Um dos rostos mais emblemáticos do cinema brasileiro, que traduz tanto o operário, como o bandido pobre, José Dumont, depois de superar a infância difícil numa família de modestos recursos, no interior da Paraíba e as dificuldades de um migrante na cidade grande, teve que vencer, também, os obstáculos no mercado de trabalho e na produção cinematográfica brasileira, quase extinta nas décadas de 60, 70 e 80. Hoje é um ator premiado no cinema e na televisão, participando de filmes que ajudaram a levantar o cinema nacional.
Nascido na cidade de Belém de Caiçara, Paraíba, em 01/08/1950, José Dumont começou a atuar no teatro ainda nos anos 70 e já participou de mais de trinta filmes, entre eles: Lúcio Flávio — O Passageiro da Agonia, Gaijin, O Homem Que Virou Suco, O Baiano Fantasma, Avaeté, Tigipó, A Hora da Estrela, Brincando nos Campos do Senhor, Kenoma e Abril Despedaçado.
Na TV, além do clássico Morte e Vida Severina, José Dumont fez novelas e séries como: Terra Nostra, Brava Gente, Mandacaru, Tocaia Grande, Guerra Sem Fim, Amazônia, Rosa dos Rumos, Pantanal, Olho por Olho, Carmem, Grande Sertão Veredas, De Quina Pra Lua, Corpo a Corpo, Padre Cícero, Bandidos da Falange, Lampião e Maria Bonita (fez Zé Rufino) e o premiado Plantão de Polícia.
Autodidata, aprendeu a ler sozinho, através de folhetos de cordel que via em uma feira próxima a sua casa. Mais tarde, lá mesmo, na Paraíba, fez o curso primário e chegou até a 6ª série. Não pôde prosseguir por causa da pobreza tremenda. Brincalhão, costuma dizer que, de tão pobre, sua família fazia parte da classe miserável C, porque pobre A ele é hoje.
Mas, não se pense que Dumont parou de estudar no primário e ficou nisso. Ele lê muito e procura se informar. Está sempre inquieto e com um olhar aguçado para o mundo — o que, afirma, o ajuda a aprender a vida.
Absolutamente crítico, fala sem rodeios sobre o massacre que a cultura popular, democrática e nacional sofreu a partir da ditadura. De forma objetiva e direta explica o cinema brasileiro, hoje, e no futuro.
Na trilha de um ator popular
Tudo começou quando, em 1972, o brasileiro nordestino José Dumont deixou a Paraíba para tentar ser marinheiro em Santos, SP, depois de concluir um curso na Marinha Mercante. Como não conseguiu embarcar, ficou em São Paulo e trabalhou como carteiro, coisa que durou dois anos e pouco. “Tenho um caminho do migrante comum. Minha história é como a de qualquer outro migrante, que vem para a cidade grande tentar escapar da miséria”, define.
Como vivia isolado, solitário na cidade grande, em um contexto cultural bem diferente do seu, começou a freqüentar a noite paulistana em busca de boas companhias, de amigos. Em um determinado dia, quando foi assistir a uma peça de teatro, sem que planejasse, travou amizades com pessoas do meio artístico. Por isso, foi convidado a participar de uma peça que iriam encenar. Aceitou, sem saber que começava, naquele momento, sua carreira de ator.
“Era uma peça de autoria do cearense Aroldo Serra, chamada O Morro do Ouro. Uma história de fundo social, que se passava em uma favela de Fortaleza. Igual a qualquer morro do Rio, só que em um contexto de quase 30 anos passados — 1974, 75. “Acabei fazendo o personagem porque tinha a ver com o meu tipo físico, com a minha cara, as marcas emocionais que, ao longo da vida, foram impressas em mim”, conta. Sem curso superior de cinema, teatro ou em qualquer outra área do saber, ele não tinha nenhuma atuação ou histórico teatral para oferecer ao grupo. Mas, sim, um lastro cultural de vivência muito grande dentro do contexto que seria apresentado. Na mesma época, a TV Globo decidiu fazer um programa especial para a televisão, nos moldes de caso verídico e, exatamente por isso, teria que ser rodado em São Paulo, com um ator desconhecido. Foi assim que o encontraram. Novamente o seu lastro cultural, o aspecto emocional e sua própria face serviram de depoimento. A partir daí sua carreira começou a tomar forma. A convite de Zelito Viana, abandonou seu emprego de carteiro e mudou para o Rio a fim de filmar Morte e Vida Severina.Um documentário-drama, que tinha como pano de fundo poemas de João Cabral de Melo Neto .
