O público e o nacional na política de saúde

O público e o nacional na política de saúde

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Em entrevista à AND, o Dr. Thelman Madeira de Souza*, nos fala sobre o SUS, os Conselhos de Saúde, a desnutrição, o caos na Saúde no Brasil, suas causas e consequencias, e as políticas públicas. Ele traça um enunciado sobre a falência dos chamados serviços públicos do setor, considerando que esse caos tem uma origem, uma etiologia, como se costuma dizer em medicina.

Há uma corrente de pensamento (dominante, à qual se juntaram várias tendências, inclusive a “esquerda sanitária”) advogando que, no Brasil, o caos na Saúde se deve a uma questão de gerenciamento. Ou seja, a bancarrota da Saúde existe porque as unidades prestadoras de serviço, dentro do Sistema Único de Saúde, seriam mal administradas.

AND – A tal teoria da “má administração” tem respaldo científico?

Thelman Madeira – Isso é uma falácia, porque esse é um discurso que vem no bojo da questão neoliberal. Ao adotar essa postura de enfraquecimento do Estado, e propor que o Estado se exonere de seus deveres — e entre os seus deveres está criar e implementar políticas públicas importantes, dentre as quais a política de saúde — essas pessoas incentivam o estabelecimento de novas modalidades de gestão. Criam organizações sociais e agências reguladoras que são formas de flexibilização da administração estatal. Exemplo disso é a Agência Nacional de Saúde Suplementar que existiria para normatizar a atividade de todos os planos de saúde.

O caos na saúde se deve, então, ao pouco investimento que se faz nessa política pública tão importante. O Brasil gasta menos do que a Bolívia em saúde. A Bolívia aplica, hoje, 200 dólares per capita/ano e, o Brasil, em torno de 170 dólares; inconcebível para um país com as dimensões continentais como o nosso e com uma população de 180 milhões de habitantes. O nosso orçamento em Saúde é magro.

A administração deficiente é uma coisa fácil de corrigir, porque se, por exemplo, José não está dirigindo bem o hospital da Lagoa, basta substituí-lo por João. O discurso neoliberal dá uma ênfase à gerência a fim de esconder o fundamental: o baixo investimento. Eles ressaltam a questão da forma e deixam de lado a questão do conteúdo.

AND – O que são essas agências reguladoras?

TM – São autarquias criadas pelo governo, autarquias com características especiais que têm o objetivo de “regular”. Na realidade, uma atividade legislativa. E o que significa regular dentro dessa área? Significa disciplinar a atividade desses prestadores de serviço. A Unimed, por exemplo, e outras operadoras de serviços privados de assistência à saúde, têm para regulá-las essas agências que são instrumentos burocráticos administrativos do Estado neoliberal, um Estado que rompe com o tradicional compromisso social. E, na medida em que o Estado se exime de seu papel de gerir bem as políticas públicas, ele o delega para essas agências que não têm compromisso nenhum com a saúde do povo, até pela sua própria composição. Ou seja, essas novas formas de flexibilização do Estado não regulam nada.

Os planos de saúde estão sendo reajustados quase que mensalmente; as pessoas pagam a mensalidade e, na hora que necessitam do plano, não são atendidas na plenitude do estabelecido no contrato, e as agências reguladoras são impotentes, pois funcionam como um mecanismo de esvaziamento do Estado.

AND – E qual sua opinião a esse respeito?

TM – Eu sou visceralmente contra isso. Acho que o governo Lula não poderia continuar com esse tipo de organização para disciplinar uma atividade tão importante quanto a atividade na área de saúde. A Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080/90, que cria o SUS) prevê a criação de um Sistema Nacional de Auditoria, materializado através de um Departamento Nacional de Auditoria do SUS, o Denasus. Este tem a função de avaliar a qualidade dos serviços médicos prestados e controlar os gastos na saúde, ou seja, o repasse de recursos financeiros do governo para os estados e municípios. Significa que o Ministério da Saúde tem, há muito na sua estrutura, um órgão cuja função precípua é fiscalizar.

AND – De que maneira funciona o SUS?

