completou 25 anos no dia 11. Nesse dia, em junho de 1987, Paulo Fonteles de Lima foi morto com três tiros na cabeça. A primeira bala o matou na hora. As duas outras foram apenas para não deixar dúvida. O pistoleiro que o executou era profissional, um nordestino recrutado na Baixada Fluminense por fazendeiros da conflagrada região sul do Estado, recordista em violência rural.
Aos 38 anos, Fonteles era membro de uma grande família estabelecida em Belém, com influência na vida local. Celebrizou-se por ser o primeiro advogado a defender posseiros, os deserdados do “sistema”, que afluíam aos milhares para a Amazônia atraídos pelo canto da sereia da propaganda oficial, de que havia terras para todos.
Não havia. Legiões de nordestinos, presos a sistemas seculares de servidão (e, depois, colonos sulistas), eram levados para as margens da rodovia Transamazônica. O mesmo governo, porém, como se no cumprimento esquizofrênico da ordem bíblica (para que a mão direita não soubesse o que fazia — o bem, não o mal — a esquerda), entregava imensas glebas a um pequeno número de proprietários e empresas.
O resultado: a Amazônia, que devia ser o Éden fundiário, fechou por dentro, com um índice gini de concentração da propriedade maior do que o do próprio Brasil. Ao atravessar seus limites, na esperança de se tornar finalmente um proprietário rural, o colono se via reduzido à condição de posseiro. Sem alguém para defendê-lo, ou se sujeitava mais uma vez a ser expulso e continuar seu roteiro migratório rumo aos extremos — oeste e norte — do país, ou resistia à ordem de despejo e entrava na roda-viva da violência.
Esse ambiente tenso teve uma das suas mais graves explosões em 1976. Exatamente no dia em que os Estados Unidos comemoravam o bicentenário de sua independência, 4 de julho, três cidadãos americanos, donos do maior (e, como sempre, frágil juridicamente) imóvel rural da região da estrada Belém-Brasília, foram mortos por posseiros.
O chefe da família, John Davis, tinha sido coronel da aviação e heroi americano na guerra da Coreia, logo depois da Segunda Guerra Mundial (onde EUA e URSS estiveram próximos de nova conflagração, que viraria guerra ideológica, fria). Tornou-se depois pastor evangélico e foi acusado de praticar o controle da natalidade entre brasileiras. Nada foi provado.
Os órgãos de segurança não tiveram dúvida: alguma organização subversiva e terrorista devia ter incitado o ataque aos gringos. Devia ser para criar embaraços à relação do Brasil com o gigante do norte.
Todos os 16 lavradores que participaram do ataque foram presos em condições sub-humanas e torturados. Não tinham, porém, a mínima ideia sobre a vinculação que lhes era atribuída. Finalmente uma pretora do interior interrompeu a incomunicabilidade ilegal e três advogados puderam vê-los.
Um deles era Paulo Fonteles (outro, também jovem, Gabriel Pimenta, seria assassinado 10 anos depois, em Marabá, também sugestivamente conhecida por “Marabala”). A igreja, já tendo feito a opção preferencial pelos pobres da Teologia da Libertação, contratou Fonteles para se dedicar integralmente à assistência aos posseiros em uma região que era autêntico barril de pólvora.
O vale do Araguaia tinha sido palco da pouco eficiente (mas de grande impacto) guerrilha implantada pelo Partido Comunista do Brasil, entre 1969 e 1974. Desde então ficou sujeita ao carimbo da segurança nacional, atenta a qualquer ameaça que surgisse, real ou (como na maioria dos casos) imaginária.
Fonteles era militante do PC do B. O partido saiu da margem do rio e foi montar um novo tipo de base, já sem veleidades do foco guerrilheiro à moda cubana, na beira da estrada, a mais extensa em território paraense, com mil quilômetros no sentido norte-sul, de Belém à divisa com Mato Grosso.
A igreja sabia desse fato, mas o ignorou. Mesmo porque ninguém queria seguir na aventura de alto risco. É que surgia então a possibilidade de derrubar um autêntico “bate-pau” (informante dos órgãos de segurança), que ocupava como interventor o principal sindicato, o de Conceição do Araguaia.
Tudo indicava que um líder em formação, mais conhecido por Gringo, devido aos seus cabelos alourados, podia derrotar Bertoldo Lira. Raimundo Ferreira Lima foi assassinado em plena época de campanha eleitoral. Sua morte rompeu o controle férreo que o governo exercia desde a extinção da guerrilha. A pequena cidade de Xinguara testemunhou a primeira passeata no interior da Amazônia, com seis mil participantes, em 1980, indignados pelo assassinato.
Com os créditos da sua intensa atividade como defensor dos posseiros em litígio com os proprietários, Paulo Fonteles se elegeu deputado estadual dois anos depois pela legenda do PMDB, que conquistou o governo do Estado, em 1982, com o então oposicionista Jader Barbalho.
Em 1986 Paulo tentou ser deputado federal constituinte, mas lhe faltaram os votos necessários. Sentindo-se traído, abandonou o PMDB e assumiu sua condição de comunista, filiando-se ao PC do B. No mesmo ato, em outro local, sem qualquer registro escrito, foi ditada a sua sentença de morte. Ele perdera o guarda-chuva institucional que o protegia.
O crime foi cometido quando, no lugar do carona, numa caminhonete do irmão, ele esperava pela volta do motorista, num posto de gasolina na região metropolitana de Belém. Era o primeiro crime político em muitos anos na maior cidade amazônica, já então com mais de um milhão de habitantes. Quebrava uma regra não escrita de que na sede dos poderes constituídos esse tipo de violência não seria praticado. A escalada da barbárie deixou de seguir essas suscetibilidades morais.
Os dois pistoleiros que participaram do atentado foram mortos. Um deles, em literal queima de arquivo: seu corpo foi incendiado. O organizador do assassinato, o paulista James Sylvio Vita Lopes, foi preso, quase seis anos depois, levado ao tribunal do júri e condenado a 21 anos de cadeia. Por bom comportamento, cumpriu só um terço da pena. Hoje, aos 64 anos, vive em Jundiaí, em São Paulo.
E os mandantes? Nenhum foi preso. Chegar a um deles seria importante para quebrar a impunidade dos “cabeças” desse tipo de violência e inibir os crimes de encomenda. O assassinato de Fonteles foi o primeiro em que esteve envolvido um consórcio. Não um, mas vários interessados, dos quais um receberia a incumbência de colocar em prática a decisão, por sorteio. Se fosse descoberto, a punição ficaria nele, que seria a barreira.
Mas nem o fazendeiro mineiro Fábio Vieira Lopes foi perturbado. Ninguém foi atrás dele, exceto Antônio Pereira Sobrinho, o autor dos disparos. O pistoleiro foi cobrar a outra metade do pagamento combinado— e nunca mais foi visto.
Nem a data redonda, de um quarto de século do crime, foi suficiente para reabrir o “caso Fonteles”. Mesmo os poucos que se lembraram dele o trataram, 25 anos depois, como página virada da história, capítulo definitivamente escrito. A indiferença ao final do enredo renova a impunidade num momento perigoso, quando os crimes encomendados a pistoleiros para acabar com personagens incômodos voltam a se tornar frequentes no sertão amazônico.