Um problema que persiste nas semicolônias é a grosseira concentração de terras nas mãos de um punhado de latifundiários em prejuízo das grandes massas de camponeses confinadas no minifúndio. Este fato é chave para a compreensão das construções dos Estados nas nações oprimidas.
Um exemplo palpável podemos constatar no Paraguai, onde 10% da população mais pobre recebe 0,6% dos ingressos, enquanto os 10% mais ricos ficam com 45,5% da renda nacional. Este país tem o vergonhoso registro da mais alta concentração da terra em toda América Latina, pois o coeficiente de concentração da terra, de 0,94, praticamente beira à desigualdade perfeita, seguido por Brasil com 0,86, Uruguai com 0,84 e Panamá com 0,84.
O Paraguai está localizado no centro da América do Sul. Mesmo sendo um dos menores países do subcontinente, possui uma agricultura e pecuária relevantes no planeta, pois ocupa o sexto lugar na produção de soja e o nono com exportador mundial de carne bovina. Além disso, essas duas atividades juntas geram um quarto do PIB do Paraguai. Cifras macroeconômicas que são possíveis em um contexto particular de concentração da propriedade da terra.
O país está subdividido em duas principais regiões, a Oriental e a Ocidental. A primeira compreende 39% do território nacional e concentra mais de 97% da população. Nesta região está nucleada a maior estrutura sanitária, viária, educativa, de comunicação e serviços básicos do Paraguai. Tanto que a região ocidental, o Chaco, abarca 61% do território, mas só acolhe pouco mais de 2% da população.
Segundo o Censo Agropecuário de 1991, apenas 1% da população tinha sob seu poder 70% dos terrenos rurais aptos para o desenvolvimento de atividades agrícolas e pecuárias. Esse mesmo censo permite apreciar que ao redor de 88% do total da superfície dos 406.752 km2 do país estão controlados por apenas 7% da população em geral, próxima dos 7 milhões de habitantes.
Por outro lado, as áreas cultiváveis no Paraguai oscilam entre os 18 milhões de hectares. Destas apenas 6% correspondem a pequenos produtores. Não obstante, das 304.865 unidades produtivas camponesas que existem no país, 255.578 dispõem de terrenos inferiores a 20 ha, representando nas cifras globais apenas 7,8% do total de hectares em áreas cultiváveis do Paraguai. Por sua vez, 2.409 unidades produtivas têm terrenos superiores a 500 ha, mas controlam 76,4% da superfície total de terreno.
Este panorama resumido em cifras permite deduzir – mesmo que não detalhadamente – algumas questões como a luta pela terra na qual se encontra envolvido o campesinato paraguaio. Estas lutas foram abertamente reprimidas nos cerca de 35 anos de gerência militar de Alfredo Stroessner, desde 1954 até 1989, tanto que, logo após a queda do mencionado tirano, as cifras do conglomerado organizativo se elevaram de 3 a 20%. Deve-se ter em conta o papel nefasto das organizações não governamentais (ONGs), em particular as provenientes dos países imperialistas, pois essas ONGs cooptaram os pequenos e incipientes espaços do sindicalismo camponês paraguaio.
Também, permite intuir que a maior concentração de latifúndios se desenvolve na região do Chaco, cujas áreas rurais têm uma vocação fundamentalmente pecuarista. De fato, a Lei 854 de 1963, durante a gerência de Stroessner, aplanava o caminho para o assentamento de latifúndios no Ocidente, onde é permitido ter propriedades até um máximo de 20 mil ha. Tanto que, no Oriente foram permitidas propriedades que tinham como limite os 10 mil ha.
A Lei 854/63, que regulava a propriedade de terras, sem dúvida foi feita para fomentar o latifúndio, nunca teve por objetivos o desenvolvimento da agricultura, nem muito menos redesenhar a planificação dos assentamentos populacionais, que como já foi mostrado com as cifras, é extremamente díspar entre Oriente e Ocidente.
Em especial, se buscava a atração de capitais estrangeiros, o que explica as características da agricultura da soja e a ênfase na criação de gado, ambas com um caráter extensivo e destinadas à exportação, cujo claro objetivo é satisfazer o mercado externo, o fluxo de capitais transnacionais, no marco da velha lógica da qual o capitalismo burocrático está cheio. O alcance da referida lei se prolongou até sua derrogatória com a Lei 1863 de 2002.
Mas também para favorecer a toda a casta política e militar enquistada na engrenagem burocrática do Estado paraguaio. Desta maneira, o Instituto de Bem-estar Rural entregou terras fartamente a pessoas que não deviam recebê-las, pois a adjudicação de terras devia ser efetuada apenas para quem “se dedicasse habitualmente aos labores agropecuários e que não tenham na propriedade outros imóveis rurais”, segundo a lei.
