Oficina de rabecas
Nos últimos anos, o interesse pelo fandango tem se renovado muito. Diversos grupos, formados especialmente por jovens habitantes do litoral paranaense (chamados caiçaras) vêm recuperando a memória deste que é um dos mais tradicionais elementos da cultura brasileira.
“Vocês não estão entendendo. O fandango não é uma dança. O fandango é um universo. Se come, se bebe, se fala, se toca, se dança, se vive, se constrói.” Aurélio se curva para a frente, encosta a testa na mesa, querendo me mostrar o gesto que fizera ao perder a paciência durante uma reunião com autoridades institucionais da cultura.
O jovem professor de rabeca — ensina a tocar e a construir — me surpreende e visto a carapuça no meio da entrevista. “Mas como?” — indago em silêncio aos meus botões — “Então, fandango não é só um bailado típico que se dança de tamancos ao som da rabeca, da viola e do adufe?”
Aurélio Domingues, 25 anos, fandangueiro e estudante universitário de desenho, me ensina sobre o mundo do fandango. O mundo dos caboclos do litoral paranaense, os chamados caiçaras, cuja cultura original, em processo de extinção, ele trata de recuperar e preservar. E inicia a conversa me alertando que as leis ambientais estão entre os inimigos da cultura caiçara: “Antes da lei proibir, fazíamos o roçado em mutirão para poder plantar. Esse trabalho comunitário de vizinhos e parentes era pago, à noite, com uma festa de fandango. Agora, o caiçara não pode mais roçar, não pode mais tirar madeira do mato pra fazer sua canoa e ir pescar, nem pra fazer seus instrumentos musicais. Aí, fica em casa sem fazer nada ou vai para a cidade trabalhar como pedreiro, gari, no que encontrar.” Crítico com relação à legislação do meio ambiente, ele observa que a caixeta, madeira usada para os instrumentos, é abundante na região e não corre risco de extinção: “Meu avô, que era luthier*, costumava extrair madeira das mesmas três ou quatro touceiras, porque de cada tronco cortado da caixeta brotam uns quatro, que em menos de sete anos já estão altos.”
O fandangueiro Aurélio Domingues
O fandango resiste
Mesmo com essas dificuldades, o fandango resiste em diversas localidades. Na ilha dos Valadares, no litoral paranaense, o baile acontece todos os sábados na residência de Mestre Eugênio que, aos 77 anos, está em vias de inaugurar oficialmente uma Casa de Fandango construída com suas próprias mãos. A casa nova atende aos requisitos essenciais: tem duas “águas” (telhado completo), área ao lado, chão de tábuas largas e flexíveis, para resistir ao sapateio, e afastado das paredes para dar boa ressonância. Também conta com um bar onde se pode beber cerveja, fuscão preto e mãecafilha. A receita do primeiro é segredo do Mestre Eugênio. Sobre o segundo, Aurélio diz, apenas, que é feita à base de cachaça e melado, e que “as mulheres gostam muito.”
Eugênio dos Santos, nascido em Guaraqueçaba, litoral do Paraná, é uma das memórias vivas da cultura caiçara. Violeiro, construtor de viola, batedor fandangueiro, diz que é de um tempo em que a família ia toda para o fandango — homens, mulheres, velhos e crianças — e que sempre procurou passar aos mais jovens o que aprendeu, embora a juventude “já não esteja muito interessada nessas tradições antigas”. Tem em Aurélio seu braço direito.
Juntos, estão empenhados na organização de uma associação de artistas litorâneos para viabilizar projetos culturais na região a partir de 2004. Entre esses projetos, o Bata o pé pelo fandango quer estimular a adoção de fandangueiros por empresas, para evitar que exímios instrumentistas — como “seu” Agripino — tenham que trabalhar como gari. Há também o projeto de reativar a orquestra rabecônica, que já existiu com 25 componentes e parou por falta de apoio; a retomada com força das Festas do Divino, das Folias de Reis, do Boi de Mamão e das Congadas, também típicas do Paraná; o resgate da confecção das panelas de cerâmicas caiçaras, que têm na falecida Senhorinha Romão, de Guaraqueçaba, um de seus maiores expoentes; a montagem de uma “construbeca”, ateliê para a construção de rabecas; e a continuidade de uma pesquisa sobre a diversidade do fandango, dentro do projeto Rufando, do grupo Caiçaras do Paraná. Nesse mesmo fôlego, mestre Eugênio e Aurélio coordenam três grupos de fandango, sendo um que toca nos bailes e dois de repasse da dança e da música para a comunidade, principalmente escolas.
