O significado do triunfo de Evo Morales

O significado do triunfo de Evo Morales

O triunfo de Evo Morales deu a volta ao mundo; e à margem do dado estatístico e talvez histórico que um indígena latino-americano seja presidente da República, esta surpresa põe a nu a persistência de evidentes estruturas sociais, econômicas e políticas cuja dinâmica abriga como variável a discriminação étnica nos países latino-americanos, inclusive naqueles onde a população indígena tem um peso demográfico importante, como é o caso da Bolívia.

Mesmo assim, também é evidente que ante uma situação de crise política, social e econômica, o Estado boliviano prefere sacrificar este velho lastro colonial, ou seja, “suportar” na mais alta magistratura boliviana a um indígena, do que permitir que uma agudização o leve ao perfeito descalabro.

Governabilidade e viabilidade

A obtenção de metade mais um do eleitorado — que superou em 20 % as projeções das pesquisas publicadas uma semana antes das eleições — garante ao governo de Evo Morales um período de estabilidade por pelo menos seis meses — dada a volatilidade e a velocidade da dinâmica política boliviana dos últimos 5 anos.

De fato, uma de suas grandes vantagens, a dispensa de estabelecer coalisões políticas com outros partidos políticos desde o início de seu período governamental, o que marca um ponto de quebra com os governos que se sucederam na Bolívia no marco da democracia representativa de 1982, os que se erigiram assumindo como condição incontornável os pactos entre partidos políticos no interior do parlamento boliviano1.

Mesmo assim, esta vantagem não poderá perdurar no tempo, porque ao não obter a maioria absoluta no parlamento, o partido de Evo Morales — o Movimento ao Socialismo (MAS) — em algum momento se verá forçado a estabelecer condições políticas para a aprovação das leis que proponha, muito provavelmente estabeleça esta aliança com a Unidade Nacional (UN) de Samuel Doria Medina, ou o velho partido Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), que contam com um número escasso de parlamentares, mas que lhe garantem a maioria absoluta, ou, por outro lado, terá que negociar com as outras bancadas políticas cada vez que necessite aprovar um projeto de lei específico.

A outra opção será — muito provavelmente — governar e realizar reformas institucionais, políticas e econômicas através de decretos supremos; prática que não é novidade na América do Sul.

Outro dos motivos que poderiam garantir a estabilidade — não eterna — é a presença de muitas organizações populares dentro do governo de Morales, com os quais realizou alianças pré-eleitorais — caso do principal gestor e virtual vice-presidente Alvaro García Linera –, por isso é que muitos de seus atuais deputados e senadores, na realidade, mais que membros do MAS, são dirigentes de movimentos indígenas, camponeses, cocaleros, operários fabris, aposentados e pensionistas, mineiros, etc.

De todas as formas, nem todas as organizações populares estão imersas dentro do MAS, daí que a Central Operária Boliviana e o Magistério deram um prazo de 90 dias a Evo Morales para que dê sinais de realizar as mudanças propostas — primordialmente os referidos à temática dos hidrocarbonetos.

Outras organizações que não se encontram dentro do novo governo, mas que preferem manter um papel cauto de observação e vigilância são a Federação de Juntas Vecinais de El Alto e a Central Operária Regional de El Alto2.

A obtenção de uma votação de 30% no departamento de Santa Cruz também favorece Morales. Considerando que foi um candidato do ocidente boliviano, obter essa importante votação nesse departamento lhe permite neutralizar, na atual conjuntura, os esquentados ânimos de disputas regionais que cada vez mais vêm exacerbando nos últimos tempos, ainda que não sejam confrontações de data recente.

Versão remoçada Cepal

O MAS propôs reforçar um modelo “capitalista andino-amazônico”. Na realidade, mais que a proposta de um modelo é a descrição da forma como se desenvolve o capitalismo na Bolívia, que implica a coexistência e inter-relação de diversas formas de produzir em um território onde por um lado existe uma produção que emprega tecnologia de ponta na extração de minerais e hidrocarbonetos, assim como na produção de soja, todos esses produtos destinados a satisfazer demandas de transnacionais de matérias-primas.

Por outro lado, uma forma de produzir quase artesanal, similar à existente na Europa no século XIX, com vastas legiões de operários submetidos a longas jornadas de trabalho, com salário por produção, muitas vezes inferiores ao salário mínimo legal, com participação ativa de crianças e mulheres que não gozam de segurança ocupacional e industrial, e sem contar benefícios sociais e trabalhistas.

