Carlos Faria é um artista que se preocupa com a questão nacional, do ponto de vista popular. Ele está viajando pelo Brasil com o espetáculo Jequi-Brasil, Canções da Aldeia, onde faz uma síntese das canções dos seus quatro discos lançados até agora. Mineiro do Vale do Jequitinhonha, Carlos mostra para o Brasil as riquezas culturais de local conhecido pela pobreza de seu povo, que sofre com a exploração do trabalho, desemprego, ausência de estradas, além da devastação causada, ora pelo latifúndio nativo, ora pelas corporações estrangeiras.
Carlos, até algum tempo atrás, era um psicólogo que nas horas vagas cantava e tocava músicas da sua terra. Atualmente é um músico que, quando tem tempo, atua como psicólogo em algumas palestras que transforma em show. Com a agenda cheia, sozinho ou acompanhado, ele viaja pelo país, grava discos e aprende a ser gestor cultural para fazer sobreviver o seu trabalho.
Quando Carlos nasceu, sua família já tinha ligação com a música: sua mãe, atualmente com 86 anos de idade, gostava muito de cantar em casa canções de autores desconhecidos, modinhas populares de todos os tipos, canções folclóricas, verdadeiras peças raras que ouvia na beira dos rios entoadas pelas lavadeiras, comuns na região do Vale do Jequitinhonha. Carlos, da mesma forma ouvia o cantar das lavadeiras:
— Eu cresci ouvindo minha mãe cantar essas músicas. Meu pai tocava violão muito bem. Meu avô paterno era boiadeiro, mas também tocador de viola. Eu sempre o ouvia tocar viola e cantar canções de domínio público. Essa influência nasceu na minha própria casa, mas somente depois de adulto eu fui trabalhar isso.
Ele aprofunda:
— Na região em que nasci, todo mundo que pode vai para capital estudar. E eu fui um desses. Migrei para Belo Horizonte para estudar, fazer o segundo grau e depois o curso superior. Escolhi psicologia, mas aí a arte já estava no sangue e, paralelo, eu fiz curso de teatro. Além disso, já tocava o meu violão que aprendi vendo os outros tocarem, na prática.
Carlos se formou em psicologia em 1981 e continuou a fazer seus cursos de teatro, chegando inclusive a participar de espetáculos sob direção de Luis Paixão, teatrólogo consagrado de Belo Horizonte, e também continuou participando de vários festivais de músicas.
Em 1985 surgiu a proposta de voltar para o Vale do Jequitinhonha como psicólogo. Aceitou e passou a trabalhar junto às localidades, na região de Almenara, com 22 municípios ao redor.
Diz ele:
— Viajei muito pela região e passei a a pesquisar e gravar os cânticos que eu ouvia, da herança negra, os batuques, os samba de rodas, as modinhas, os candâmes. E gravei tudo isso na voz dos canoeiros, dos grupos folclóricos da região e também de lavadeiras. Então formei um grupo de lavadeiras da beira do rio local, que ouvia desde criança e gravamos algumas dessas cantigas. O grupo deu certo. Hoje é conhecido como o 'Coro de Lavadeiras', ou simplesmente 'As lavadeiras'. Atualmente se fala do grupo em grande parte do país. Lançamos juntos uns Cds e fazemos show pelo Brasil afora com grande sucesso.
E chegou a hora da organização:
— Desde criança eu via e ouvia lavadeiras na beira daqueles rios, lavando roupa e cantando. Em 1991 com a construção de uma lavanderia comunitária na cidade de Almenara, a maioria daquelas lavadeiras passou a usar aquele lugar, assim ficou mais fácil reuni-las. Comecei a me encontrar com elas semanalmente, a ensaiar aquele repertório que eu vinha pesquisando e que era do conhecimento delas também — era um repertório de domínio público — e a assim nasceu o grupo de lavadeiras cantoras.
Carlos explica que o repertório delas é uma herança muito antiga:
— As cantigas que eu gravei no disco com as lavadeiras, o Batuquim Brasileiro, e o Acqua, têm influência africana muito grande. São batuques, sambas de rodas, modinhas, que certamente vieram da Bahia, porque o norte de Minas foi povoado pelos baianos das caatingas e do litoral. No norte e nordeste de Minas — região de Montes Claros e a região de Teófilo Otoni — existe uma forte influência baiana. Os cânticos vieram de lá com os tropeiros, os canoeiros, na época em que o rio era a única via de comunicação entre o interior e o litoral.
Carlos prossegue sua didática:
— Até primórdios do século 20, o rio Jequitinhonha era uma via de ligação entre o litoral — Porto Seguro, Belmonte, Ilhéus — e o interior das Minas Gerais: a região Diamantina, do Serro. O rio nasce no Serro, cá na serra dos Pinhaços, no centro de Minas, onde houve no século 18 o auge do garimpo de diamante e do ouro. Ele abastecia Portugal e outros países da Europa. Por causa dessa herança estão as modinhas portuguesas presentes nos meus discos. Como Da sala pra varanda no disco Acqua.
