Veio a público, em evento ufanista que em tudo indica uma reunião saudosista de vivandeiras de quartel e gorilas de pijamas, o autodenominado “Projeto de Nação”, assinado pelos Institutos Villas-Bôas, Federalista e Sagres. O principal coordenador é o direitista general da reserva Rocha Paiva, contando com a colaboração direta do ex-comandante do Exército que dá nome ao primeiro instituto citado; estiveram prestigiando tal projeto o vice-presidente Hamilton Mourão, além de representante do Ministério da Defesa.
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Sessão solene em homenagem ao Exército na Câmara dos Deputados em 2019
É bastante significativo que um projeto como este apareça agora. O fato de não estar diretamente relacionado com as instituições Forças Armadas em nada significa uma ausência de suas mãos. Ao golpe de 1964, por exemplo, também antecedeu a atuação de institutos, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que contavam em seu interior com militares formados na Escola Superior de Guerra e indivíduos influentes das classes dominantes locais. O Ipes, tal como os institutos que lançaram o “projeto”, também se dedicou nos antecedentes a abril de 1964 a estudos e publicações de caráter intelectual sobre o futuro da Nação.
Antes de entrar no conteúdo do “projeto”, vale destacar que o Instituto Federalista – o mesmo que publicou, em abril de 2020, artigo intitulado “31 de março de 1964: o dia em que o Exército Brasileiro salvou o Brasil” – tem como presidente Thomas Korontai, autor de um outro artigo, intitulado “A República federativa das ilegalidades”. Nele, o sujeito caracteriza que as eleições por urnas eletrônicas – forma como se realizam desde 1996 – são juridicamente ilegais, uma vez que, em sua argumentação, os processos eleitorais não são auditáveis porque se é impossível realizar o escrutínio e a recontagem pública dos votos; sendo ilegais, “todos os atos praticados pelos agentes públicos eleitos ou indicados pelos eleitos por meio de eleições ilegais (e não me refiro a fraudes), são nulos de pleno direito”. Como se vê, o sujeito abre a interpretação de que tudo que está em vigor desde 1996 é inconstitucional, desde decretos, projetos de leis, nomeações de ministros do STF e as decisões de suas turmas e plenários, tudo. Portanto, não há no país instituição alguma que possa determinar a legalidade e legitimidade ou não, de nada, inclusive de seus projetos de Brasil a serem ungidos por golpe militar. Assim, pensam criar um arcabouço pretensamente preocupado com o destino do país, como ameaça chantagista à Nação e ao povo, que seja eleito um candidato aceito pelos militares – e que as instituições marchem no sentido apontado por eles – ou em algum momento se imporá pela violência reacionária seus projetos de Nação. Por isto, não é de estranhar que o general Villas-Bôas, apresentado e até defendido pelos oportunistas de PT, PCdoB, PSB et caterva como suprassumo da defesa da democracia e sendo uma unanimidade entre seus pares da ativa, tenha composto com esse instituto, com tal linha de atuação e tais opiniões, para formular dito projeto.
O ‘projeto de Nação’ institui, na prática, um regime militar dissimulado por uma ordem aparentemente democrática
O projeto é, em todos os sentidos, uma tentativa de apaziguamento com Bolsonaro e sua súcia de celerados da extrema-direita e de alcançar uma unidade nas tropas, já bastante fragilizada em momento tão crítico e perigoso para a manutenção da velha ordem, como destacamos nos últimos Editorais de AND.
Ele é o próprio programa de governo da ofensiva contrarrevolucionária preventiva desatada em 2015 como medida para se contrapor ao desenvolvimento patente da situação revolucionária, reacendida com as massivas revoltas populares de 2013-14, ofensiva para levar a termo as três tarefas reacionárias exigidas pelo imperialismo ianque: re-impulsionar o capitalismo burocrático, reestruturar o velho Estado e impor medidas jurídico-militares para conjurar o perigo de revolução ou esmagá-la logo no seu início se ela se impor.
Desde 2017 o AND alerta sobre a ofensiva contrarrevolucionária preventiva desatada pelo núcleo do establishment (em especial, o Alto Comando das Forças Armadas – ACFA) e compaginada com os planos ianques de incrementar a militarização do subcontinente, e cuja linha de atuação identificamos como sendo impor uma intervenção militar passo a passo, primeiro e preferencialmente através de mecanismos institucionais, com os generais coagindo as instituições para controlar e determinar o rumo do país nas questões fundamentais da ordem política e econômica (vide a intervenção direta do Alto Comando, depois admitida pelo Villas-Bôas, ameaçando o STF para manter inelegível o cabecilha petista em 2018); e, sendo imprescindível, num outro momento, passar à intervenção militar total para assegurar a manutenção do sistema de Poder.
Programa de governo imposto
O documento, que é um verdadeiro programa de governo, se faz passar como uma previsão do que seria o Brasil após o projeto contrarrevolucionário do ACFA ser implementado.
Na ordem política e social, o seu programa institui, na prática, um regime militar dissimulado por uma ordem aparentemente democrática, tal como vínhamos denunciando ser a intenção do ACFA. Os sucessivos governos de turno seriam regidos por uma Grande Estratégia Nacional, formulada pelo “Centro de Governo” e pelo “Sistema Integrado de Gestão Estratégica”, que não se alteraria no fundamental apesar das alternâncias de governos. O documento golpista chega a dizer que “os coordenadores e articuladores” do Centro de Governo são “flexíveis a ponto de oportunamente fazerem modificações” para contemplar as mudanças de governo – isto é, eles ditam os rumos do país, mas chegam a tolerar mudanças marginais!