Convidado para fazer parte da quarta etapa do projeto Sonora Brasil, o grupo de Mestre Eugênio grava o segundo CD em julho, e em setembro viaja por 14 estados brasileiros mostrando sua música e sua dança. Em meio a tudo, no final de agosto, realiza mais uma Festa do Fandango em ilha dos Valadares, com direito a oficinas de confecção de instrumentos, oficinas de música e dança, espetáculos com grupos locais e de fora.
Mestre Romão Costa
Grupos de raiz
Além do grupo de Mestre Eugênio, há outros dois importantes grupos no litoral do Paraná que podem ser considerados “de raiz”. O de Mestre Romão, também de Valadares, e o da Família Pereira, de Rio dos Patos, litoral norte.
Romão Costa formou seu grupo em 1966, a pedido do folclorista Inami Custódio Pinto, que tentava recuperar a velha tradição já quase esquecida então. Romão conseguiu reunir doze pares de dançarinos que vieram de Guaraqueçaba e ilhas da região. Ele que é batedor — tamanqueia o fandango, mas não toca instrumento -, também trouxe para o grupo um rabequista, um adufeiro e dois violeiros. Um deles, Manequinho da Viola, já falecido, até hoje é reverenciado como um dos maiores instrumentistas surgidos naquelas redondezas. O grupo de Mestre Romão, que viaja bastante, tem um CD gravado e contrato com a Prefeitura de Paranaguá para difundir a arte do fandango.
A Família Pereira talvez seja a única que ainda mantém as características mais tradicionais do fandango por ter permanecido isolada no interior de Guaraqueçaba durante mais de 50 anos — para chegar ao Rio dos Patos são três horas de lancha, saindo de Paranaguá, e mais uma hora de caminhada por trilha. Vindos de Cananéia, litoral paulista, em 1940, os Pereira eram os únicos moradores naquela localidade. Com atividades de plantio e pesca de subsistência, de tempos em tempos, faziam o mutirão para a puxada de canoa, roçado, construção de casas e limpeza de trilhas. Depois, vinha a diversão do fandango, onde dançavam a noite toda o valsado e o batido, ao som da rabeca, da viola e do pandeiro.
Com a legislação que fez de Rio dos Patos uma área de preservação total, a família se dispersou para outras comunidades da redondeza. Ainda assim, muitas vezes se reúne para o baile, desde que não seja na quaresma ou período de luto. Nesse tempo, as rabecas, violas e machetes são “desacordoados” e permanecem calados.
Fandango como tema
Durante mais de 50 anos, o fandango foi tema de pesquisa do professor Inami Custódio Pinto. Seu primeiro contato com o “tamanqueado” foi nos anos 30 em Paranaguá, onde morou com a família dos 4 aos 10 anos de idade. Criança, ouvia aquilo como uma curiosa batucada que se espalhava por toda a baía. Já adulto, em 1952, começou o trabalho de resgate dessa tradição praticamente desaparecida com a guerra. “Com a proibição de acender lamparinas à noite, os caboclos deixaram de fazer a festa”. Numa primeira fase de levantamento no “pé de serra” e ilhas paranaenses, anotou cerca de 80 marcas (danças), comprovando ser o “fandango não uma, mas um conjunto de danças regionais que só sobrevivem integradas em determinado contexto, que é o fandango”. Em 1962, foi um dos produtores de um LP de Manequinho da Viola para o Ministério da Educação e Cultura. Por essa época, fez a primeira gravação de fandango em vídeo tape, com 1:40hs, para um canal curitibano de TV. Material logo perdido, porque a fita foi reaproveitada para a gravar uma partida de futebol.
