O que seu mestre mandar…

O que seu mestre mandar…

Exatamente às 20h40 do dia 9 de junho, uma segunda-feira, oito militares da Aeronáutica embarcaram em um jato numa missão secreta. Não sabiam para onde iriam nem por que estavam voando. Às 23h40, o avião pousou, reabasteceu, e só voltou a decolar às 6h20 da terça-feira, dia 10. Três horas e 40 minutos depois, o jato aterrissou na área de uso militar do Aeroporto Internacional da capital de um país latino americano. Só então os militares souberam de que se tratava a missão. Uma coluna guerrilheira, necessariamente tratada por “terrorista”, havia ocupado um canteiro de obras e tomado como reféns 71 pessoas. A missão dos militares era rastrear toda a região de floresta, procurando interceptar transmissões de rádio e celulares via satélite feitas pelos “terroristas”.

Missões para o USA

A operação descrita acima se deu no Peru e não foi levada a cabo por nenhuma força delta de um filme anticomunista de Hollywood. Foi real, e o USA nem teve que se preocupar, já que dispunha do Estado brasileiro, seu mais fiel cão de guarda na América do Sul, no momento. O governo Luiz Inácio tem cumprido destacado papel na defesa dos interesses ianques no continente americano e também na África — o que se tenta passar por espírito liderança. Mas como se deve chamar a vaca que carrega o badalo? Líder ou agente do fazendeiro?

Existem diversos exemplos do papel que tem jogado o Estado brasileiro neste sentido, mas, nos detenhamos um pouco mais na missão acima descrita. O avião utilizado foi o Embraer 145-FAB R-99B, parte da frota do Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), um aparelho de monitoramento para regiões em que os satélites são ineficientes.

A missão continua secreta, tanto no Brasil como no Peru, não sendo assumida por nenhum dos dois governos, mas não faltaram estratégicos vazamentos. Segundo a revista “Isto é”, um militar não identificado afirmou que “a missão foi secreta, mas serve de exemplo para ilustrar como o Sivam pode funcionar para toda a região, e não apenas para o Brasil.” E completa: “É importante que o Brasil comece a trabalhar em conjunto com os países vizinhos.” Mais à frente, outro comentário de oficial da aeronáutica: “Não maculamos a soberania do Peru sobre seu território e comprovamos que a melhor política para a América do Sul é a colaboração em todos os sentidos, não só no econômico.”

Se o governo submisso do Brasil, cumprindo as ordens do amo imperialista e com a anuência do governo títere do Peru, mobiliza suas forças armadas para combater o povo vizinho em luta, como falar em soberania? De fato, não se pode falar em quebra do que já foi espatifado. A prova disso veio pouco tempo depois e a ação na selva peruana foi fundamental. Trata-se do encontro do Mercosul, 25 de agosto, aonde, graças ao empenho de Luiz Inácio, foi assinado um tratado de cooperação econômica com o Peru. A idéia é criar uma zona de livre comércio na América do Sul com a tarefa de abrir espaço para a Alca. Como bônus extra, acontece a inclusão do Peru no Sivam. Já não são mais necessárias missões secretas, e os radares de Sam podem monitorar o Peru, a partir do Brasil. A idéia é expandir o serviço para outros vizinhos.

As relações com a Colômbia não são diferentes. O Brasil se dispõe a sediar um encontro entre as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e representantes da ONU, ao mesmo tempo em que, a título de ajudar o vizinho a combater o narcotráfico, triplica o contingente do pelotão do Exército em São Gabriel da Cachoeira, perto da fronteira com aquele país. O pelotão será transformado em brigada com 2.500 soldados e contará com um ou mais esquadrões de helicópteros.

Nem Roosevelt arrumou um big stick1 tão prático

Uma proposta como a unificação militar da América Latina não poderia aparecer e permanecer nas entrelinhas da declaração de uma “fonte militar não identificada”. Só poderia aparecer se fosse embalada para presente. E José Dirceu usou como papel de presente a declaração sobre a iminência de uma ocupação militar da Amazônia pelo USA. Ora, seria de se esperar que os tradicionais veículos sabujos do império saíssem em garrafais manchetes de protesto, o que não aconteceu. Este fato é plenamente justificado pelo conhecimento que os mesmos tinham de que tal declaração significava, simplesmente, diversionismo.

Quem conduz uma administração de forma tão afinada com os interesses da metrópole só pode se pautar no plano externo, de modo a dar sequência à sintonia.

Para que serviria então uma unificação dos exércitos da América Latina? Claro que para reprimir o povo em luta e melhor defender o patrimônio dos patrões do Norte. Tal proposta não tem muita criatividade, pois não passa de uma versão da OEA, sob o manto da qual os ianques arquitetavam suas agressões a quem aspirava qualquer nesga de soberania. Mas, apresenta uma vantagem (para eles, é claro): tenta suprimir, ou ao menos postergar, uma intervenção direta do império — o “grande porrete é local”.

