O mundo depois de 11 de setembro

O mundo depois de 11 de setembro

No curso dos tempos modernos, de vez em quando a história revela-se inexorável e errática, assustadora e fascinante. Tudo o que parecia estabelecido, quieto em sua calma, mesmo alheio e distante, de repente pode revelar-se instável, abalado, fora do lugar, estranho. A despeito de que tudo continue aonde estava, quieto em sua calma, de repente já não é mais o mesmo. Modifica-se a sua expressão, significado ou entonação. Tanto é assim, que indivíduos ou coletividades logo são presos. Susto e desespero ou entusiasmo e alucinação.

São muitos os acontecimentos que assinalam tanto continuidades quanto descontinuidades, rupturas e reo-rientações, progressos e decadências, glórias e desilusões. Na vida dos povos e nações, bem como de indivíduos e coletividades, ocorrem acontecimentos que assinalam o possível e o impossível, o evidente e o inexplicável. Em alguns casos o acontecimento assinala nitidamenta que termina um processo, uma época; que se inicia algo desconhecido, podendo ser não só surpreendente, mas terrificante e entusiasmante. É provável que tenha sido assim: em 1492, quando Colombo deu a notícia de que chegou ao outro lado do mundo, logo corrigida por Vespúcio, anunciando o Novo Mundo; em 1789, quando ocorre a notícia da queda da Bastilha; em 1917, quando os bolchevistas tomam o Palácio de Inverno em São Petersburgo; e em 11 de setembro de 2001, quando as imagens divulgadas mundialmente mostram que as torres gêmeas do World Trade Center, em New York, e um dos ângulos do Pentágono, em Washington, estão desabando.

Esta é a idéia: há acontecimentos que adquirem significados e conotações excepcionais, reveladores. São eventos heurísticos, por suas implicações históricas e teóricas. Podem ser vistos como experimentos científicos, já que tornam mais explícitos nexos, continuidades, descontinuidades, tensões e contradições insuspeitas em um momento anterior. É como se fosse uma explosão, atingindo a realidade e o imaginário, de tal maneira que logo se distinguem melhor relações, processos e estruturas de dominação e apropriação recônditos, que não se percebiam. De repente, abalam-se os quadros sociais e mentais de referência de uns e outros, indivíduos e coletividades, em todo o mundo. Quando desabam as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York e um dos ângulos do Pentágono, em Washington, a opinião pública mundial defronta-se com um acontecimento excepcional, altamente revelador, propriamente heurístico. Com ele abrem-se possibilidades insuspeitadas anteriormente para a interpretação de relações, processos e estruturas de dominação política e apropriação econômica, em escala nacional e mundial. Vários nexos sociais, políticos, econômicos e culturais, de permeio a jogos de forças sociais e operações geopolíticas, logo se tornam mais evidentes, visíveis, transparentes, em escala nacional, regional e mundial.

Em um instante, no centro da maior potência mundial, dois dos seus mais notáveis símbolos são agredidos e desmoronam, arruinados. Em um instante, o poder econômico e o poder militar, compreendendo o monopólio da exploração e o monopólio da violência, são postos em causa , deixando de ser intocáveis. São as duas principais alavancas da supremacia das elites governantes e classes dominantes norte-americanos no mundo. Simbolizam as teias, redes ou sistemas com os quais essas elites e classes se associam com elites governantes e classes dominantes da maioria das nações do mundo. Nesse sentido é que o mundo assiste atônito e assustado, surpreendido e fascinado, o desabar de dois pilares do neoliberalismo e do ocidentalismo, isto é, do capitalismo. Em pouco tempo, em todo o mundo, muitos se dão conta de que muita coisa saiu do lugar; o que parecia estabelecido, quieto em sua calma, revela-se desconhecido. De repente instala-se a descontinuidade, instabilidade, aflição, medo, terror. O que parecia um acidente de engenharia, arquitetura ou urbanismo, logo se revela acontecimento histórico, com implicações econômicas, políticas, sociais e culturais. Abala-se o mapa do mundo, movendo-se territórios e fronteiras, expectativas e horizontes, ideais e convicções, glórias e ilusões.