Existem bolsões de miséria
na região do Vale do Jequitinhonha,
mas existe também riqueza cultural,
riqueza humana
Então, a memória do povo vai tomando forma, se cristalizando:
— Algumas das cantigas dos meus discos são minhas, porém muitas são adaptações que eu fiz. Recolhi, adaptei, dei nome para as cantigas porque nenhuma delas tinha e as gravei. Junto com as lavadeiras, surgiu uma série de canções, uma herança maravilhosa que pertence ao patrimônio imaterial brasileiro, e que agora estão materializadas nos discos, estão perenizadas ali.
Carlos lançou seu primeiro disco, chamado Carlos Faria, em 1994, com canções autorais com alguns parceiros e também temas recolhidos do Jequitinhonha:
— Depois de 2000, lancei Tupiniquim, outro disco autoral, com uma mistura étnica. Esse disco tem influência indígena, africana e portuguesa. Índios Maxacalis, que vivem na região do Vale do Jequitinhonha abrem a canção Tupiniquim.
Em 2002 ele lançou o disco Batuquim Brasileiro, já com a participação das lavadeiras, fruto de uma pesquisa que faz há alguns anos, recolhendo canções com autores desconhecidos, que já caíram no domínio público. Seu Cd mais recente é o Acqua, 2005.
Canções da aldeia
Além das pesquisas que faz com as lavadeiras e outras manifestações culturais no meio do povo, para ter originalidade e maior singularidade, Carlos faz o seu trabalho solo, com músicas próprias. Em seu show Jequi-Brasil, Canções da Aldeia, ele mostra essas canções, onde aparecem todas as influências que teve em sua infância e vida adulta.
— Tem um pouco de batuque, manifestações negras muito fortes, que foram recolhidas por mim. Neste show eu canto as músicas dos meus quatro discos, lançados até agora, e mais algumas canções inéditas que eu estou gravando para o meu quinto trabalho — que será também um disco solo e que se chamará Canções da Aldeia. Além desse apanhado de todos os cds, tem mais alguns temas recolhidos junto aos índios locais.
Porque Carlos era vizinho deles:
— Há bastante tempo eu trabalho junto aos indígenas de Minas Gerais, os Maxacalis. Eu nasci do lado da aldeia deles. Então incluí no Jequi-Brasil uma pequena vinheta Maxacali e outra dos Crenaques — que são índios lá do Vale do Rio Doce — e dos Pataxós — de Porto Seguro, mas que moram em Minas. Tenho uma amizade muito grande com esse grupo. E é por essa ligação com os índios locais e as músicas de domínio público — que são cantadas por todo tipo de populares — que o show recebe o nome de Jequi-Brasil, Canções da Aldeia.
Tive que aprender
a ser um gestor cultural e
captar recursos, para sobreviver
Carlos, desde criança, tem contato com muitos índios e explica que apesar de viverem na região do Vale do Jequitinhonha, quase não se ouve falar deles e da sua cultura. Muitos brasileiros não têm nenhuma idéia de que eles sequer existem e muito menos que residem no Vale. Em Minas Gerais existem oito minorias nacionais diferentes, reconhecidas como índios, e uma nona ainda em estudo antropológico que definirá a sua autenticidade, que são os Mucurins:
— A minha região é mais a nordeste de Minas, é a micro-região de Teófilo Otoni — que é a cidade principal. E já chegando no sul da Bahia, tem a cidade de Maxacali, que está a 30 quilômetros da divisa com a Bahia. Amenara, onde eu morei por dez anos e trabalho com as lavadeiras, está um pouquinho mais acima. A cidade mais próxima é Itapevi e depois Belmonte, onde o rio Belmonte passa e deságua. Então é o nordeste do estado com o sul da Bahia.
Um povo passava na beira da porta. Também ali havia quilombolas. A história viva, ia e vinha, acenava, cumprimentava, entrava na casa. Como sempre faz com todos nós. Só os colonizados não vêem:
— Muitas pessoas nunca ouviram falar que tem índios nessa região, porque isso não é divulgado como deveria. Mas eu cresci com os índios na minha porta, na minha casa. Os Maxacalís desde criança transitavam por ali. Depois de adulto, já formado em psicologia e de volta ao vale, foi que eu pude compreender a dimensão, a importância histórica cultural que eles têm. Não só os indígenas, mas também os quilombolas. Por toda aquela região surgiu grande mistura de raças com o negro, o índio e o colonizador português.
Essa redescoberta da sua terra se deu quando voltou a morar em Almenara, a partir de 1985, já com uma visão diferente. Assim, desejou valorizar as manifestações da terra onde ele e seus pais nasceram.
Carlos passou a ter um contato diferente com os índios, precisando olhar com os olhos de um pesquisador da cultura popular, mas não como um estrangeiro, porque entendia que o povo precisava valorizar sua grande riqueza e variedade de manifestações culturais, que nascem e sobrevivem, apesar de todos massacres sofridos, que de uma maneira e de outra se repetem, séculos afora.