TM – O SUS, que se diz público e se quer público, no meu modesto entendimento não é um sistema público de saúde. A falsa esquerda sanitária acha que o SUS é um ente público, mas está embutida aí uma falsidade. O SUS não é um sistema público porque é um sistema híbrido. Quando a Constituição de 88 (vale lembrar que o lobby do setor privado não permitiu que o SUS se tornasse inteiramente estatal) assegura a participação do setor privado na assistência à saúde, a chamada complementariedade, esse sistema perde a característica de público. Hoje, inclusive, está em moda o conceito de publicização.

Na visão do Bresser, bem como na visão dos burocratas do governo que estão aí desde o tempo de Cardoso, publicização significa transformar um ente estatal em um ente público não-estatal. Ora, nós sabemos que a condição sine qua non para que uma coisa seja pública não é apenas atender ao interesse público. Nem tudo que atende ao interesse público é publico. Do ponto de vista conceitual, uma coisa só é pública quando tem o Estado como garante. Se não for assim, mesmo que ela atenda ao público ela não será pública, e isso é uma coisa mais ou menos óbvia. Por exemplo: o botequim do português da esquina atende ao público, mas nem por isso é público, pois não tem o Estado como garante. Dessa forma eles manobram e distorcem o conceito e, com isso, reforçam a idéia de que um sistema híbrido — no caso, o SUS —, admita a participação do setor privado no sistema.

AND – E para onde vai o dinheiro destinado ao SUS?

TM – Na prática, uma parte dos recursos segue para o setor público, para os hospitais públicos do governo, quer sejam federais, estaduais ou municipais, mas a grande parte dos recursos vai para o setor privado contratado ou conveniado ao SUS, em alguns casos, verdadeiras “trambiclínicas”.

O SUS não é essa grande coisa que todo mundo diz ser, pois lança mão de recursos públicos para manter o setor privado que, na maioria das vezes, é corrupto, frauda os recursos, etc.

A saúde pública tinha que ser de boa qualidade para quem quer que seja. Até porque a Constituição diz que saúde é dever do Estado e direito de todos.

AND – Quais são as fontes de financiamento desse sistema?

TM – As fontes de financiamento são o nó górdio do sistema, por serem pouco definidas. As fontes são diversificadas e se constituem num dos complicadores do sistema. É preciso definir uma única fonte. Múltiplas fontes de financiamento complicam a questão financeira e dificultam o repasse. As múltiplas maneiras de repasse também dificultam o acesso do recurso pelas administrações estaduais e municipais e facilitam que os espertalhões abocanhem recursos ao longo desse trajeto.

AND – E os chamados Conselhos de Saúde, funcionam de que maneira?

TM – Têm assento nos conselhos de saúde os representantes patronais, os representantes dos governos e representantes das associações, sindicatos, etc. E agora você me diz: qual a força que a sociedade “organizada” tem dentro de um contexto dessa natureza? Isso se trata de uma falsa representação. Eles falam em controle social e usam esse conceito de uma maneira distorcida. Controle social é um controle exercido pelo Estado sobre a sociedade. Eles dizem que a sociedade tem o papel de fiscalizar o governo, através de queixas que o povo faz. Uma sociedade desorganizada, fraca, massacrada e humilhada como a nossa não tem condições de fiscalizar ou controlar qualquer coisa.

Nesses conselhos, a maioria das pessoas não sabe nem expressar o seu ponto de vista. O que o governo deveria fazer era reforçar, dentro da estrutura do próprio ministério, a fiscalização, e isso não é feito; o governo não tem interesse, face à necessidade de manter a sua base de sustentação política, de cuja composição participam representantes do empresariado do setor saúde.

AND – Até onde vai a autonomia dessas agências?

TM – As agências, além de terem uma atuação meramente paliativa, gozam de muita autonomia. Essas autarquias especiais gozam de ampla autonomia de contratar, pagar salários bem acima do valor que cabe ao funcionário público, manipular recursos ao seu bel-prazer, etc. Assim, elas se transformam em verdadeiros cabides de emprego, e vão dar assento a pessoas incapazes de fazer o serviço requerido. Elas estão lá para defender os interesses das prestadoras as quais deveriam regular ou fiscalizar. As agências existem, na verdade, não para regular, mas para facilitar certas coisas.

