Muitos dizem confiar, mas a verdade é que poucos põem a mão no fogo pelas urnas eletrônicas utilizadas em nossas eleições. Oficialmente, a dúvida sobre a credibilidade no processo de apuração eleitoral é uma ameaça à democracia, ao menos a esse tipo de democracia.
A implantação da eleição eletrônica fez com que o voto do povo fosse tecnicamente desmaterializado, porque não há mais sufrágios a serem contados ou recontados. Tudo foi transformado em um mero registro eletrônico na memória de computadores, que se apaga após a totalização do resultado. Caso o eleitor vote em um candidato que aparece na tela e o programa registre outro na memória, ninguém terá conhecimento da fraude. A desconfiança em torno da votação eletrônica é tão grande, que o sistema já foi oferecido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a 47 países… e recusado por todos eles.
A recontagem não existe mais; existe a garantia verbal do TSE afirmando que as urnas eletrônicas são 100% seguras.
Tão seguras que fazem lembrar os casos do folclore político, como o do latifundiário que coordenava pessoalmente a transferência de caixas abarrotadas de cédulas já preenchidas da sua residência para o caminhão, quando um seu empregado, quase que suplicando falou:
— Coronel, deixa eu ver uma cédula? Nunca vi…
Ao que o coronel imediatamente respondeu:
— ‘Cê besta, sô, o voto é secreto!
O engenheiro de informática, Amílcar Brunazo Filho, preocupado com a segurança do voto eletrônico, criou há cinco anos um site questionando o assunto (www.votoseguro.org). Para Amílcar, as críticas ao sistema “não têm um caráter destrutivo”, porque não se discute em acabar de uma vez por todas com o processo eleitoral informatizado, mas apontar as suas falhas e buscar o aperfeiçoamento do sistema, de apuração, bem entendido.
O ano de 1996 foi marcado pelo advento da urna eletrônica, mudando completamente o processo de votação. As três etapas existentes na votação manual — identificação do eleitor, votação e apuração — foram resumidas em uma única etapa na eletrônica. Um dispositivo que faz todo o trabalho, antes manual, passava por uma fiscalização. Agora, não se tem mais o controle externo, mas a totalização continua como antes.
A falha jamais é do cacique
Após a emissão dos boletins, os partidos podem somálos e fazer um “certo” controle. A fraude no sistema antigo não se podia esconder, existia por falha humana durante a fiscalização. O que acontece atualmente é a falta de controle dentro da urna eletrônica, uma vez que o voto foi transformado em informação virtual. Como entra uma máquina eletrônica que responde aos comandos, a culpa é da máquina, sustentam os admiradores do fetiche e os patronos por conveniência. O controle final é “teórico”. Quando se encerram as eleições todas as urnas no país imprimem seus boletins, mas nenhum partido tem condição de juntar os boletins e realizar as somas. É dado aos partidos um prazo de 72 horas, após a divulgação do resultado, para pedir a impugnação. Até hoje nenhum partido conseguiu fazer a totalização dos votos, o que torna o controle teórico inviável na prática.
Casos de fraude em eleições não são raros. Em 1982, aconteceu o chamado ‘caso Proconsult’, quando o ex-governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, foi vítima da primeira tentativa de fraude informatizada no Brasil. Na ocasião, “um vírus que desviava votos” na fase de totalização foi introduzido no programa. A fraude foi descoberta por causa de uma totalização paralela, feita pelo jornalista Procópio Mineiro. Com a ajuda de estudantes de jornalismo, realizaram uma totalização parcial dos votos para governador, deixando de fora os votos para senador e deputado. O grupo detectou uma diferença entre os resultados publicados e os apurados. Constatada a fraude, a contagem foi suspensa até que a trama estivesse desvendada. Os responsáveis disseram tratar-se de um erro de programação. Então, houve correção e Brizola foi eleito.
Geralmente só se comenta as vantagens do sistema eletrônico alegando que com a grande velocidade na apuração não se teria tempo para fraudar. Essa afirmação é completamente falsa, uma vez que o resultado já pode chegar fraudado, sem tempo, isso sim, para detectar a fraude. Tentando prevenir qualquer tipo de crime eleitoral, passou a ser feita uma experiência com 5% das urnas no país. Neste teste, essas urnas fazem a materialização do voto, imprimindo cada um deles.
Todas, exceto uma providência
O engenheiro e diretor de Consultoria da JDA Sowftware, Benjamin Azevedo também analisou o problema do sistema eletrônico utilizado na votação. Para Benjamin, podem ser adotadas algumas providências a fim de tornar o processo eleitoral mais confiável. Deve haver em todas as seções a impressão do comprovante no ato da votação, conferido pelo próprio eleitor e automaticamente colhido em recipiente lacrado. E auditoria de uma percentagem das urnas, escolhidas através de um sorteio após o término da votação. Este sorteio não pode ser realizado antes do encerramento do trabalho, para evitar fraudes. A disponibilização dos boletins de urna, de forma individualizada, no site do TSE para confronto com as cópias impressas e montagem da conferência da totalização também importa para que toda a programação da urna seja aberta. É que a sua função é tão simples que não existe motivos para que sejam usadas programações secretas.