O primeiro encontro com o “companheiro” Bush

Não é demais lembrar que antes de tomar posse, Luiz Inácio apresentou-se para render as homenagens ao chefe do império, recebendo a incumbência deste de “liderar” a América Latina rumo ao abatedouro.

A consequência mais imediata da implementação dos ordenamentos imperiais foi o surgimento do consenso de Cuzco, onde, mais uma vez, a pompa é a embalagem e a trampa o conteúdo. É necessário escancarar os “inocentes” acordos bilaterais e as declarações de intenção para ficar bem claro que aí estão representados, de um lado, o explorador e do outro, o explorado. E nada engana tão bem como usar um pau mandado para cumprir a missão.

Analisemos a atuação da gerência brasileira junto às crises do Paraguai, Argentina, Bolívia, Colômbia, Peru e até Venezuela, e indaguemos a quem ela serviu. Não será difícil chegar à conclusão de que, em todas elas, os interesses do império foram resguardados.

Implantar a Alca até 2005 é uma necessidade dos ianques para sair de sua crise de superprodução, aumentar sua taxa de lucro e se colocar em melhores condições para enfrentar Europa, Japão, China e Rússia.

A condição de detentores de armas nucleares coloca todas estas potências em pé de igualdade, do ponto de vista militar. Tanto é assim, que as agressões das potências imperialistas só se verificam contra países inermes atomicamente.

A Alca faz parte de mais uma estratégia do império para dominação daquilo que ele considera o seu quintal. Estes, entretanto, são os aspectos mais gerais e não revelam toda a profundidade em que esta dominação é exercida e os mecanismos que a garantem. Ou seja, só será possível realizar uma super exploração dos países das Américas se, ao lado e concomitante, for aplicada a mais feroz repressão sobre os povos em luta. Para que isto aconteça, urge a “pacificação” e aí entra o papel do gerenciamento petista no Brasil.

Um bom cão de guarda também faz política

A eleição — se é que se pode chamar assim — de Kirchner na Argentina encerrou um período insurrecional naquele país, onde, mais uma vez, o povo, na ausência de uma direção revolucionária, foi traído por suas falsas lideranças. Tornou-se necessário legitimar e apoiar o novo governo para que os ânimos continuassem calmos, viagens para cá e para lá, acordo com o FMI renovado, até que em outubro os dois países assinam o consenso de Buenos Aires. Declaração de Luiz Inácio sobre o consenso: “Acredito que o Brasil e a Argentina jogam um papel de tamanha responsabilidade no sucesso do Mercosul, e na América do Sul, e um papel importante nas conquistas que possamos ter nos organismos internacionais, como a Alca e OMC, que não nos será dado o direito de estarmos separados nessa caminhada que temos que fazer.” (Folha de São Paulo, 17/ 10/2003). Não se trata aqui de uma simples aceitação do inevitável, como se tenta passar, mas de assumir o papel de promotor da Alca de forma cristalina. Até para os ianques a Alca deve ter início em 2005, mas Luiz Inácio já a chama de organismo internacional, da mesma ordem que a OMC. É muita pressa de fazer a vontade do amo. Então falar em arrancar alguma coisa, que não o próprio escalpo, soa cômico.

A parceria com a Argentina foi importante para a “solução negociada da crise” boliviana. O assessor de Assuntos Internacionais da Presidência da República e o presidente brasileiro viajaram para a Bolívia e, em conjunto com emissários argentinos, se reuniram com o presidente deposto Sánchez de Lozada, com o ex Paz Zamora, do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR, sigla em espanhol), com a base do governo e com a oposição confiável e capitulacionista, Evo Morales. Tudo para garantir a desmobilização do povo, sem nenhuma mudança de fundo.

Na África o governo brasileiro também tem cumprido seu papel de defender os interesses imperialistas, além de, é lógico, apresentar mais um número da parte risível do circo, ao se surpreender com a limpeza da capital da Namíbia. Não se pode esquecer que pouco tempo antes o patrão havia passado pelo continente africano, demarcando território, e uma aproximação do Mercosul com a União Aduaneira da África Austral (África do Sul, Namíbia, Botsuana, Lesoto, Suazilândia) não é uma forma de melhor negociar com os países imperialistas, mas, uma aproximação da Alca com aquele continente. Além do que, se for monitorado o montante e o destino do dinheiro levantado com as exportações acordadas na viagem à África, veremos que seu destino certamente não será o Brasil.


1 A Doutrina do Big Stick — O Grande Porrete. Política externa do USA no período Roosevelt, que preconizava a intervenção ianque em outros países para “manter a ordem”.
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