A fiscalização dos recursos destinados à Saúde e a fiscalização da qualidade da assistência médica prestada à população deveria ser da alçada do Denasus, componente da estrutura do Ministério da Saúde, e não ser feita através de agências reguladoras que são instrumentos característicos do Estado neoliberal.

AND – Agora, como fica a tal “relação médico-paciente”?

TM – A relação médico-paciente se deteriorou muito. O médico se submete a péssimas condições de trabalho no setor público e piores ainda no setor privado subsidiado pelo SUS, cuja lógica é a do lucro máximo. É lamentável que o setor público hoje desça ao nível do setor privado. Quando isso ocorre, o caos na saúde é tão grande, que o setor público fica muito parecido com o setor privado de baixo nível. O setor privado conveniado ao SUS é mal remunerado, aceita ser mal remunerado e aceita isso porque na maioria das vezes frauda. Assim, a má remuneração é compensada, muitas vezes, com a fraude.

A rede pública não necessita de acomodações iguais, por exemplo, às da Clínica São Vicente. Mas uma enfermaria de hospital público deve ter um mínimo de higiene e conforto, com bons profissionais, bom atendimento, com medicina de bom padrão, que é o que interessa. Quem é rico vai para a São Vicente e tudo bem. E o pobre? Não vai ter um quarto bonito com cortina, ar condicionado, mas vai ter um quarto limpo, com lençol trocado todo dia, alimentação adequada e assistência médica de qualidade. É isso que a gente quer, não precisa mais do que isso, não. E, nessas condições atuais, a relação médico-paciente, que é uma coisa de vital importância no exercício da atividade médica, está completamente deteriorada. O profissional está ali estressado, pois é mal remunerado e vive numa vida de corre-corre. Como não há investimento, as condições de trabalho que ele necessita também não existem, e ele é obrigado a utilizar, muitas vezes, seu equipamento particular para atender ao paciente, já que a rede pública está toda sucateada: aparelhos quebrados e sem manutenção.

O que se quer hoje para o profissional de saúde é o mínimo de dignidade profissional. E em que consistiria isso? Um salário digno e condições de trabalho dignas. Só se faz medicina de bom padrão com isso: boas condições de trabalho, um bom ambiente para o paciente e equipamentos adequados. Se não for assim a relação se deteriora. E isso é uma coisa da qual a população se queixa muito.

AND – Nas políticas públicas é a Saúde que mais rapidamente caminha para a chamada privatização?

TM – Nós podemos afirmar com absoluta certeza que a saúde caminha para privatização em nosso país, como tudo mais. No entanto, a Saúde é, talvez, a política pública que mais celeremente caminha para privatização. E na medida em que o governo não investe nessa rede pública, que já vem sucateada de muitos anos, e não tem a sensibilidade de motivar o interesse do profissional, a situação tende a piorar. A rede chega a tal estado de penúria que muitos acabam proferindo discursos que enaltecem o setor privado. Assim: “se fosse no setor privado não aconteceria isso, mas como é coisa pública…” Ou seja, o governo, maldosa e intencionalmente, deixa arrebentar toda a estrutura. O SUS, hoje, é um mero guarda-chuva protetor do setor privado. O papel dele é esse, porque na medida em que ele permite a complementariedade e passa grande parte de seus recursos para o setor privado, ele é um guarda-chuva protetor.

De 64 para cá não se construiu nenhum grande hospital público. E como é que substituíram a necessidade de novos leitos para atender a população que crescia? Através desses convênios e contratos com o setor privado. Assim, a partir de 64 começaram a pulular uma série de clínicas incentivadas pelo gerenciamento militar. Hoje, o Luis Inácio já aventa a possibilidade de terceirizar a construção de hospitais públicos. A construção dessas unidades não vai ser mais uma obrigação do Estado brasileiro. Ele vai licitar e setores interessados nisso vão construir hospitais.

Nesse governo que está aí a inércia da Saúde recorda a fala vagarosa do ministro. Eles têm muitas ações, do ponto de vista da entrega da soberania, mas o Ministério da Saúde é parado, inoperante.

AND – De que forma a miséria interfere na Saúde do brasileiro?