O próximo filme foi Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia, de Hector Babenco. Foi o assassino de Lúcio Flávio. Depois vieram pequenas participações em vários filmes, como O Coronel Delmiro Gouveia, de Geraldo Saro, e Tudo Bem, de Arnaldo Jabour. Gaijin, de Tizuca Yamazaki, proporcionou-lhe o seu primeiro prêmio, no Festival de Gramado. Vivendo um migrante nordestino em O Homem Que Virou Suco, de João Batista de Andrade, foi premiado nos festivais de Gramado, Brasília, Moscou, França, Espanha e outros. “O filme fala de contestação, dos trabalhadores, de sindicato e do migrante dentro de uma sociedade de alto porte, esmagado por ela. Para mim, dos filmes que participei, esse foi o que teve maior impacto social”, revela.
Com O Baiano Fantasma, de Denoy de Oliveira, ganhou prêmios em Gramado, Brasília, São Paulo e Cuba; com Kenoma, de Eliane Caffé, recebeu o prêmio de melhor ator no festival de Brasília, além de vencer em Biarritz, na França e no Festival de Cinema e Cultura da América Latina.
Também foi premiado com Avaeté, de Zelito Viana, e Tigipió, de Pedro Jorge de Castro. Outros papéis marcantes no cinema incluem A Hora da Estrela, de Suzana Amaral e Brincando nos Campos do Senhor, de Hector Babenco.
Abril Despedaçado, de Walter Salles, que estreou em maio deste ano, é seu mais recente filme. “É filme sobre guerra de família, com uma mensagem humanista. Uma estória que sintetiza todo o procedimento da humanidade. É uma adaptação do livro de Ismael Kadaré, de mesmo nome, que foi transposto para o nordeste, sem perder o sentido universal”, diz o ator acrescentando que, sempre fez o pai social, retirante, com muitos filhos, mas, nesse caso, o pai tem uma função histórica.
Paralelamente a todo esse trabalho no cinema, José Dumont agia da mesma forma na televisão, não dando nem para saber se foi um trabalho ou outro que lhe trouxe mais notoriedade. Um exemplo é o seriado Plantão de Polícia, em que participou do primeiro episódio vivendo o Paraibinha. Com ele, recebeu o prêmio “revelação” de ator. “Era a estória de um homem pobre que saiu na rua com uma televisão nas costas e foi confundido pela polícia com um marginal. Levado para a delegacia, por não ter documentos, foi preso. Muito forte, no que diz respeito às injustiças sociais, discriminações, as cenas causaram um impacto muito grande”, recorda. Outro trabalho extraordinário na televisão foi Morte e Vida Severina. Uma ficção baseada na obra de João Cabral de Melo Neto, dirigida por Walter Avancini, diferente da que foi feita para o cinema. “Essa obra ficou gravada na memória de quem viu. Em termos de valor, não se discute”, diz.
Dumont lembra que Morte e Vida Severina, Plantão de Polícia e outros seriados da época tiveram uma grande importância para a TV Globo, que, na época — final da década de 70, início de 80 — não era hegemônica como hoje e precisava entrar nos mercados mundiais, principalmente na Europa, que não aceitava algo ruim.
“Morte e Vida Severina ganhou vários prêmios no Brasil e na Europa. Apesar disso, temos que lembrar que, recentemente, quando passou na televisão, já não provocou o mesmo impacto. Não foi porque envelheceu. Mas, porque temos, hoje, três gerações formadas a partir da ditadura, com gosto americanizado, criados por aqueles que fizeram tudo que os americanos mandaram, através de um intenso trabalho de massificação, alienação da população e abandono da cultura nacional”, nota.
Para Dumont, seriados como esses foram abandonados, justamente, por causa da massificação americana, ou como resultado desta, já que mostra, denuncia a realidade brasileira e faz o povo pensar. “A cabeça das pessoas, ou dessa nova geração, em sua maioria, está atenta à cultura norte-americana da violência e do besteirol, do entretenimento por entretenimento”, verifica.
Trabalho “bem” feito da ditadura, ou melhor, dos ianques
Para Dumont, uma das coisas que a ditadura, mancomunada com os interesses ianques, fez muito bem, no mau sentido é claro, foi impedir que as gerações mais novas tivessem acesso à cultura nacional, deixando de se ver no espelho e adotando um tipo que não é o seu. “Por aqui não houve revolução, como muitos dizem, mas sim, uma armação dos americanos, da CIA, com os lacaios daqui, que sempre fizeram a sua vontade”, fala.
“Ficamos por trinta anos com a cultura colocada de lado, porque não era um assunto que interessava a eles. Por isso, o cinema nacional foi praticamente extinto e a televisão ocupou espaço, já que fazia a sua política, passando todo tipo de lixo estrangeiro. Só não morreu porque é um cinema forte.”
