Grande parte dos veículos de comunicação tem divulgado e apoiado o Programa Fome Zero. Toda a burguesia, inclusive a internacional, aplaude a medida. Vale destacar algumas das idéias básicas das campanhas de persuasão perpetradas contra o povo pelos monopólios que dirigem a imprensa de um modo geral. Sobre a revista Veja, é dispensado comentar, dado ao seu doentio e visceral anticomunismo capaz da proeza de ver comunismo no Partido dos Trabalhadores (PT) e no governo.
Destacamos o jornal Folha de São Paulo com seu ecletismo de conservador moderno (aliás, pós-moderno) que procura agradar gregos e troianos, criticando gregos e troianos; vai de "uma no cravo e outra na ferradura", expressando (identidade e rejeição) seu ranço histórico com o PT. As organizações Globo, sempre oficialistas, mais do que nunca, são a rede da propaganda governista, ademais agora, quando necessitam manter seu monopólio e precisam de socorro oficial às suas contas. É vergonhosa sua ética.
Já o Estadão, guardião-mor da reação tupiniquim e principal sucursal de suporte interno da reação internacional, tem se pautado por oferecer sinalizações claras e balizas bem definidas ao governo do que ele não deve fazer, para não perder sua "popularidade". Sempre bem recheado de densos editoriais e artigos da pena da direita esclarecida, vai municiando com reforços de argumentos toda a política econômica e social anunciada e posta em prática pelo governo. Mas, como em política quase tudo é possível, e como o papel aceita tudo, escalou o jornalista José Nêumanne para fazer a crítica às ações do governo, pela "esquerda".
O apetite de ocultar a verdade
No seu artigo de 12/02/2003, "Apetite de Poder", o articulista acusa o ministro José Graziano de ser duplamente preconceituoso por seu "deslize" – o de ligar a fome dos nordestinos e sua migração para o sul com a criminalidade desbragada no país. Logo, deslinda com o conceito do Programa de Fome Zero, "desmascarado pelo geógrafo Demétrio Magnoli, da USP, que garantiu não haver fome no Brasil, mas desnutrição crônica". Alinha-se com personalidades que julga competentes nessa matéria, que não teriam sido ouvidas pelo governo, destacando, dentre elas, a senhora Zilda Arns, da Pastoral da Fome, e o especialista em recursos hídricos Aldo Rebouças. A primeira, porque "condena o método de entregar diretamente às famílias carentes o dinheiro para comprar alimento, pois ele favorece a corrupção e manipulação política"; e a segunda, ao afirmar que "o problema secular do semi-árido nordestino é a escassez de água, causada não pela falta de precipitação, mas pelo excesso de evaporação". E o que se deve ensinar aos nordestinos é poupar a água "deixando de plantar arroz, que exige seu uso intensivo", adotando culturas de "flores e frutos" que se obtém pelo sistema de gotejamento.
O nome desse projeto deveria ser Apetite de Poder e não Fome Zero, segundo Nêumanne ao afirmar que são três os objetivos do PT: "mostrar que, apesar das aparências, o governo de Lula (…) não é apenas um clone barbudo do anterior; fazer da culpa arma de sedução política; e montar um sustentáculo eleitoral para o PT nos grotões, a fim de prorrogar sua permanência na presidência".
Na verdade, ao lançar suas críticas aos preconceitos de Graziano, Nêumanne não se dá conta dos seus. Ao taxá-lo de racista, "pois nem todo migrante é miserável e nem todo brasileiro pobre é ladrão", expôs todo seu asqueroso preconceito de classe, para o qual nenhum rico é ladrão e muitos pobres o são. Será que as declarações de Graziano se tratam apenas de um "deslize"? Não seria mais que um ato falho? A bajulação à burguesia como tática política, desperta, açula e traz à tona os elementos das entranhas ideológicas da conformação política pequeno-burguesa liberal do PT. Não esqueçamos que na campanha presidencial de 1989, contra Collor, Luiz Inácio declarou que a fome no Nordeste do Brasil tinha criado uma "sub-raça".
E quem desmascarou quem? Apologista da fome, Cardoso, lá da Europa, em seu muito confortável retiro espiritual custeado a peso de ouro, já tinha vociferado essa pérola do descaramento e do cinismo de que no Brasil não há fome, mas "desnutrição crônica". Nada mais a acrescentar.