Finalmente, uma economia camponesa que ainda recorre ao arado egípcio, chegado a essas terras no século XVI com a colonização espanhola e inclusive com algumas ferramentas do período pré-hispânico.

Formas de produzir diferentes, mas entrelaçadas e entremeadas, que são funcionais umas às outras, principalmente as últimas à primeira, onde se entranham relações sociais de produção não capitalistas com relações capitalistas. A elas se soma a persistência de extensos latifúndios que constituem mais de 80% da propriedade da terra em todo o país.

O MAS vê como solução o fortalecimento do Estado, o retorno às funções econômicas do mesmo como a chave para solucionar o evidente atraso boliviano, uma espécie de reedição do modelo de industrialização e substituição de importações dos anos de 50 a 70, proposto pela Cepal, concentrando-se na industrialização da atividade mineira e hidrocarbonífera, garantindo o lucro das empresas transnacionais e promovendo financeiramente a pequena indústria — indústrias de traços artesanais, na realidade.

Quanto ao problema da terra, a proposta do MAS foi mais retórica que firme, frente a inegável e pesada presença do latifúndio da Bolívia. Igualmente, a proposta do MAS é pouco clara frente o tema da dívida externa.

O contexto latino-americano

Algo apresentado reiteradamente é a viragem para a centro-esquerda na América, citando-se para isso os presidentes do Uruguai, Chile e Venezuela, em menor grau a Argentina e ultimamente o Brasil — ao descobrir-se os escândalos de corrupção de membros do gabinete de Luiz Inácio — atravessando a obscura performance do defenestrado presidente equatoriano Gutiérrez.

Até o momento, todos esses governos denominados de centro-esquerda não tem assumido medidas tendentes a liquidar com os latifúndios sul-americanos, seguem se sujeitando ao pagamento pontual da dívida externa e não se afastaram nem um milímetro das medidas macro-econômicas receitadas pelo Fundo Monetário Internacional; somente têm incrementado em níveis não tão importantes a aplicação de certas políticas sociais que nunca estiveram ausentes no marco do chamado modelo neo-liberal.

Têm-se-se caracterizado por certo incremento da burocracia e pelo fato de sua condição de centro-esquerda apenas a partir das trajetórias pessoais de seus líderes — leia-se caudilhos — seja por sua militância em antigas guerrilhas, sua antiga condição de exilado, sua trajetória sindical ou sua grande retórica antiimperialista; ontem perseguidos, guerrilheiros ou sindicalistas e hoje afirmando sua condição de membros do clube da chamada “esquerda caviar”.

Início de um romance?

Um aspecto importante se configura com a irrupção de Evo Morales no contexto de luta antiimperialista. Evo Morales surge como um líder, primeiro de perfil nacional boliviano, logo continental e hoje internacional precisamente por seu forte discurso anti-ianque.

Recorde-se que no nascimento de Evo Morales como líder político está associado a uma luta de resistência dos camponeses cocaleros da zona de Chapare do trópico de Cochabamba, ante uma arremetida que deixou um grande número de feridos, desaparecidos e mortos na política de erradicação total dos arbustos de coca desta zona, clara e diretamente ordenada aos governos bolivianos pelo USA.

Daí que, simbolicamente a luta de resistência cocalera se associou com dignidade e soberania na Bolívia. Já em 2002, a evidente ingerência ianque nas eleições gerais da Bolívia favoreceu Evo Morales, cujo partido conseguiu um número importante de representantes congressuais, que se insinuou como presságio da atual vitória eleitoral.

Em tal “cruzada anti-ianque”, Evo Morales com muita frequência posou junto a Fidel e Hugo Chavez. Mesmo assim, enquanto é antiimperialista frente ao USA, não emprega o mesmo discurso antiimperialista frente à União Européia, pelo contrário, com muito orgulho declara a promessa da duplicação da cooperação financeira da União Européia e inclui também a possibilidade de grandes negócios com a China

De qualquer forma, estas reflexões iniciais do triunfo eleitoral de Evo Morales podem ser a pauta para fazer um seguimento da forma como encara seu governo a partir de 22 de janeiro de 2006.


Notas
1 — Inclusive em 1989 levaram à presidência à terceira força política — Jaime Paz Zamora do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR) —, situação que levou a denominar à democracia boliviana como “sistema presidencialista parlamentarizado” segundo o analista político boliviano René Mayorga.
2 — El Alto é uma cidade contígua à cidade de La Paz, onde se concentra a residência de migrantes do campo à cidade, operários, comerciantes ambulantes, pequenos comerciantes, oficinas de produção artesanal, trabalhadoras em serviço doméstico, etc.
Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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