Mesmo assim, durante a gerência Stroessner e inclusive depois de sua saída, foram distribuídos 11 milhões de hectares de terras destinadas à reforma agrária a ex-presidentes da república, militares, ministros, banqueiros, empresários e políticos próximos a Stroessner. A suposta reforma agrária aprofundou o latifúndio, dado que 57% dos 11 milhões de ha entregues pararam nas mãos de menos de 2 mil pessoas, terras que rendem uma abundante renda, pois coincidem com as plantações de soja.
Com este funesto modus operandi, delinquentes da estirpe de Stroessner se apropriaram de 1.305 ha, o general Andrés Rodríguez de 196 ha, o ex-presidente Juan Carlos Wasmosy se fez presentear pelo Estado paraguaio em 270 ha e Luis Angel González Macchi, 85 ha.
A eles se soma uma longa lista de personagens como Segundo Eudoro Cáceres, político a quem o Estado paraguaio adjudicou em 17 oportunidades um total de 17.522 ha no alto Paraná, cerca de um décimo da superfície de dito departamento (estado), terrenos que, no mínimo, custam 2 mil dólares o hectare, o que faria supor que esta pessoa se fez obsequiar pelo Estado paraguaio em mais de 35 milhões de dólares em bens imobiliários rurais. Mas quem detém o recorde é Milton Machado, íntimo de Stroessner, que recebeu terrenos 49 vezes. Obviamente dos espertalhões desta lista foi agricultor alguma vez na vida; seguramente, não semearam plantas nem nos jardins de suas mansões.
Dentro da lista de “agricultores” beneficiados se encontra outro tirano, o nicaraguense Anastasio Somoza, amigo de Stroessner, que foi beneficiado com 8 mil ha na década de 1980, durante seu exílio no Paraguai, assim como uma longa lista de traficantes.
Considerando que as diferentes constituições do mundo costumam se referir ao direito à terra como direito fundamental, a constituição paraguaia – obviamente só na teoria – seria das “mais avançadas”, o que leva à pergunta de para que serve uma lei tão “avançada”, inclusive de hierarquia constitucional, se de fato o Estado paraguaio encobre a concentração de terras mais ignominiosa de toda a América Latina.
Depois de Stroessner, a dinâmica da distribuição preferencial de terras às pessoas mais chegadas às mais altas esferas do governo foi solapada, mas continua vigente e com boa saúde. O campesinato paraguaio incrementou seu poder de mobilização, inclusive ocupando latifúndios improdutivos e as chamadas “terras mal havidas” de militares e políticos. Mesmo assim, os camponeses são reprimidos pelas forças policiais e armadas ou pelos grupos de pistoleiros (mesnadas) dos latifundiários, que se deram a tarefa de formar bandos paramilitares para defender seus interesses. De fato, há alternância e complementaridade entre ambos, pois são as mesnadas que reprimem ou é o poder judiciário que atua e ordena de forma arbitrária as detenções massivas que têm lotado os cárceres de camponeses sem terra em todos os departamentos do Paraguai.
De fato, desde 1990 foram executados extrajudicialmente mais de cem dirigentes camponeses como efeito da repressão estatal. Só o caso do dirigente camponês Esteban Balbuena terminou com a condenação do autor a dez anos de prisão. Os demais casos ficaram na mais absoluta impunidade, sem falar das execuções cometidas por corpos policiais de elite mimetizados em grupos irregulares.
Apesar disso, o campesinato paraguaio realiza permanentemente mobilizações, ocupações, bloqueios de estradas e outras ações, pois não lhe resta outro caminho, dado o extremo grau de desigualdade, corrupção e impostura do velho Estado paraguaio.
O governo de Lugo, do ex-sacerdote com discurso de aparente esquerda, surge como expressão do trabalho gerado pelas ONGs de cooperação internacional para o desenvolvimento, algumas instituições da esquerda caviar dos países imperialistas, membros do movimento altermundista ou da Igreja Católica, cujas intervenções não buscam a transformação das estruturas. E ainda que a repressão aos camponeses tenha se atenuada com Lugo, as estruturas do capitalismo burocrático no Paraguai não foram modificadas nem um pouco. Em particular, o coeficiente de concentração de terras segue sendo dos mais vergonhosos da América Latina. Tampouco Lugo tocou em um só fio de cabelo dos interesses de políticos e militares que ostentam grandes extensões de terra através do escândalo das “terras mal havidas”. Depois de tudo, seus discursos pseudorrevolucionários se dilui ante a verdade dos fatos.