São várias e muito importantes as revelações com as quais se defrontam indivíduos e coletividades, povos e nações, em todo o mundo.

Primeiro, logo fica evidente que está em marcha a globalização do terrorismo. Seja pelas intenções dos seus agentes, assim como pelos efeitos provocados pelos seus atos, bem como pelas reações em geral, particularmente das elites governantes e classes dominantes, em todo o mundo, o ataque terrorista do dia 11 de setembro de 2001 assinala mais um aspecto importante da globalização de tensões sociais. As motivações de seus agentes podem ter sido anárquicas ou niilistas, reacionárias ou revolucionárias, em todos os casos, no entanto, estão em causa tensões sociais importantes ou incidentais, mas mundiais. Aí estão o ocidentalismo e o orientalismo, o islamismo e o cristianismo, em geral acionados pelo capitalismo.

Segundo, o que se apresentou de início como um “ataque terrorista” logo se revela um ato político da maior importância, desdobrando-se em um processo político de ampla envergadura, compreendendo a guerra e a coalisão de paises contra o terrorismo; a mobilização da máquina de guerra da mais poderosa nação do mundo contra a mais débil nação do mundo; a pretexto de combater o terrorismo, mobilizando o terrorismo de Estado. Em poucos dias, praticamente o mundo todo se viu direta e indiretamente envolvido na guerra pela “justiça infinita”, pela “liberdade duradoura”, contra as nações classificadas pelas elites governantes e classes dominantes norte-americanas e de outras nações da coalisão como pertencentes ao “eixo do mal”. Assim, logo fica evidente, para muitos, em todo mundo, qual é a geopolítica em que se baseia a diplomacia norte-americana. Diante do ataque terrorista, antes mesmo de saber quais seriam os indivíduos, grupos, organizações, ou instituições responsáveis, logo se declara a retaliação, a guerra, o ataque terrorista da mais poderosa potência mundial contra a mais frágil das nações. Em lugar da negociação, inclusive da negociação possível através da Organização das Nações Unidas (ONU ), deflagram-se as fúrias do capital, com os braços armados visíveis e invisíveis, ostensivos e clandestinos; com a cumplicidade e colaboração de nações européias. Em face de um ataque de terrorismo, partindo de alguma parte de uma nação classificada como pertencente ao “eixo do mal”, deflagra-se uma “guerra assimétrica” e fundamentalista desde que o que se autodenomina “eixo do bem”. Ao mesmo tempo, ou principalmente, as elites governantes e classes dominantes norte-americanas instalam-se no Afeganistão, ocupando uma posição geopolítica importante na Ásia Central.

Terceiro, o acontecimento do dia 11 de setembro de 2001, pode ser visto, simultaneamente, como “ataque terrorista”, “ato político” e ação revolucionária. Tanto em si, pelos objetivos e símbolos que atinge como pelo vasto processo político que deflagra, adquire uma radicalidade surpreendente e generalizada. Pela primeira vez na história da supremacia mundial dos Estados Unidos da América do Norte fica comprovado, para uns e outros, nos Estados Unidos e em todo o mundo, que a mais poderosa potência mundial é vulnerável. Uma potência imperial cujas elites governantes e classes dominantes sempre apresentam como excepcional, modelo e farol da humanidade, de repente descobre-se vulnerável, agredida por algum inimigo incógnito, invisível, ubíquo. Em uma manhã de sol, aviões domésticos de passageiros transformam-se em mísseis balísticos intercontinentais, tecendo novas relações transnacionais e explicitando outras, antes pouco evidentes. Um acontecimento com o qual se pode levantar a hipótese de que globalização rima, simultaneamente, com integração, fragmentação e revolução. Quarto, a presença dos Estados Unidos no cenário mundial torna-se ainda mais evidente. A supremacia que se tornara mais explícita com o fim da Guerra Fria, a desagregação do bloco soviético e a transformação do mundo socialista em uma vasta e lucrativa fronteira de expansão do capitalismo mundial, logo se torna escandalosa; com a declaração de guerra, em outubro de 2001, contra o Afeganistão e a promessa de agressão militar aos paises definidos como pertencentes ao “eixo do mal”; tudo isso com ampla colaboração ativa e passiva das elites governantes e classes dominantes de nações européias e e outras partes do mundo, em uma poderosa coalisão do “eixo do bem” contra o “eixo do mal”; em defesa da “civilização ocidental cristã”, do capitalismo em seu novo ciclo de globalização.

