O nacional, o popular e o democrático Na arte de Carlos Lyra

O nacional, o popular e o democrático Na arte de Carlos Lyra

Carlos Eduardo Lyra Barbosa, nascido em 1939 no Rio de Janeiro, é conhecido mesmo como Carlinhos Lyra, um dos mais ilustres compositores brasileiros. Aliás, compositor, cantor, instrumentista e filho de uma família de músicos.

Lyra começou a se interessar por violão e a estudar o instrumento ainda na escola, onde conheceu Roberto Menescal, também músico iniciante. A paixão pela música e a necessidade de encontrar, através dela, uma forma de sobreviver e tornarem-se menos dependentes dos pais, que não apoiavam o caminho escolhido pelos filhos, fez com que os dois adolescentes montassem uma escola de violão em Copacabana, bairro chique do Rio — que, mais tarde, virou ponto de encontro de artistas ainda pouco conhecidos na época, como Edu Lobo, Nara Leão, entre outros.

Fundar uma escola de música pode ser um fato simples e isolado. Mas não é o caso dessa, que teve importância única e especial, exercendo influência significativa para a disseminação do violão e a consolidação do gênero que surgia, com força total, na década de 50, entre as camadas de classe média da Zona Sul do Rio: a ‘bossa nova’.

Acontece que naquela década ainda havia uma visão preconceituosa e elitista em torno do violão, instrumento que esses ‘meninos’ começaram a ensinar para os filhos da classe média. O violão era identificado pela burguesia e pela ‘classe média’ como um dos instrumentos musicais pertencentes às classes empobrecidas, ameaçadoras da ‘ordem’ social, e também as associavam diretamente à cachaça, à prostituição (baixa), à tão famosa (baixa) malandragem da Lapa, responsável pela construção de mitos como Madame Satã, Wilson Batista e outros.

Logicamente, essas classes privilegiadas buscavam livrar seus filhos do contato cultural com aquilo que consideravam promiscuidade, admitindo tão somente relações com a cultura colonial americana, francesa e a bem comportada produção nativa.

Nesse sentido, é justo louvar a importância desses jovens, não só como criadores de um movimento que marcou pela inovação melódica, harmônica e sua particularidade no jeito de tocar, mas também pela ruptura que representou esse movimento, derrubando mitos e contribuindo para a valorização de um instrumento popular, antes desqualificado pelas classes mais ricas da sociedade. Além disso, parte desses jovens foi mais à frente. Entre eles, Carlos Lyra.

A busca do novo

A grande preocupação musical dessa geração era a de não se identificar com o estilo do samba-canção, conferindo ao gênero um caráter de ‘fossa’ — caráter este, até hoje, atribuído a compositores e cantores das décadas de 40 e 50, como Antônio Maria e Lupicínio Rodrigues. A música Nervos de Aço, de Lupicínio Rodrigues, exemplifica porque suas canções, como as de compositores diversos, são associadas à tão famosa ‘dor de cotovelo’. Letras como

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
ter loucura por uma mulher
e depois encontrar esse amor, meu senhor
nos braços de um outro qualquer.. .

— entre outras seguindo a mesma linha — fizeram com que esses jovens acusassem o samba-canção de abordar sempre temas relacionados à traição e a homens abandonados, experiências essas que não faziam parte da realidade na qual viviam.

O que buscavam era exatamente encontrar uma fórmula nova para a música, diferente daquela, ‘ultrapassada’ e ‘retrógrada’, inaugurar um novo estilo, moderno e inovador, que só será ‘descoberto’ mais tarde por João Gilberto, o grande responsável, se assim formos eleger, pelo surgimento da ‘bossa nova’. Ruy Castro, em seu livro Chega de saudade, evidencia o que João Gilberto significou para a música brasileira naquele momento: “Cantava agora mais baixo, dando a nota exata, sem vibrato, estilo Chet Baker, que era a coqueluche da época. O que o impressionou foi o violão. Aquela batida era uma coisa nova. Produzia um tipo de ritmo em que cabiam todas as liberdades que se quisesse tomar. Era possível escrever para aquela batida. Com ela, adeus à ditadura do samba quadrado, do qual a única saída até então era o samba-canção.”

A ‘bossa nova’ na casa de Bené Nunes

Apesar de João Gilberto ser considerado o ‘ser iluminado’ que encontrou exatamente aquilo que todos procuravam — e de merecer os títulos e elogios que lhe foram atribuídos durante tantos anos —, seria injusto elegê-lo como o único responsável pela ‘descoberta’ ou ‘invenção’ do novo estilo musical. Como todo acontecimento histórico, a ‘bossa nova’ foi o resultado de um processo que envolveu diferentes personagens e contingências. Carlos Lyra aborda, por exemplo, a importância das festas e reuniões organizadas entre os jovens da sua geração para a ascensão e consolidação do gênero. Era nessas ocasiões que os jovens compositores mostravam suas últimas músicas, cantavam, discutiam e divulgavam suas idéias. Um dos locais mais citados pelos estudiosos da música popular brasileira seria a casa de Nara Leão, marcada por diversas reuniões e palco, inclusive, do famoso encontro entre os compositores de morro (Zé Kéti, Nelson Cavaquinho e Cartola) e os músicos de classe média. Esse fato foi imprescindível para o amadurecimento do grupo.

