O seguro no comércio da Saúde

O seguro no comércio da Saúde

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A assistência à saúde é definida pela Constituição como direito do cidadão e dever do Estado. Trata-se de cláusula programática: traça uma diretriz, mas não obriga o governo. A consequência é o descompromisso do poder público. Como estamos diante de um serviço essencial, o capital privado ocupa este espaço, transformando-o em um negócio. Ao alto custo dos serviços soma-se o lucro, o que impossibilita o acesso da maioria da população ao atendimento. Logo aparece uma forma de “socializar” as despesas, mantendo o rendimento do capital: o seguro saúde.

O sistema previdenciário estatal é então substituído por um sistema securitário privado — pelo menos para quem pode pagar por ele. O Estado, no entanto, continua a arrecadar compulsoriamente de todos a contribuição previdenciária, onerando o contribuinte. Quanto maior a adesão ao sistema privado, menor a despesa estatal. Os sucessivos governos enxergam aí uma forma de aliviar o orçamento. O sistema privado é permanentemente incentivado. Para tanto, o Estado cria legislação pertinente.

A referida legislação deveria considerar vários aspectos da doutrina que rege os seguros:

Seguro é uma forma de assistência financeira à ocorrência de um evento de risco (isto é, que pode ou não ocorrer). Trata-se de uma modalidade de contrato onde o pagamento é antecipado (pré-pagamento) e geralmente efetuado em parcelas mensais (prêmio).

O segurado faz jus, pelo pagamento do prêmio, a uma promessa de prestação (indenização).

Não há promessa de prestação de serviços, mas de indenização (em dinheiro).

Obs: a dificuldade para se aperceber dos problemas inerentes a esta forma especial de contrato é a de inverter o raciocínio comercial habitual, ao se pensar sobre seguros. A lógica é a inversa à habitualmente praticada no mercado. Exemplos: o lucro é tanto maior quanto menor o serviço prestado; o pagamento do prêmio é feito antes da prestação dos serviços.

O risco financeiro da seguradora é previamente calculado; a probabilidade do evento ocorrer, ao longo de determinado tempo, é conhecida.

Estatisticamente, a precisão do cálculo é tanto maior quanto maior o número de segurados.

A partir de um determinado número de contratos (hoje estimado em 20 mil), o risco se torna mínimo (desprezível, na prática). Existe certeza quanto ao valor do custo.

A este custo, é adicionado o lucro desejado; chega-se ao valor do prêmio, isto é, ao valor da mensalidade a ser paga pelo segurado.

A partir deste número de contratos, portanto, existe também certeza do lucro.

A variação na efetivação do risco aumenta o lucro. Se o evento segurado ocorrer com frequência menor que a prevista, a seguradora embolsa a diferença. Se o evento ocorrer com frequência maior, é excluído da cobertura (catástrofes naturais, guerras, convulsão social, calamidade pública).

A certeza do lucro aumenta face à circunstância de pagamento prévio. A indenização só é paga se o segurado estiver em dia com o pagamento do prêmio, em caso contrário, se o segurado estiver em atraso com as prestações, ele não só não tem direito ao que contratou, como também perde o que já pagou. A empresa de seguros tem um lucro fantástico, sem qualquer despesa, se seu cliente não pagar! (recorde-se que, neste ramo, o raciocínio é o inverso do habitual). Não bastasse isso, se ela não prestar o serviço contratado — se o cliente não precisar do serviço, por exemplo — ela embolsa o total pago, sem qualquer contestação e de forma legítima.

O seguro recebe por antecipação. Não está sujeito a prejuízos por inadimplência dos clientes (haveria outra área de negócios com esta característica?).

Os resultados da aplicação financeira deste capital recebido por antecipação aumentam o lucro da seguradora (é o chamado lucro não-operacional); se houver retardo no pagamento da indenização, esta margem aumenta na proporção em que se dilata o tempo entre a ocorrência do evento segurado e o efetivo pagamento da indenização.

É vedada às seguradoras a prestação dos serviços segurados. Exemplo: seguro de carro contra terceiros. A seguradora paga o dano havido, mas não pode manter oficina própria para execução do serviço.