Quinto, entra em curso um vasto e pervasivo processo de controle de indivíduos e coletividades da própria sociedade norte-americana e também nas sociedades européias, com ramificações por outras sociedades nacionais asiáticas, africanas e latino-americanas. Está em curso um processo de direitização, com evidentes ingredientes nazifascistas. Reduzem-se ou eliminam-se direitos democráticos conquistados desde difíceis lutas sociais e acentuam-se os controles jurídico-políticos, militares e policiais sobre indivíduos e coletividades, organizações sociais e movimentos sociais; em geral compreendendo intolerâncias étnicas, religiosas e outras, desde a xenofobia e o etnicismo ao racismo e fundamentalismo calvinista secularizado. Esse o clima em que florescem as atividades, organizações, movimentos e correntes nazifascistas. Não se trata de imaginar que o ataque terrorista provoca a direitização de elites governantes, classes dominantes, poderes constituídos e setores da opinião pública. Esse pode ser apenas aparência, impressão superficial. O que ocorre é principalmente, a revelação e o desenvolvimento de situações e potencialidades em larga medida já constituídas. Algo que está em gérmen, logo se manifesta e dissemina. Essa direitização tem raízes na fábrica da sociedade, nacional e mundial, por suas desigualdades e tensões ativas e pervasivas,com as quais fermentam mccarthysmos, fascismos e nazismos, desde o século XX.

As cenas da catástrofe que ocorre em New York, quando desabam as torres gêmeas do World Trade Center, impressionam inclusive pela semelhança com cenas de filmes de catástrofe. Uma parece reprodução, imitação, ou continuação da outra. Uma é o produto de um ataque terrorista, ao passo que a outra é o produto da indústria cultural, na qual germina a cultura do terrorismo. Sim, são muitos, em todo o mundo, que se dão conta de que as cenas da catástrofe que ocorre em New York são cenas da cultura da catástrofe que se desenvolve e difunde pelo mundo por meio da indústria cultural, a começar pelo cinema, a televisão e o romance. Sem esquecer que bombardear as audiências, os leitores e os espectadores com cenas de violência, reais, imaginárias e virtuais, espetacularizadas eletronicamente, pode significar entretenimento e intimidação, informação e indução, catarsis e educação. Sim, as cenas de catástrofe cinematográfica de New York revelaram, para muitos, que a cultura do terrorismo é uma criação permanente, altamente lucrativa, da indústria cultural.

Há décadas a indústria cultural tem lucros crescentes com a fabricação de violências, desastres e catástrofes sociais e naturais. Desde as inovações possíveis com as tecnologias eletrônicas, multiplicaram-se as possibilidades de fabricação de seqüências edificantes e terrificantes, imagináveis e inima-gináveis, mas sempre lucrativas. Sob vários aspectos, pois, a catástrofe de New York é um acontecimento altamente revelador, por suas implicações históricas. Revela-se, simultaneamente, “ataque terrorista”, “ato político” e “ação revolucionária”; abala quadros de referência sociais e mentais de uns e outros, em todo o mundo; suscita interrogações sobre o que está acontecendo no presente, quais poderiam ser suas raízes próximas e distantes desse presente e quais poderão ser os lineamentos possíveis no futuro. Sob vários aspectos, um evento heurístico, com o qual se assinalam impasses fundamentais do novo ciclo de globalização do capitalismo, visto como integração e fragmentação, guerra e revolução. Esta é a idéia: um acontecimento aparentemente banal, ainda que brutal, logo revela-se de significado histórico excepcional, pode ser tomado como um evento heurístico, tanto pelo que revela no imediato, como pelos esclarecimentos que pede e explicita, no que se refere aos antecedentes, às raízes próximas e distantes; e pelo que descortina sobre o futuro. Sim, as imagens e as palavras, os sons e as cores, as formas e os movimentos, o espetáculo multimídia e, também, a catástrofe cinematográfica que aparece com o acontecimento, esclarece aspectos importantes do presente e do passado, bem como aponta para desdobramentos do futuro; inclusive pelas relações que guarda com a modernidade. Aí combina-se a ciência e a técnica, a estratégia e a tática, o sentido de espetáculo e a contundência da mensagem. Muito do que se tem dito e ainda se pode dizer, não só sobre a modernidade em geral mas sobre a modernidade-mundo, revela-se nos clarões multicoloridos das chamas que consomem dois símbolos do capitalismo.