Mas Lyra explica: “Muita gente diz que a bossa nova nasceu na casa da Nara. Isso é uma lenda. Seria mais justo dizer que ela nasceu na casa do Bené Nunes porque era lá que o pessoal da bossa nova se reunia. Quem frequentava o apartamento da Nara era eu, o Ronaldo Bôscoli e o Menescal 1. A do Bené era frequentada por todos nós, e ainda por Vinícius e Tom”, diz Lyra. Afirma ainda: “Essa visão é simplificadora, porque a ‘bossa nova’ não nasceu na casa de ninguém; foi o resultado de um processo cultural, com uma série de ramificações, uma série de formações.”

Novos rumos

Nos primeiros dias da década de 60, a imprensa carioca anunciava a ruptura de Carlos Lyra com a bossa nova ‘do amor, o sorriso e a flor’ e com seu, até então, maior parceiro, Ronaldo Bôscoli (um conflito mais de gravadoras que pessoal). Tendo a esquerda e a arte engajada como opção política, passa a ser contraditório compor com alguém de ‘direita’ como Bôscoli, que só fazia letras consideradas ‘alienadas’, falando sobre o sol, o mar e o amor enquanto os artistas de esquerda estavam preocupados em produzir uma arte capaz de expressar a realidade nacional, denunciando os graves problemas, como a seca nordestina, o crescimento da miséria e das injustiças na sociedade brasileira.

E é a partir de 1962 que essas idéias tomam proporções mais significativas. O nacionalismo e a valorização da cultura popular e democrática do país, unidos à repulsa pela cultura alienante — principalmente norte-americana — evidencia uma reação da juventude à forte influência exercida pelos Estados Unidos, não só no plano econômico, mas também no campo cultural, quando criaram o CPC da UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes).

Entre esses rapazes estavam Ferreira Gullar, Paulo Pontes, Leon Hirzman, Oduvaldo Vianna Filho e Carlos Lyra, e a proposta principal do grupo era ‘resgatar as raízes da autêntica cultura’ nacional-popular. “Nós fundamos um Centro Popular de Cultura da UNE, e ali cada um tinha uma função. O Vianinha era responsável pela parte de teatro, o Ferreira Gullar pela literatura, Hirzman pelo cinema e eu pela parte de música. Nós procurávamos coisas para fazer a arte popular, levar a arte do povo para a burguesia. No caso da música, esse objetivo foi atingido com sucesso. Consegui levar grandes sambistas do morro, como Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti para o CPC 2. E levei ainda o João do Vale, que era a contrapartida rural. Depois eu tive a idéia, por achar que também seria válido, de fazer o contrário: levar a arte da burguesia para o povo. Tanto que nós fizemos vários shows de bossa nova na rua”, afirma Carlos Lyra, chamando atenção para um aspecto pouco estudado do movimento.

Apesar da sua participação e atuação direta no Centro Popular de Cultura, Carlinhos tinha sérias divergências em relação à linha seguida pela UNE e pelo CPC. Já antes da sua fundação, discordou do nome escolhido para o CPC, que seria CCP (Centro de Cultura Popular).

Ninguém entendeu como uma pessoa tão afinada com as aspirações populares podia declarar-se um burguês. Carlinhos explicou que o fato de apreciar o ‘samba de morro’ não significava que existisse identidade entre ele e o gênero. Portanto, ele não seria capaz de tocar violão como Cartola ou Nelson Cavaquinho e, menos ainda, de fazer sambas como os deles. Seu estilo e sua educação musical eram completamente diferentes.

A importância do CPC

Ele defendia um Centro Popular aberto, onde, ao invés do dirigismo, existisse maturidade para se fazer uma arte política que não fosse panfletária e, principalmente, que não fosse permitido abrir mão da forma artística. Isso torna claro que Lyra se opunha a idéias que podem ser encontradas, por exemplo, no Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, redigido em março de 1962, que expressa visões distorcidas sobre a produção artística e sobre o próprio marxismo que defendiam.

“Deviam saber que além da função estética, a arte é, e continuará sendo, muito mais do que isso, a despeito das alienações que os impedem de atentar para o grandioso significado humano que constitui a radical justificativa para a existência do artista.”

Outro ponto de divergência entre Carlinhos e o Centro Popular de Cultura era a unanimidade em torno do filósofo húngaro Gyorg Lucáks, cujas idéias tinham força de lei. “George Lucáks me decepcionou muito já nos anos 60. E eu, que era de orientação marxista, me choquei com aquilo, pois para mim a arte lida com os sentimentos e não necessariamente com a arte popular, a arte panfletária, a arte tentando ser política” desabafa Lyra.

Apesar de tantas contradições, Carlinhos não deixou, em nenhum momento, de reconhecer a importância do CPC para a cultura e para a política do país, antes e depois da ditadura militar. O compositor faz questão de elogiar o entusiasmo, a união e o idealismo daquela juventude. Além disso, faz questão de lembrar o quanto o CPC foi enriquecedor em termos culturais, principalmente quando falamos na troca que viabilizou entre a música e o teatro produzidos por diferentes classes.