O projeto é, em todos os sentidos, uma tentativa de apaziguamento com Bolsonaro e sua súcia de celerados da extrema-direita e de alcançar uma unidade nas tropas, já bastante fragilizada
Não é difícil reconhecer identidade com a dinâmica do sistema de governo proposto com aquele que regia o regime militar. Poderia-se compará-lo ao Planejamento Estratégico do general Golbery de 1981 com o presente programa dos generais, cuja identidade provém da mesma ideologia anticomunista de que as Forças Armadas reacionárias devem tutelar o Estado e gerir seu desenvolvimento em unidade com a segurança nacional, quase que exclusivamente combater a revolução.
O delírio intervencionista militar chega a propugnar o pagamento de mensalidade para as universidades públicas e o controle efetivo sobre os reitores, através de nomeações, para combater a “ideologização” da Educação. Esse linguajar fascista não esconde seu verdadeiro significado: combater a liberdade de cátedra, a liberdade efetiva de ensinar e aprender e golpear a já efêmera democracia universitária.
No campo da saúde, propõe o pagamento para uso do Sistema Único de Saúde (SUS). Se bem que hoje é sucateado e funciona como arremedo de sistema de saúde público, a solução é no sentido oposto à cobrança para o uso. A privatização da saúde é, portanto, um dos pontos levantados pelos generais golpistas.
Sobre o conjunto da economia, os generais golpistas defendem o programa da fração burocrática, de manter os setores estratégicos sob controle do velho Estado de latifundiários e grandes burgueses, serviçais do imperialismo, principalmente ianque. O mesmo programa que regeu durante a maior parte do regime militar.
No campo da segurança nacional, o documento indica o combate ao “crime organizado” como uma necessidade patente, dando garantias para que as forças de repressão possam agir. Não é difícil concluir qual defesa encerram tais palavras, uma vez que se tenha em conta quais foram as reações dos generais frente às diferentes chacinas ocorridas em favelas sob a retórica genocida de “combater o tráfico de drogas”.
A contrarrevolução fracassará
A última vez que as Forças Armadas propugnaram um projeto político quando vigia um regime de velha democracia foi nos anos 1960. O que sucedeu a isso foi o próprio golpe militar. Não que este seja a tendência principal de imediato, mas é inegavelmente a tendência principal num espaço maior de tempo. Agora, estão abertamente proclamando seu objetivo de maior tutela das Forças Armadas, na verdade, um “absolutismo presidencialista”, o máximo de centralização do Poder no Executivo e seu “centro de governo”, regime dissimulado como democracia liberal.
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General Mourão justifica cenário de golpe militar durante conferência em loja maçônica, 2017
Ninguém propugna um projeto de governo sem também delinear uma estratégia para alcançá-lo. Dita ou não dita, os gorilas contrarrevolucionários anticomunistas já a formularam faz alguns anos e, desde então, a estão implementando, e o AND a denuncia desde seus primeiros passos. Apenas agora sistematizaram publicamente os objetivos de sua ofensiva contrarrevolucionária preventiva. Tornando-os públicos, buscam chantagear a Nação.
Não deixa de ser risível que a casta, de longe a mais privilegiada dessa república corrupta, venha a público, preocupada, vejam, com a falta de “ética” e “moral” nas instituições do velho Estado. Mais de duas dezenas de oficiais das Forças Armadas estão recebendo, agora, R$ 32 mil em soldos, apenas previstos para marechais – posto militar instituído apenas em época de guerra – e um montante maior do que recebe o presidente de dita república. Já aqueles que estão no governo, têm acumulado, além desse valor, o salário pelos serviços prestados a Bolsonaro, uma quantia que ultrapassa R$ 100 mil mensais. Dentre esses, estão os honráveis figurões, os mais incisivos no palavrório moralista, os mais preocupados com o “destino da nação”: o próprio Villas-Bôas, Hamilton Mourão, Augusto Heleno, Braga Netto e outros adiposos mais, que não vale a pena citar pois que, insignificantes, ninguém deles se lembraria. O que há com vosso espírito cívico, senhores? Esconderam-no nos coturnos?
Claro está, não se trata de nenhuma preocupação com o que há de nacional ou público. Estes senhores desprezam o povo, a Nação; consideram importante apenas a secular ditadura de latifundiários e grandes burgueses, lacaios do imperialismo, principalmente ianque (Estados Unidos), à qual servem como guardiães. Vendo desmoronar sua velha ordem de exploração e opressão sobre as massas populares e de subjugação da Pátria ao imperialismo estrangeiro, se arvoram como Poder Moderador para mantê-la e aperfeiçoá-la. Fracassarão, pois que nenhum projeto reacionário pode prevalecer, ainda que demande certo tempo; acaso não tem sido assim a história contemporânea do país, marcada pelo nefando papel das Forças Armadas como guarda pretoriana dos exploradores, opressores e vende-pátrias locais e dos interesses de potências estrangeiras? Mais ainda, eles não prevalecerão desde que as massas persistam na luta por seus interesses só alcançáveis através do choque com a reação, com clareza de objetivo e sob crescente direção de seu destacamento avançado, sua vanguarda revolucionária proletária. Pávidos com a “ameaça comunista”, com a qual têm pesadelos todos os dias, os generais golpistas correm contra o tempo. Chegarão tarde.