Razões:

a) prestando o serviço diretamente, a seguradora teria objetivo de lucro neste serviço, em sinergismo com o lucro do seguro. A diminuição dos custos na prestação dos serviços aumenta o lucro da seguradora, pela fraude na projeção (planilha) dos custos do prêmio, que não são corrigidos;

b) a tendência para a má qualidade dos serviços prestados (como forma de diminuir custos) é inevitável;

c) a concentração dos serviços em oficina própria (ou contratada para este fim) promoveria uma demanda artificialmente aumentada nesta oficina, gerando diminuição de custos pelo aproveitamento integral dos recursos (mão de obra, espaço físico, aparelhagem, etc.), além da economia de escala (melho-res condições de compra de material, giro mais rápido de estoques, etc.). Em face desta reserva de mercado, haveria concorrência desleal com os demais prestadores de serviço do mercado, que não teriam condições de manter preços competitivos.

Pelos mesmos motivos, a indenização é paga diretamente ao segurado, sendo vedado o pagamento diretamente ao prestador do serviço.

Razões:

a) se uma oficina for credenciada nestes moldes (contratada pela seguradora para prestação terceirizada dos serviços segurados), ela teria as mesmas condições de concorrência desleal no mercado em relação às concorrentes não credenciadas, provocando o fechamento destas (ou forçando o credenciamento de todas as oficinas, o que avilta o mercado ao inviabilizar a economia de escala para todas, pela diluição da clientela;

b)o estabelecimento credenciado opera, ainda, com outra anomalia: a contratante dos serviços (a seguradora) não está interessada na qualidade dos serviços prestados. Aliás, não está interessada sequer que o serviço seja prestado. Seu único interesse é que o custo seja baixo (ou nulo). Até porque o objetivo da seguradora não é a cobertura do evento segurado. Seu objetivo, na verdade, é o lucro, e o serviço prestado se torna um item das despesas a ser diminuído ou, se possível, eliminado;

c) em decorrência desta situação, os demais estabelecimentos do mesmo ramo, alijados do mercado, não têm alternativa senão aderir ao sistema proposto, abrindo mão da qualidade do trabalho, das matérias primas de melhor nível, do pessoal de maior capacitação profissional e assim por diante, para tornar seu custo compatível com a oferta de pagamento da contratante. Esta necessidade de nivelamento por baixo diminui a oferta de empregos, comprime salários, acaba com o exercício do trabalhador autônomo, deforma o perfil da profissão envolvida;

d) por fim, entra em cena o direito ao livre arbítrio do usuário na escolha do prestador do serviço. É o que prevê o sistema de seguros, não só por ser esta a característica do contrato feito (e já pago), mas, sobretudo porque, conforme o objeto do seguro (isto é, conforme o serviço a ser prestado), temos o envolvimento de direitos humanos fundamentais (de garantia constitucional) e de direitos legais (prerrogativas fixadas em leis). É o caso específico do seguro na área de saúde: entram em jogo direitos pessoais, como privacidade, intimidade, direito ao sigilo, para não falar de valores como confiança, credibilidade, pudor, empatia, entre tantos outros.

Ficam absolutamente claros os motivos da proibição do acúmulo de assistência financeira com assistência técnica pelas seguradoras, obrigando-as a praticar os preços de mercado. Em consequência, às seguradoras não importa quem seja o prestador do serviço segurado: ela pagará o valor segurado, até por já ter considerado este valor de mercado no cálculo atuarial (e na cobertura contratada ou oferecida).

Da exposição destes conceitos, depreende-se claramente a imperiosa necessidade de regulação do mercado de seguros pelo Estado, face ao imenso campo de possibilidades de fraudes aberto a quem resolver explorá-lo de má fé:

  • envolve poupança de economia popular;
  • o segurado já pagou o prêmio. O Estado deve garantir o pagamento da indenização (até porque o segurado pode estar morto na ocasião, como acontece no seguro de vida);
  • é necessário, portanto, que as empresas seguradoras demonstrem capital e liquidez compatíveis com o montante segurado;
  • é obrigatório o “seguro do seguro” (chamado resseguro), para honrar a indenização, em caso de inadimplência da seguradora (se não existisse o resseguro, a sociedade — o Estado — arcaria com este ônus).

A primeira regulamentação sobre o sistema privado de saúde aparece em 1966: é o Decreto-Lei 73, de 21 de novembro de 1966 (assinado pelo militar Castelo Branco), atualmente em vigor com as modificações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 296, de 28 de fevereiro de 1967:

“Art. 129. Fica instituído o Seguro-Saúde para dar cobertura aos riscos de assistência médica e hospitalar.

Art. 130. A garantia do Seguro-Saúde consistirá no pagamento em dinheiro, efetuado pela Sociedade Seguradora, à pessoa física ou jurídica prestante da assistência médico-hospitalar ao segurado.

§2º A livre escolha do médico e do hospital é condição obrigatória nos contratos referidos no artigo anterior.