Sim, já são muitos, em todo mundo, os que se apropriam de idéias, técnicas e instituições da modernidade, desenvolvendo-as e redirecionando-as, revertendo suas possibilidades teóricas e práticas, reais e imaginárias; descortinando outras experiências sociais, outros modos de ser, estilos de vida, visões de mundo Esta é uma revelação muito importante, com a qual também se assinala o início do século XXI: já são muitos em todo mundo, os que se mostram inquietos ou indignados com a “diplomacia total” com a qual as elites governantes e as classes dominantes norte-americanas, em associação com as elites governantes e classes dominantes de outras nações, estabelecem e impõem diretrizes econômico-financeira, tecnológicas, políticas, sociais e culturais a outras nações, na África, Ásia, Oceania, América Latina, Caribe Europa Central e Europa Oriental.

O que se revela, de repente, é algo que está ocorrendo desde o fim da Segunda Guerra Mundial: as elites governantes e as classes dominantes norte-americanas conduzem uma guerra sem fim contra cada um e todos os governos e regimes políticos alternativos vigentes ou ensaiados no mundo.

Desde a intervenção nas lutas sociais travadas na Grécia em 1944-49 até a intervenção em curso na Venezuela e no Iraque em 2002, são numerosos os casos de pressões, exigências, bloqueios, desestabilizações, intervenções armadas diretas ou mercenárias e destruições de governos e regimes políticos em todo o mundo. Em todos os casos, a mensagem dos porta-vozes ou ideólogos das elites governantes e classes dominantes norte-americanas, em geral associadas com setores dominantes de nações européias e de outras regiões, sintetiza-se nos seguintes termos: “A Grécia foi salva para o Ocidente”, assim como a Guatemala em 1954, o Irã em 1953, a Indonésia em 1965, o Brasil em 1964, o Chile em 1973, a Nicarágua em 1989, a Venezuela e o Iraque em 2002.

Faz tempo que os povos e nações, governos e regimes políticos, experimentos sociais alternativos de todos os tipos, estão pagando um preço excepcional pela transformação dos Estados Unidos da América do Norte em uma poderosa e mortífera máquina de guerra. Uma máquina de guerra que se movimenta em nome da “democracia” e da “civilização ocidental cristã”, signos com os quais são satanizados povos e nações, culturas e civilizações. Uma máquina de guerra moderna, sofisticada, eletrônica e virtual, com a qual realizam-se operações nos quatro cantos do mundo. A máquina de guerra do complexo industrial militar , com a qual se organiza e expande a “ nova ordem econômica mundial”, o neoliberalismo como prática e ideologia, isto é, o capitalismo.

Tem sido muito alto, altíssimo, o custo de vidas humanas, bem como em experiências sociais alternativas, devido às destruições promovidas pelas operações abertas e clandestinas, diplomáticas e terroristas, desenvolvidas pela geopolítica mundial norte-americana. É como se a humanidade tivesse sido e continuasse sendo mutilada em muito de sua criatividade. Mutilada em vidas humanas, agredida em sua natureza e privada de experiências e perspectivas novas, diferentes, tanto problemáticas e discutíveis como inovadoras e fascinantes. Experiências sociais com as quais poderiam e poderão criar-se novas formas de sociabilidade, outros jogos de forças sociais, diferentes modos de ser, distintos estilos de vida.

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