“O CPC foi muito mais rico do que aparentou. Apesar de apresentar uma postura questionável sobre a arte popular, foram muitos os benefícios. O CPC contribuiu através do cinema, do teatro, da música, da literatura. Fizemos filmes, gravamos discos, construímos o teatro da UNE. A cultura estava viva ali e as coisas eram feitas de forma apaixonada”, orgulha-se Lyra.

Subdesenvolvido

Carlos Lyra

O Brasil é uma terra de amores
Alcatifada de flores
Onde a brisa fala amores
Em lindas tardes de abril
Correi pras bandas do sul
Debaixo de um céu de anil
E botareis um gigante deitado
Santa Cruz hoje o Brasil

Mas um dia o gigante despertou
Aquele gigantão verde e amarelão
O Hulk deixou de ser gigante adormecido
E nem um anão se levantou.
Era um país subdesenvolvido… mas alegre…

E como se trata de um pouquinho de história do Brasil,
Aqui nos vai um fadinho:
Nem passado o período colonial
O país se transformou num bom quintal
E pois dadas as contas a Portugal,
Instaurou-se um latifúndio nacional
Subdesenvolvido…

Aí entra um marcial:
Que povo, bravo povo brasileiro,
Que em perigos e guerras se esforçava,
Mas que prometia a força humana,
Plantou couve e colheu banana.
Bravo esforço do povo brasileiro
Que importou capital do estrangeiro
Subdesenvolvido…

As nações do mundo para cá mandaram
Os seus capitais
E desinteressados
É que as nações, coitadas, queriam ajudar, né?
E aquela ilha velha ajudou também
País de pouca terra
Solos três vinténs,
Um grande bem, um Big Ben
Nos deu luz, tirou o ouro
Nos deu trem, mas levou o nosso tesouro
Subdesenvolvido

Houve um tempo em que se acabaram os tempos duros e sofridos
Porque um dia aqui chegaram os capitais dos Estados Unidos
País amigo, desenvolvido, país amigo, mais rico do que o subdesenvolvido
País amigo…
E o nosso amigo americano
Nos deu dinheiro e nós plantamos
Numa terra em que plantando tudo dá
Mas eles resolveram que a gente ia plantar
Nada mais que café

Aí tem aquela brincadeira de criança que dizia assim:
Bento que bento é o frade
Da boca do fogo tirai um bolo
Fareis tudo o que seu mestre mandar?
Faremos todos…

E começaram a nos vender e a nos comprar
Comprar borracha, vender pneu
Comprar minério, vender navio
Comprar nossa vela e vender pavio
Só mandaram o que sobrou de lá
Matéria trástica, entusiástica,
Que coisa elástica
Que coisa drástica,
Rock, balada, filme de mocinho,
Ar refrigerado e chiclete de bola
E Coca-cola
Subdesenvolvido…

É que o povo brasileiro tem personalidade
Não se impressiona com facilidade
Embora o povo brasileiro pense como desenvolvido
Como eu, que penso como desenvolvido
Aquele pedacinho que eu canto: e Coca-cola,
É a última vez que eu canto isso
Se a Coca-cola não vier aqui para conversar sobre merchandising
A próxima vez que eu cantar essa canção já vai ser com outro refrigerante

O povo brasileiro também dança como desenvolvido, não dança?
Só dança. É só entrar numa discoteca.
Ta cheio de desenvolvido se mexendo lá dentro, igualzinho
E também canta como desenvolvido, não canta?
Ieieieieiuouououou…
Ieie, meu boi, ieie, roçado bom..
O melhor do meu sertão, oh, yeah,
O meu boi
Subdesenvolvido…

Tem personalidade, não se impressiona com facilidade,
Embora pense, dance, e até cante como desenvolvido,
O povo brasileiro não come como desenvolvido,
Não bebe como desenvolvido,
Vive menos, sofre mais, isso é muito importante
Muito mais do que importante,
Pois difere os brasileiros dos demais
Pela personalidade… sem igual
Porém, subdesenvolvida…
Essa é que é a vida nacional.


*Monnik Lodi Poubel é historiadora e pesquisa música brasileira.

1 Os compositores de escola de samba citados foram apresentados a Nara por Carlos Lyra, com os quais já vinha trabalhando desde 1961. As primeiras reuniões com os sambistas aconteceram na sua residência, na Barão da Torre, onde passavam noites expondo suas composições e ouvindo outras. Carlos Lyra selecionou os sambas e os apresentou à Nara, insistindo para que ela os gravasse — não à maneira dos autores, mas com o toque musical moderno que se estabelecia. A gravação de Diz que fui por aí só foi realizada sob forte pressão de Lyra, contra as opiniões de Aloísio de Oliveira e do maestro Gaya. Depois é que vieram as reuniões na casa de Nara.
2 Os shows e apresentações teatrais do CPC, na rua, eram denominados Une Volante.
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