Art. 131. Para os efeitos do artigo 130 deste Decreto-Lei, o CNSP (Conselho Nacional de Seguros Privados) estabelecerá tabelas de honorários médico-hospitalares.

Art. 132. O pagamento das despesas cobertas pelo Seguro-Saúde dependerá de apresentação da documentação médico-hospitalar que possibilite a identificação do sinistro.

Art. 133. É vedado às Sociedades Seguradoras acumular assistência financeira com assistência médico-hospitalar.”

Alguns detalhes são dignos de observação: por exemplo, abre-se a possibilidade do pagamento direto ao prestador do serviço, mas impõe-se a livre escolha deste prestador pelo segurado. Em tese, num mercado livre, não haveria possibilidade de direcionar o segurado para um prestador pré-determinado. Pura ingenuidade, como seria fácil prever. De qualquer forma, as seguradoras não podem prestar o serviço diretamente (não podem manter serviços próprios). A figura do “laranja” torna letra morta este artigo da regulamentação.

Desta forma, embora o Decreto-Lei se revista de uma aparência de seriedade, na verdade ele quebra toda a filosofia doutrinária dos seguros ao permitir o pagamento diretamente ao prestador de serviço. Acaba aí a possibilidade de livre escolha do prestador pelo segurado, acaba aí a responsabilidade do segurado sobre a despesa efetuada, acaba aí a livre concorrência entre os prestadores, acaba aí o interesse em manter ou aprimorar a qualidade dos serviços prestados. Os reflexos sobre os profissionais da área, em médio prazo, são nítidos, comandados pela decadência da remuneração.

Particularidades

Se perguntarmos a um cidadão por quanto ele segurou seu carro contra incêndio ou roubo, ele certamente saberá responder. Se perguntarmos qual o valor da franquia do seguro de seu carro contra terceiros, também obteremos uma resposta precisa. Se a pergunta for sobre o valor de seu seguro de vida, a resposta será igualmente exata. Mas, se perguntarmos qual o valor da consulta médica que seu seguro saúde cobre, a quase totalidade das pessoas não saberá responder. Justifica-se: o segurado não têm nada com isso. Ele não sabe porque isto não lhe foi informado, nem consta de sua apólice, nem há interesse ou motivação neste sentido — o dinheiro nem sequer passa por ele. É a mais grave deturpação do sistema no Brasil. Perde-se, assim, o melhor fiscal do sistema: o segurado.

O segundo melhor fiscal seria o prestador de serviços, no caso, o médico. Sendo ele diretamente interessado na sua remuneração, seria de se supor que a classe médica, orientada por seus órgãos de classe (sindicatos e associações) e pelo órgão fiscalizador do exercício profissional (os conselhos), se recusasse a receber seus honorários diretamente das seguradoras. Isto não ocorre. Pelo contrário, a Associação Médica Brasileira desfralda, como sua grande bandeira em defesa da classe, uma tabela de honorários dos atos médicos, para servir de pa-râmetro para os contratos firmados entre médicos e seguradoras. Em outras palavras, embora indiretamente, a AMB termina por apoiar o pagamento dos honorários diretamente ao médico. Os sindicatos, tradicionalmente voltados para a atividade com vínculo empregatício, bem como o Conselho, ao longo do tempo mais interessado na assistência pública, têm se limitado a apoiar a orientação geral da AMB.

O curioso é que, quando a remuneração paga aos médicos pelos seguros atinge níveis insuportavelmente baixos, os médicos se organizam em movimentos paredistas cuja base é exatamente o rompimento dos contratos: o cliente continua a ser atendido, porém remunera diretamente o profissional para obter posterior ressarcimento da seguradora. Por que esta sistemática não vigora continuamente? Ela traz embutida todas as características de um mercado livre, ao melhor estilo liberal:

1 o mercado — a lei de oferta e procura — regularia os preços. Os profissionais escalonariam seus honorários de acordo com seu conceito entre a clientela; a queda no movimento de um determinado profissional forçaria o valor de seus honorários para baixo, assim como a procura exagerada de seus serviços faria com que ele elevasse estes valores;

2 o cliente saberia avaliar melhor sua apólice de seguro e a qualidade da companhia seguradora, já que seria ressarcido pelos valores que ele contratou, em prazos também previamente combinados;

3 o frequente argumento que grande parcela da população usuária não tem recursos próprios para pagar e esperar o reembolso carece de fundamento. Hoje, o paciente entrega uma guia de honorários como garantia de pagamento do ato realizado. Basta substituir esta guia (título não executivo, de cobrança judicial difícil e trabalhosa) por um cheque consulta (título executivo), para depósito bancário imediato (no sistema de guias, a apresentação para cobrança junto ao seguro é feita no último dia útil do mês, para pagamento depois de mais 30 dias, sem correção em caso de atraso. Não há nenhuma razão para isto. A seguradora recebe o prêmio antecipadamente: já o recebeu, por ocasião do atendimento).