A invasão da televisão na “ditadura americana”
Para o ator, criaram uma geração de gatas borralheiras, em que todos ficam em casa vendo novela. Isso não foi opção, mas algo imposto ao povo, de várias maneiras. Entre elas, tirando seu dinheiro, através da desvalorização dos salários e inflações. Por isso o ator afirma: “Ninguém consegue explorar um país desse tamanho, sem fazer algo assim tão medíocre, mas, aplicado no mundo inteiro, em qualquer lugar que se queira comandar”.
Com isso, José Dumont diz que, praticamente, acabaram com as salas de cinema, teatros e espetáculos diversos, deixando o povo sem opções, encurralado dentro de casa. E aqueles que saíram — com uma pequena exceção àqueles que foram à procura do cinema nacional —, encontraram um cinema repleto de filmes americanos, fazendo, nesse sentido, o mesmo papel da televisão.
“O Brasil virou um local para exibição de filmes americanos, porque não se trata nem de filmes estrangeiros, já que os franceses, holandeses, suecos, indianos e outros, não passam por aqui. Além disso, esses filmes não pagam nada para serem exibidos em nosso país e isso não acontece no exterior. Na França, por exemplo, a cada 10 dólares, 1 fica no país. Depois, esse dinheiro é reaplicado na própria cultura”, conta.
Falta de mercado e alternativas
José Dumont diz que o ator, no Brasil, depende da televisão para sobreviver: “Só temos uma televisão, que é a TV Globo, fazendo e desfazendo, ditando o bonito e o feio. Não tenho nada pessoal contra ela e trabalho lá sempre que me chamam, porque preciso trabalhar, mas não posso ocultar a verdade: ela manda no mercado e se não for dela está fora”, declara.
Para ele, se houvessem várias emissoras em cada estado produzindo dramaturgia, poderia haver popularização, de fato, deste veículo, abrindo um enorme leque de opções para o ator trabalhar. Ao mesmo tempo, ajudando o brasileiro a conhecer e valorizar o que é seu.
Com isso, algo demonstrativo da realidade de cada estado brasileiro ou do dia-a-dia de cada povo poderia ser produzido, e, assim, discutir com ele assuntos como a questão agrária e movimento camponês. “Na verdade já foram feitos filmes que abordam temas como esse, falando do drama do homem do campo e a migração, como Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho, mas não foi exibido nos locais onde estão acontecendo essas lutas”, comenta.
O ator conhece a realidade desse povo que luta pela terra. Na sua própria família alguém viveu um drama como esse, mas, acredita que a maioria das pessoas não tem uma visão profunda desta questão nem de como transformá-la. Além disso, tocar neste assunto pode gerar perseguições, difamações e atrair contra si até a morte. Dumont acredita que se houvesse uma produção voltada para o realismo, para uma narrativa da vida objetiva e dos interesses concretos da esmagadora maioria do povo brasileiro “seria possível, por exemplo, exibir um filme sobre reforma agrária, sem partidarismo, em uma cidade do interior de Rondônia. Depois, abrir debates, esclarecer e discutir a questão com a população local. Isso é ação”.
Dumont considera que Kenoma, por exemplo, é um filme que deveria ser comprado pelo governo federal e exibido em todo o país, porque trata da questão do uso de outras fontes de energia em substituição à energia elétrica e permite esclarecer ao trabalhador que ele pode tirar energia até do quintal da sua casa. No entanto, nem na capital da Paraíba passou.
Ele acredita também que se o país não levar cultura para o interior, não estará fazendo cultura de fato. “No interior não tem cinemas, teatros, salas de exposições de artes, livrarias, museus, enfim, não tem nada”, se indigna.
Segundo o ator, em um mundo de economia virtual falida, o Brasil deveria procurar o seu caminho, e tem condições para isso. “Tem que fazer as coisas de maneira certa, deixando os discursos idealistas de lado e partindo para a ação, no sentido de levantar o país como um todo, na cultura, na economia, educação e tudo mais, ao invés de seguir essa ‘vaca braba’, que é o modelo neoliberal”, defende.
Em termos de uma produção verdadeiramente nacional, popular e democrática, o ator acredita que isso não pode acontecer, caso não haja verdadeira democracia no país. “Se nosso país não é democrático não podemos ter uma produção democrática. Um país que tem somente uma televisão, não pode ser chamado de democrático. Além disso, é capacho dos Estados Unidos que difunde toda a ‘porcaria’ produzida para o resto do mundo e nós somos mais uma vítima”, afirma.
Por causa dessa obediência aos moldes americanos, a televisão brasileira adota o modelo hollywoodiano de beleza. “Se não fizesse algo que tocasse as pessoas estaria frito, porque não tenho o estereótipo de galã. Existe uma escravidão a um padrão de beleza européia, que tira muita das possibilidades de atuação de atores como eu, que têm um tipo mais popular”, diz.