Inami conta que muitas vezes sentiu-se “clamando no deserto” em sua defesa das tradições paranaenses. Contudo, hoje está mais otimista: “Registrei mais de duas centenas dessas danças que ainda vivem no som das nossas violas e na boca dos nossos menestréis caipiras e que estão vindo mais e mais à tona.” E festeja a chegada de novos batalhadores culturais como Aleci de Antonina e os integrantes dos grupos Meu Paraná e Viola quebrada, entre outros.
Esse atual interesse pela cultura fandangueira é comprovado por Cremildes Ferreira Bahr, a Mide, que há 30 anos se dedica ao fandango. Seu grupo, o Meu Paraná ainda depende de espaço emprestado para os ensaios, mas tem recebido inúmeros convites para se apresentar, principalmente nas escolas. Todas as terças-feiras, das 14 às 17h, Mide faz “plantão voluntário” no Conservatório de MPB de Curitiba para contar tudo o que sabe do fandango. Ela tem sido procurada principalmente por universitários.
Cds da família Pereira
Na música e em outras artes
A batida do fandango também tem sido inspiradora de alguns músicos do Paraná. O compositor, cantor e violeiro Aleci Carrigo, nascido em Antonina, gravou há três anos o CD Vida caiçara, com músicas inspiradas, em forma e conteúdo, nas tradições populares litorâneas. No final dos anos 90, sua composição Rosinha, minha sereia, foi usada como trilha musical de um filme com mesmo título, dirigido por Berenice Mendes. Rogério Gulin é outro violeiro que se “entregou” à cultura caiçara. Ele foi um dos descobridores da Família Pereira em 1992, em Rio dos Patos. É integrante do Viola quebrada, grupo liderado por Oswaldo Rios, que em 2001 gravou o CD duplo Viola fandangueira em parceria com os grupos de Mestre Eugênio e Família Pereira.
A mescla de ritmos urbanos e regionais, nacionais e internacionais do grupo Fato, com sua levada bem contemporânea, reserva um espaço especial para a batida do fandango. Essa tradição se faz presente não só nos tamancos que os integrantes do grupo usam em cena, mas também no sapateado que acompanha algumas das músicas. Criado em 1995, o Fato tem quatro CDs lançados. Já a vocação do Mundaréu, em sua trajetória cênico-musical, está mais para as tradições populares brasileiras de todos os rincões. Entre apresentações de bumba-meu-boi, boi de mamão, maracatu e cacuriá, sempre há um tempo para o tamanqueado, que já havia sido resgatado para o teatro de bonecos, em 1996, por Renato Perré, no projeto Texto como pretexto, desenvolvido em Guaraqueçaba.
Em vertente editorial recente, o fandango apareceu em cores vivas, nas fotos, textos e partituras de Tocadores, homem, terra, música e cordas, publicação de 2002 assinada por Lia Marchi, Juliana Saenger e Roberto Corrêa. E volta aparecer no mês de julho, no livro Fandango de mutirão, uma coletânea de textos organizada por Maria de Lourdes da Silva Brito. O livro de 96 páginas é uma das etapas do projeto Fandango subindo a serra, que se desenvolve desde os anos 90. Encabeçada por Maria de Lourdes, essa iniciativa polivalente já proporcionou, em Curitiba e no litoral, espetáculos de dança e música, exposição etnográfica, vídeos, palestras, formação de grupos de fandango e oficinas multidisciplinares. Em uma dessas oficinas, realizada em maio, foi debatida a existência de uma lei pouco divulgada que preconiza o tombamento dos repassadores de culturas e tradições. Isso, segundo Maria de Lourdes, seria uma maneira de garantir a sobrevivência econômica dos nossos fandangueiros. Assunto que ainda pode dar muita “batida de pé”…
*Profissional especializado na construção e reparo de instrumentos de corda com caixa de ressonância (guitarra, violino, etc.). fotos: Zig Koch (publicadas no livro Tocadores de Lia Marchi, Juliana Saenger e Roberto Correa)