O sistema de pagamento pelo usuário ao médico não prevalece por uma razão simples: pela atitude dos profissionais médicos mais desvalorizados no mercado. Na verdade, a imposição de uma tabela de honorários, qualquer que ela seja, sempre vai resultar num valor acima do que estes médicos poderiam cobrar, se o mercado fosse livre. Estes profissionais, premiados com um valor proposto acima de suas expectativas, aceitam imediatamente o contrato de prestação de serviços para receber honorários diretamente dos seguros. Como vimos na introdução deste artigo, este tipo de contrato deforma o mercado. Estes médicos serão brindados com um direcionamento de pacientes em quantidade inimaginável para eles, se dependessem de seus próprios méritos (além do valor do atendimento também superar suas melhores expectativas). Feito o contrato com alguns profissionais numa dada praça, a avalanche que se desencadeia leva quase todos os demais a aceitarem o contrato, fechando o círculo vicioso.

Assim, a Associação Médica Brasileira faz o jogo das seguradoras (com prejuízo da classe que representa), ao impor, como ponto de honra, sua tabela de honorários.

É digno de nota o artigo 131 do Decreto-Lei 73/66. Ele criou, há quase 40 anos, a fraude que vigora até hoje:

Art. 131. Para os efeitos do artigo 130 deste Decreto-Lei, o CNSP (Conselho Nacional de Seguros Privados) estabelecerá tabelas de honorários médico-hospitalares.

Sem deixar claro que a tabela se prestaria a garantir os direitos do consumidor, o resultado foi a deturpação do mercado. Na verdade, esta postura se enquadrava no neoliberalismo selvagem de nossos militares americanófilos, na melhor vertente de “crescer o bolo, para depois dividi-lo”. Ao leitor atento não escapa o mérito do artigo na implementação de um modelo concentrador de renda, em detrimento dos usuários e dos prestadores de serviço, favorecendo o sistema bancário (que detém o controle da totalidade — ou quase — das seguradoras). Deve-se lembrar que o sistema de seguros existe há séculos, estando perfeitamente estabelecidas, à época, as consequências deste artigo da lei. Nada foi feito ao acaso.

A solução imediata e óbvia seria o Conselho Federal de Medicina (ou mesmo os Conselhos Regionais, que detêm autoridade para tanto) disciplinarem a matéria por meio de uma resolução, algo do gênero “é vedado ao médico contratar prestação de serviços médicos junto às seguradoras ou receber honorários diretamente das seguradoras”. Claro, haveria reação imediata dos que, menos aptos à competição, veriam sua clientela minguar.

A solução permanente, com a moralização do mercado, viria através de lei, através do Congresso Nacional, com sanção presidencial. Para tanto, seriam necessários os habituais mecanismos de pressão junto aos parlamentares, de efetivação atual impossível, em face do ponto de vista adotado pelas entidades médicas e pelos conselhos. Para se ter uma idéia dos interesses a enfrentar, basta uma análise rápida do que aconteceu quando da promulgação da última lei, como descreveremos a seguir. Para tanto, é necessário que se introduza um conceito (inacreditavelmente) implantado no Brasil: os convênios ou planos privados de assistência à saúde.

A legislação atual

Planos privados de assistência à saúde são empresas que vendem e administram seguro saúde, com um detalhe: não são seguradoras. Não estão obrigadas a resseguros, não registram capital social suficiente para cobrir os compromissos assumidos no mercado, não estão sujeitas, enfim, à regulamentação do Estado para as seguradoras, pela simples razão de não serem seguradoras. Disfarçam o nome do produto: não o chamam de seguro, mas de plano de assistência à saúde. Claro que sua existência era taxativamente proibida pela legislação. Vide Decreto-Lei 73/66, em seus artigos 134 e 135:

“Art. 134. As sociedades civis ou comerciais que, na data deste Decreto-Lei, tenham vendido títulos, contratos, garantias de saúde, segurança de saúde, benefícios de saúde, títulos de saúde ou seguros sob qualquer outra denominação, para atendimento médico, farmacêutico e hospitalar, integral ou parcial, ficam proibidas de efetuar novas transações do mesmo gênero, ressalvado o disposto no art. 135.

