Ele faz parte do ‘povão’, da ‘massa’, dos esquecidos pelos governos e monopólio da comunicação, com pouquíssimo acesso a educação e cultura. Nascido, em 1946, e criado na Chatuba, Mesquita, periferia do Rio, o menino Carlos Roberto de Oliveira, o Dicró, irreverente, via no seu dia-a-dia de precárias condições de vida e nos passeios à praia de Ramos motivos para compor, até se tornar um grande sambista e juntamente com Moreira e Bezerra da Silva formar o trio dos grandes ‘malandros’ do samba carioca.
— Meu jeito gozador, irreverente, que todo mundo fala, é natural, desde menino já era assim. Com uns 10 anos já fazia meus sambas, sempre bem humorados, porque sou assim, e isso às vezes me rendia uns tabefes. Por exemplo, certo dia, tinha uns 14 anos, estava cantando para uma meninada na rua, de repente correu todo mundo e um ‘negão’ me segurou e me deu um cascudo, falando: ‘já que você tem inspiração, por que não faz alguma coisa comportada?’ — lembra.
— Mas eu não sabia o que era ‘inspiração’, e fiquei pensando ‘o que será esse tal de inspiração?’, achei que tinha apanhado por causa disso (risos), só bem mais tarde, uma pessoa de gravadora falou: ‘esse Dicró tem uma inspiração fabulosa’, aí fui entender. E não adiantava quererem me moldar, porque nasci para o negócio — acrescenta.
Até então Dicró só tinha o sonho de ver suas músicas gravadas por alguém importante, e cantadas pelo povo, e não imaginou que poderia gravar suas próprias músicas, pela sua condição de pobreza e por achar que não sabia cantar direito.
— Ficava rodando as gravadoras, procurando alguém para cantar minhas músicas, mas ‘os caras’ não me davam chance. Até que tive a felicidade de ganhar um samba enredo na Beija-flor de Nilópolis, junto com Neguinho da Beija-for, começando aí minha carreira de compositor. Depois fui para a Grande Rio e lá também ganhei, com outros parceiros, e passei a freqüentar ‘festival de favela’, onde tinha um olheiro de gravadora que me descobriu e convidou para gravar, isso em 1977 — conta.
— E a coisa começou melhorar para o meu lado, apesar do preconceito que sofria dentro de gravadoras, por morar na baixada e não em uma favela ou morro famoso. Eles achavam que para ser sambista a pessoa tinha que ser o ‘Dicró da Mangueira’, por exemplo, e que baixada era interior, porque nem conheciam. Até eu provar que era sambista de fato, demorei a beça — acrescenta.
O fato de ser ‘quase um analfabeto’, como diz, acabou ajudando Dicró a gravar algumas de suas músicas.
— Naquela época tinha ‘aquele negócio’ de ditadura que não liberava muitas músicas, e eu pensei que não ia consegui gravar ‘Olha a rima’, pelo mesmo motivo que apanhei do negão com 14 anos (risos), só que quando datilografei para mandar para os ‘homens’, não coloquei nem ponto e nem vírgula, porque não sabia onde entravam, eles não entenderam nada e deixaram passar — conta.
— Tenho 18 anos de primário, era para ser o diretor da escola (risos). E o pior é que não era por não estudar ou fugir da escola, e sim pela falta total de condições. Era o único mais ou menos alfabetizado na família. Minha avó tinha uma barraca e ninguém para ler ou fazer contas. Ela e minha tia eram analfabetas e por isso eu ‘apanhava’ para não ir à escola e ficar na barraca, recebendo os fregueses que queriam pagar. Acho que eu fui a única criança que ‘apanhava’ por querer estudar: quando ia para a escola escondido era surra na certa — fala.
— Hoje tenho orgulho de mesmo não tendo podido estudar ter participado de debates de comunicação em faculdades e colégios, por causa de tudo que aprendi na ‘escola da vida’, e no samba — acrescenta.
Músicas que são crônicas
O primeiro grande sucesso de Dicró veio de uma inspiração que teve após ser assaltado e ter usado o fato para ‘se dar bem’.
— Estava voltando de uma gravadora, ‘duro’ e sem pressa nenhuma de chegar, já que não queria encontrar o ‘senhorio’ que iria me cobrar o aluguel (risos), e na esquina de casa fui assaltado. O ladrão se deu muito mal, porque só tinha umas moedas, mas ninguém sabia disso, e o primeiro a vir me consolar foi o ‘senhorio’, para quem falei: ‘perdi todo o dinheiro do aluguel’. Ele ficou com tanta pena que até me deu algum. Minha mãe veio em seguida, contei outra história ganhando mais algum. Da mesma forma aconteceu quando recebi a visita do meu irmão — conta.
— Em pouco tempo estava ‘cheio do dinheiro’ e com uma dívida perdoada, e foi aí que analisei que o ladrão na verdade era eu, que roubei a boa fé das pessoas. Então escrevi: ‘no lugar onde moro, até ladrão (eu) tem medo de ir, êta lugar perigoso, igual aquele eu nunca vi. Ladrão (eu) não anda de noite, porque tem medo de ser assaltado …’. Essa música foi para a boca do povo e através dela, outras que estavam guardadas foram fluindo. Valeu, mas não quero ter uma inspiração dessas nunca mais — confessa.
— Sempre tive que dar o ‘meu jeito’ para sobreviver, mas nunca roubei, e me acostumei a não pegar nada dos outros. Desde menino freqüento a praia de Ramos, porque o povo da baixada gasta só uma condução para chegar, e não sofre o preconceito. Se o ‘cara’ vai à Barra, Copacabana, acham que ele é ‘trombadinha’, já na praia ou no piscinão ele fica à vontade. Dizem até que sou ‘Imperador de Ramos’. É que defendo o local, e agora mesmo estamos lutando pela troca da água do piscinão — fala Dicró, que, entre outros, já foi pintor de parede e vendedor de jornais nos trens da Central do Brasil.
Desde que gravou seu primeiro LP até hoje, são anos de ‘estrada’, muitos discos, participações e shows.
— Mas atualmente a coisa está difícil, porque não tem mais gravadora e nem divulgação para nós. Sobrevivo de shows, do quiosque que tenho em Ramos, e da venda dos meus discos na praça, normalmente Cinelândia, no centro. Monto uma banca, coloco os CDs para tocar e tenho o prazer de ver uma fila de povo comprando. Agora estou parado esperando regularizar a licença para evitar ‘problemas’ com a guarda municipal — fala, acrescentando que deve voltar em dois meses.
Dicró tem gravado de forma independente. Seu último disco saiu há três anos, e atualmente tem preferido fazer coletâneas. Está lançando um livro ‘Dicró e Salteado’, cheio de causos urbanos e memórias, e pretende montar uma peça de teatro.
— O livro não é bem uma biografia, são casos que aconteceram comigo, alguns, porque se revelar tudo ‘nego’ vai me castrar (risos). Já o teatro depende muito de conseguir patrocínio. Desejo fazer uma peça que seja apresentada, por exemplo, em Copacabana e Centro com atores famosos, ao mesmo tempo em Niterói, Caxias, Nova Iguaçu, e outros, com atores locais, para despertar talentos, e fazer com que os moradores desses locais possam ter acesso ao teatro. Material eu tenho escrito, quem quiser ensaiar e conseguir patrocínio pode me procurar — avisa.