Ele diz que, muitas vezes, atores nordestinos só podem fazer papéis de nordestinos. “Eu, por exemplo, nunca fui contratado de nenhuma emissora, sempre trabalhando como free lancer. Como qualquer pedreiro e carpinteiro, trabalho, recebo o dinheiro e ‘tô’ fora, porque, naturalmente, nunca estive dentro de seus padrões de beleza.”
Bons filmes sem condições de lançamento
Felizmente, segundo o ator, o cinema nacional está ressurgindo com muita força, mas pode parar por falta de lançamentos. “Para lançar um filme é necessário dinheiro destinado a anunciá-lo. As televisões não querem ceder espaços, porque anunciam somente seus próprios filmes, e, quando cedem, cobram um valor altíssimo. Além disso, as salas de cinema disponíveis estão escassas e, geralmente, já têm contratos para exibir os filmes americanos. Temos somente cerca de 1.300 salas de cinema em todo o país”, conta.
Além disso, há a questão dos preços elevados das produções. Dumont afirma que, ao contrário do que muitos pensam, o digital não barateou, de verdade, a produção. Ele facilitou a realização do filme, mas os aluguéis, as câmeras, o negativo, a edição, e todos os produtos necessários à produção, são extremamente caros.
“Hoje, uma pessoa pode fazer um filme até no computador, em casa, mas está longe de ser barato. Na verdade, essa nem é a questão. O que precisamos é ter mais salas de cinema para poder passar nossos filmes”, argumenta.
Apesar de toda dificuldade o ator considera que o momento é ideal para as investidas do cinema nacional. “Aproveitando que os americanos começaram a cair e perder espaço, e isso é irrevogável, a tendência é que o nosso cinema volte a ocupar o seu lugar, caso o país sofra algumas reformas políticas, fiscais e culturais básicas, porque cinema não é algo isolado”, aconselha.
Ele nota que essa melhora é conseqüência de um esforço mútuo de um conjunto de pessoas: cineastas, atores, escritores, críticos e outros profissionais engajados em projetos de cinema. “À sua maneira, cada um vem ocupando seu espaço. Todos estão procurando fazer o melhor possível para levantar o cinema nacional”.
“Walter Salles, por exemplo, é uma das pessoas que mais tem puxado o cinema brasileiro para cima. Os seus filmes têm dado credibilidade ao nosso cinema, internamente e também lá fora. Temos uma safra nova trabalhando para o mercado, mas, com qualidade, postura, linguagem e com a preocupação de não fazer nada idiota”, acrescenta.
Cinema brasileiro hoje: tragicomédia é o caminho.
José Dumont acredita que o brasileiro, por natureza, gosta mais da tragicomédia, que significa abordar temas sérios de uma maneira leve ou engraçada. “Cada povo tem uma característica e a nossa se expressa através da gestualidade, da maneira de conduzir suas emoções, sentimentos, com um cinema marcado por densidade, poesia e espontaneidade. Mas, uma das coisas que mais gostamos, é de falar daquilo que é sério com humor. Mazzaropi é um exemplo disso”, argumenta.
“Hoje é enfatizada a comédia-comédia ou besteirol. Com isso, o povo acabou perdendo a noção de conteúdo, lendo como triste qualquer coisa que seja tensa. Por isso, não gostou da reprise de Morte e Vida Severina, mas amou O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Também uma obra-prima, absolutamente genial, mas com essa característica do humor”, acrescenta.
Para ele, a tragicomédia é o caminho para começar a reconstruir as cabeças americanizadas da população. “Ela é a temática ou linha que mais me agrada e foi nesse molde que fiz O Homem Que Virou Suco, por exemplo. Creio que esta é uma maneira de competirmos com o cinema americano, já que em efeitos especiais não podemos, porque não temos dinheiro para isso”, comenta.
A tragicomédia é, para Dumont uma espécie de junção entre a chanchada — que fez rir famílias inteiras de brasileiros nas décadas de 40 e 50 — com o cinema novo, nascido no final dos anos 50, abordando assuntos sérios com poesia e realismo, dando voz ao povo. “O cinema novo veio substituindo a chanchada e, provavelmente, faria a cabeça dos brasileiros, se não fosse impedido ou exterminado pela ditadura. A tragicomédia junta elementos desses dois gêneros de expressão do cinema, aproveitando a densidade e poesia do cinema novo com cômico da chanchada”, explica.
O ator é absolutamente otimista quanto ao futuro do cinema nacional e afirma que os filmes lançados nos últimos anos adquiriram um meio termo entre ideologia, conteúdo, e forma. “Também se tornaram um espetáculo com bom som e boa imagem. Enfim, com as propostas de arte que ele tem que ter. Além disso, temos aqui uma ótima geração de atores brasileiros como Rodrigo Santoro, Selton Mello e Matheus Nachtergaele”, finaliza.