Quanto à condenação de entrega de dinheiro e defesa do que considera "muito mais sensato", usar o sistema de cartão magnético, "adotado na gestão anterior", perguntamos: que diferença de fato há entre as duas formas de politicagem, a clientelista, coronelista de corrupção, e o tráfico de influência sobre a pobreza? Uma parece velha e a outra aparenta ser nova, nada mais. Sobra da crítica a defesa, uma vez mais, de Cardoso.
Pedagogias do moderno capataz
Sobre ensinar os nordestinos a poupar a água, nosso crítico torna-se seu próprio alvo preconceituoso. Pretender ensinar o povo nordestino a poupar água é de uma arrogância sem qualificativos. Senhores, por favor, o povo faminto come qualquer coisa; não faz parte de seu cardápio preferido comer flores, mas arroz, muito arroz, e todos os dias, de preferência. Ou será preciso demonstrar que estamos no Brasil e que os camponeses plantam, primeiro, para comer? Produzir, vender, onde? Com o quê? Mais uma vez, é a mistificação elitista do capitalismo no campo, existente apenas na cabeça de intelectualóides, na tecnocracia estatal e nos "sensos" do IBGE.
O assalariamento no campo vem decaindo em milhões por década. A cidade submete e explora o campo e a indústria se nutre da extorsão da economia camponesa semifeudal. Os camponeses pobres do semi-árido nordestino plantam para sua sobrevivência (nem de subsistência, em geral, pode ser classificado esse plantio), fora disto migram para as grandes cidades.
O problema, Nêumanne, é que o Brasil precisa de uma revolução agrária profunda, capaz de varrer o latifúndio, todo seu sistema e tentáculos, da face do país, soterrá-lo. No Nordeste, no semi-árido, principalmente, o problema da água é adicional, pois o de fundo é o do monopólio e a concentração da propriedade da terra. Aos "coronéis", velhos e novos, às suas propriedades sem fim, não falta a água, inclusive para irrigar pastagens e os belos jardins decorativos de suas mansões no campo. Aos camponeses, faltam a terra e a água. Portanto, o problema é quanto à propriedade da terra, enquanto que, obter água, depois de resolvida a questão da terra, é mera questão técnica. Sua crítica não está à esquerda do governo. Volta-se contra a transformação agrária e fundiária democrático-burguesa de novo tipo – isto é, sob a hegemonia do proletariado em aliança com o campesinato -, transformação esta, necessária e pendente no país.
Por fim, chamar de Apetite de Poder o Fome Zero, é tecer apenas uma crítica tola e preconceituosa. É achar que só os velhos e carcomidos políticos das classes dominantes reacionárias anseiam pelo direito a ter apetite de poder e que os novos não. Neste sistema – qualificado de democrático – todos, absolutamente todos, que, através dele, se apossem do seu aparato estatal, com muita ou pouca popularidade, estão fadados ao "apetite" voraz de poder e pela sua obtenção e manutenção são capazes de tudo. Só não podem é impedir para sempre que o povo, inclusive o dos "grotões", alvo dos preconceitos, zombarias e discriminações, e principalmente ele, lance ao chão a cangalha da exploração e da opressão, desmantelando com elas toda a demagogia e tapeação de que hoje, ainda, são vítimas.
Muitos crêem que isto não passa de balela. Outros tantos pensavam que tão cedo o PT não ganharia as eleições para a presidência no país. De uma forma ou de outra, as coisas mudam, mais do que nunca, nestes tempos agitados. O mundo está tremendo e tremerá muito mais. Quem teme os tremores, os terremotos e as tempestades? Certamente, não são aqueles cuja vida toda tem sido feita de tremores da opressão incessante, de terremotos de miséria e de tempestades da fome.
A crítica de Nêumanne, só aparentemente, é de esquerda. Na verdade, ela se resume numa defesa envergonhada de Cardoso. Definitivamente, não fica bem para o Estadão fazer críticas à esquerda, ainda que o objeto seja o direitista PT e sua "frente popular", eleitoreira e medrosa. O Estadão entende mesmo é de direita e deve desincumbir-se do que lhe compete.