§1º As sociedades civis e comerciais que se enquadrem no disposto neste artigo poderão continuar prestando os serviços nele referidos exclusivamente às pessoas físicas ou jurídicas com as quais os tenham ajustado antes da promulgação deste Decreto-Lei, facultada opção bilateral pelo regime do Seguro-Saúde.

§2º No caso da opção prevista no parágrafo anterior, as pessoas jurídicas prestantes da assistência médica, farmacêutica e hospitalar, ora regulada, ficarão responsáveis pela contribuição do Seguro-Saúde devida pelas pessoas físicas optantes.

§3º Ficam excluídas das obrigações previstas neste artigo as Sociedades Beneficentes que estiverem em funcionamento na data da promulgação desse Decreto-Lei, as quais poderão preferir o regime do Seguro-Saúde a qualquer tempo.

Art. 135. As entidades organizadas sem objetivo de lucro, por profissionais médicos e paramédicos ou por estabelecimentos hospitalares, visando a institucionalizar suas atividades para a prática da medicina social e para a melhoria das condições técnicas e econômicas dos serviços assistenciais, isoladamente ou em regime de associação, poderão operar sistemas próprios de pré-pagamento de serviços médicos e/ou hospitalares, sujeitas ao que dispuser a Regulamentação desta Lei, às resoluções do CNSP e à fiscalização dos órgãos competentes.”

Novamente, as brechas da lei, associadas ao alheamento dos órgãos de defesa do consumidor e, sobretudo, dos médicos, possibilitaram o florescimento de aberrações como a Golden Cross (considerada entidade beneficente e mais, filantrópica, durante muito tempo) e cooperativas “fechadas” a novos cooperados. A comparação com o jogo do bicho é inevitável. É proibido, mas existe uma banca em cada esquina, os resultados são afixados em locais públicos, qualquer um pode jogar e “vale o que está escrito”, brocado popular para expor que a garantia está apenas dentro do sistema. Ou seja: não há garantia legal para o usuário.

Em 1983, quando o acúmulo de reclamações contra abusos dos planos de assistência à saúde atingiu o nível de clamor público, o senador Iran Saraiva apresentou o projeto de lei PL nº 93/83, no qual propunha algumas (poucas) medidas para regulamentar o sistema. O projeto tramitou por cinco anos e recebeu dezenas de emendas, além de dois substitutivos, sendo avaliado por Comissões Especiais nas duas Casas e votado uma vez na Câmara e duas vezes no Senado, resultando na promulgação da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. A sanção presidencial — sem vetos — foi publicada no Diário Oficial de 4 de junho de 1998.

Neste mesmo dia, o Executivo editou a Medida Provisória nº 1.665 (de 4 de junho de 1998), publicada no Diário Oficial de 5 de junho de 1998).

A Lei nº 9.656 tratava separadamente de dois assuntos: seguros privados de assistência à saúde e planos privados de assistência à saúde, com regulamentação absolutamente diferente para cada caso.

Dizemos que a lei “tratava” porque seus termos não estão mais em vigor. Os dispositivos referentes aos seguros foram completamente revogados pela MP 1.665. Além disso, a parte da lei que tratava dos planos de saúde foi totalmente modificada pela mesma Medida Provisória, de forma a consolidar a situação atual de aberrações doutrinária e de mercado, acrescentando o descalabro de prever que os planos privados podem manter serviços próprios de atendimento.

Isto significa que o Congresso aceita que seu texto final, sancionado pelo Presidente da República, seja modificado pelo mesmo Presidente, no mesmo dia em que foi publicada a sanção, sob alegação de que as modificações são “urgentes” e “relevantes”.

Reconhecimento de incompetência ou declaração de subserviência, há três conclusões inevitáveis:

  • a solução do problema se processa por via política exclusiva;
  • estão em jogo interesses econômicos de peso, capazes de promover a situação descrita;
  • vigora atualmente a vontade do Executivo, expressa por MP que tem força de lei e que, portanto, condiciona o Estado a um regime ditatorial.

Qualquer enfoque que não considere estas circunstâncias na análise dos temas tratados por esta lei é, no mínimo, ingênuo. Esta Medida Provisória, atualmente sob nº 2177-44, de 24/08/2001, prevalece com força de lei até que o Congresso a aprecie. Não há previsão para que isto ocorra.


*O Dr. Léo Carlos de Hildebrand Grisi é médico cirurgião.
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