TM – Acentua-se, cada vez mais, a preocupação com determinadas patologias, em detrimento de outras, mais comuns, mais corriqueiras, que estão sendo relegadas a segundo plano. Até porque essas patologias mais comuns têm origem nas péssimas condições de vida da população brasileira, que não tem saneamento básico e se alimenta mal. Com o saneamento básico e a alimentação adequada se eliminariam, pelo menos, 90% dessas patologias, a maioria delas, doenças de carência. Agora, as patologias degenerativas, como o infarto, por exemplo, são menos frequentes. Então, o governo, quando falasse em Saúde, teria que investir em saneamento básico, em uma política habitacional adequada e em uma alimentação com um mínimo de valor calórico-protéico.

O pobre já foi uma figura digna, respeitável, no sentido de não ser tratado como marginal. Hoje, você olha para o pobre e ele tem cara de faminto, parece que veio de um campo de concentração, está desnutrido. Leonel Brizola costuma dizer: “Antigamente o pobre não era miserável.”

AND – Como deve ser combatida a desnutrição?

TM – Essa questão da desnutrição não pode ser combatida demagogicamente, como hoje se faz, através de um programa. Um governo sério não combate a desnutrição através de programinhas. Isso é um embuste, uma vergonha. A desnutrição se combate com emprego, para garantir salário, habitação e alimentação. Esse programa não tem direção, só atinge a superfície e, assim mesmo, muito mal, causando constrangimentos e problemas, já que eles dão, por exemplo, 50 reais para uma determinada família e as famílias vizinhas não recebem nada, o que revela o aspecto discriminatório do programa.

AND – Como o senhor avalia o ensino da medicina hoje em dia?

TM – O ensino médico no Brasil, lamentavelmente não está a serviço da população. A formação dos médicos hoje é toda voltada para os interesses das multinacionais de medicamentos e dos equipamentos. Isso significa aprender a lidar com equipamentos sofisticados e a prescrever o que as grandes indústrias farmacêuticas definem como melhor opção terapêutica. O “olho clínico” da medicina à beira do leito foi substituído pelo equipamento de última geração. A soberania da clínica deu lugar à soberania do equipamento. Do ponto de vista humano, da relação médico-paciente, da formulação diagnóstica, o velho exame clínico é decisivo.

AND – Porque os médicos brasileiros têm que prescrever medicamentos que nos são impostos pela indústria farmacêutica internacional?

TM – O Brasil não produz equipamentos médicos de alta tecnologia, tampouco dispõe de uma indústria farmacêutica que atenda às nossas necessidades; o país importa tudo, porque não investimos em pesquisa clínica nem de base, o que inclui a química fina que forneceria os sais básicos para a indústria farmacêutica. E existe interesse econômico nisso. As corporações internacionais de medicamentos só têm interesse em produzir fármacos para as doenças de ocorrências mais frequentes nos países desenvolvidos. Na Dinamarca ninguém vai morrer de malária ou de parasitose intestinal. Então lá eles têm interesse em pesquisar os males advindos do excesso de colesterol, porque comem muita gordura. Se você precisa de um remédio para combater a malária ou a esquistossomose, por exemplo, vai ficar bastante difícil consegui-lo porque as multinacionais não têm interesse em produzir fármacos para doenças características de países pobres, periféricos.


*O Dr. Thelman Madeira de Souza é Médico Auditor do Ministério da Saúde e ex-subsecretário estadual de Saúde

Mas o que são políticas públicas?

Grosso modo, as políticas públicas são as políticas básicas (atendimento das necessidades básicas da população), como as:

1Políticas sociais clássicas: exigências mínimas do que poderia se chamar de Estado democrático, traduzidas em investimentos obrigatórios na política salarial, previdenciária e trabalhista de uma maneira geral, saúde, educação, etc.

2Políticas do sistema produtivo: estratégias nacionais que decidem e asseguram os padrões de crescimento industrial e agrícola (o que produzir, aonde, como produzir, para quem produzir etc.)

3 Políticas de utilização do meio geográfico e de reordenação do espaço nacional: habitação, abastecimento, saneamento, utilização/proteção das fontes de matéria-prima e de todo o meio geográfico, constituindo-se em políticas determinadas pela estruturação das vidas urbana e rural em condições condignas.

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