Mas o tempo da apuração dos votos se tornou o grande vilão. Afinal, por que necessitamos ter tanta pressa em conhecer o eleito? Qual o problema em se apresentar o novo presidente de manhã ou dois dias após a eleição? O importante é ter a certeza de que aquele, por ter recebido mais votos, foi o escolhido. O problema não é se o voto está sendo digitado ou escrito com a ajuda de uma caneta, mas se está sendo respeitada a vontade do povo brasileiro, na hipótese de que, no dia da eleição o povo deseje realmente eleger um dos candidatos.
O caso da fraude na votação do ex-governador Leonel Brizola, por exemplo, foi apenas uma das muitas existentes na história das eleições brasileiras em que se tramou contra a vontade do povo. Em Diadema, São Paulo, por exemplo, comprovaram através da análise dos arquivos que não houve respeito algum ao rito formal. Não foi respeitado o prazo e o transporte das urnas, nem convocação dos partidos. Da ata geral de Diadema consta que duas urnas foram substituídas, mas no relatório do TSE onze urnas aparecem como substituídas.
Diversas irregularidades foram apuradas, mas nem assim foi permitida a perícia. Os pedidos formais de perícia foram apresentados em todas as instâncias judiciais possíveis, mas todos negados por questões processuais.
O dogma confere segurança
Em Araçoiaba da Serra, também no estado de São Paulo, aconteceu um caso interessante. Neste município não constava na lista da urna eletrônica o nome de alguns candidatos, vereadores do PT do B. Ao votar em um desses candidatos o eleitor recebia a informação de que seu voto era nulo. Como o TSE não admite a hipótese de que suas urnas possam conter erros, não previu nenhuma solução para quando um problema deste tipo surgisse. Para o TSE não existe a possibilidade do eleitor, que não conseguiu votar na urna eletrônica, realize seu direito de outra forma. Papel, nem pensar.
Neste caso de Araçoiaba da Serra, não houve a fraude propriamente dita. O que aconteceu foi um erro do pessoal que fez a tabela e se esqueceu de colocar o número do candidato. Este também falhou, porque não verificou se seu nome e número estavam na tabela. Mas a questão principal são as brechas e as crateras existentes para que ocorra a fraude — isso num país onde muitos candidatos investem mais na campanha do que receberão durante todo o mandato.
Esta discussão em torno da votação eletrônica pode parecer complicada, mas tem soluções simples, do ponto de vista técnico. Por exemplo, a impressão do voto deve ser visualizada pelo eleitor, com a finalidade de se realizar a verificação do voto. Ao apertar o botão de
é que deve ser emitido o comprovante, que passa a ser o mecanismo de controle. Deve-se entender que o argumento de que não é necessária a impressão do voto, só porque o eleitor vê a foto do candidato, é totalmente primária.Seguindo esse raciocínio, o senador Roberto Requião elaborou um projeto que esteve próximo de conter tudo o que é necessário para se ter uma “eleição segura”. Mas o projeto do senador transformou-se na Lei nº 10.408. De maneira preocupante, na votação final foram apresentadas diversas emendas a essa lei. Havia emendas duplicadas, com origem comum: a Justiça Eleitoral. Para se ter certeza da sua apresentação foram distribuídas a mais de um parlamentar. Por incrível que pareça, todas essas emendas vinham no sentido de postergar a vigência da lei ou diminuir sua eficácia. Então a aprovação da lei foi empurrada para passar a menos de um ano da data das eleições de 2000. Havia um artigo no qual se tentava excluir essa anualidade, mas ele acabou sendo retirado através de uma emenda, ou seja, mais uma estratégia para inviabilizá-lo.
A nova lei previa algo muito mais interessante com relação à impressão dos votos. Independente de haver queixa de candidato, a título de teste, passaram a ser contadas as cédulas impressas, para confrontar com o resultado eletrônico. Obviamente estava previsto que este sorteio das urnas fiscalizadas ocorreria após o encerramento da votação. De alguma forma foi incluída emenda prevendo que as urnas auditadas por amostragem seriam sorteadas um dia antes da eleição. Manteve-se assim o mecanismo previsto, mas este se tornou inócuo. Não serve nem para o TSE afirmar que suas urnas são honestas, pois as urnas testadas são, de antemão, conhecidas.
Tudo isso acontece por que o órgão responsável por todo o sistema eleitoral, e que deveria ser o maior interessado em comprovar a segurança do processo eletrônico, toma todas as suas iniciativas em sentido contrário. Atitudes como essa, sem explicações lógicas, deixam todo o povo brasileiro ameaçado de ter o seu direito ao voto banalizado por completo. Por que, afinal, tanto descaso para resolver problemas técnicos? A única resposta plausível é que, havendo fraude, a técnica da qual se lança mão é útil para acentuar e sofisticar essa mesma fraude.