O povo do Vale está
se incluindo socialmente
pela sua arte
Mas o povo ninguém consegue matar. Com todo o processo de dizimação que os índios sofreram, genocídio ao longo dos séculos, eles estão presentes na região, em grande quantidade. Matam aqui, escravizam ali mas o que sobra cresce, se multiplica, vira proletário, camponês, novamente proletarizado, até poderem ser livres como o povo brasileiro há de ser:
— Os africanos trazidos para o Brasil como escravos eram considerados necessários para a sociedade, porque eram a força de trabalho. Já os índios foram sendo exterminados por não se adaptarem à escravidão. Visto pela ótica dos que dominavam, eram mortos por serem 'desnecessários'.
Assassinados um a um porque a alma era outra, porque ela podia dizer não. Porque a alma é a cultura dos verdadeiros donos da terra que não tolera o trabalho escravo e prefere morrer lutando, os Aimorés nos deram uma história não escrita que precisa ser desvendada:
— Os antigos Aimorés, que combateram ferozmente os escravizadores portugueses, acabaram por ser praticamente dizimados pelo colonizador, a partir da chegada da Família Real. Simplificaram, porque o rei decretou que eles não possuíam alma, se podia matar à vontade. A ocupação do interior do Brasil se deu às custas do genocídio dos índios. Os que vivem hoje são heróis porque sobreviveram aos massacres.
Os Aimorés retomam a sua identidade brasileira de donos da terra, tal como os camponeses modernos, conta Carlos:
— E muitos sobreviveram. Ao longo dos anos continuam existindo. Aos poucos estão retornando às suas raízes, e reencontrando a sua identidade, que foi dissipada durante anos.
Carlos descreve como os indígenas estão ressurgindo depois de séculos de repressão, de aculturação, de genocídio, e passaram há pouco tempo — depois do fim da gerência militar que assegurou o domínio ianque no Brasil — a se assumirem novamente como índios. Muitos que estavam espalhados e perdidos pelas cidades, estão voltando para a região, retomando a sua identidade verdadeira, sem nostalgias ou demais formas covardes de existência:
— Com a perseguição violenta, durante o regime militar, principalmente, esses índios Maxacalis, Crenaques e outros foram praticamente trucidados. Nesse período foi criada uma guarda chamada Guarda Rural Indígena. Essa guarda era na verdade índio perseguindo índio. Os soldados eram índios e tinham a função de reprimir os próprios indígenas. Uma coisa horrorosa. Puseram irmãos contra irmãos. Traziam índios do Amazonas, do Mato Grosso, de várias partes do país e mandavam outros para lá, só para perseguirem seus irmãos.
Quantos crimes a gerência militar cometeu, agora acobertados pelos oportunistas que costumam dizer que o povo está finalmente no poder. Mas, apesar disso, Carlos Faria relata como os povos indígenas vêm retomando seu idioma:
— Com essa perseguição e matança, desagregaram famílias e lhes tiraram a identidade, tanto que eles não mais falavam o próprio idioma. Isso aconteceu, no final do anos 60, e anos 70, com a ditadura. Foi algo horroroso. Agora, depois de anos, estão voltando e assumindo a sua própria cultura. Os Maxacalis, por exemplo, em sua aldeia, só falam a sua língua, é só Maxacali. Eu conheço palavras isoladas, mas não falo a língua deles. Muitas outras tribos falam português, mas têm escolas bilíngues. Aprendem também a língua deles. As crianças são educadas assim.
Carlos prossegue:
— De 2005 pra cá, surgiu até um outro grupo indígena do Vale do Mucuri, chamado Mucurim, que são parentes dos Maxacali e dos Aranãs, remanescentes dos Crenaques, do mesmo grupo. E eles estão agora se reunindo e praticando as suas tradições. Atualmente está acontecendo estudo antropológico para provar se esses são mesmo índios…
O problema é que a antropologia colonial quer atestar etnias e não povos, nações, minorias nacionais etc., principalmente não admite reconhecer a legitimidade do ser humano de ocupar-se do trabalho livre, libertar os meios de produção e escolher o seu regime político-social, desenvolver sua cultura e materializar seus sonhos de liberdade.
Carlos continua:
— Será emitido um laudo por historiadores, traçando as relações históricas do grupo, para testar que realmente são índios. Claro que eles estão aculturados e miscigenados, porque já se casaram com pessoas que não pertencem ao seu meio. Não são mais 'índios puros'. Até os próprios Pataxós, no sul da Bahia, já estão misturados. Os menos misturados, em Minas, são os Maxacalis. Eles só se casam entre eles mesmo. Desde o século 17 que os Maxacalis são reconhecidos como índios e do mesmo grupo. E, apesar de todas as perseguições que sofreram e suas migrações, estão ainda falando a língua Maxacali, que é riquíssima também.
A arte tem um papel de
fator gerador de saúde e
afirmação da identidade
pessoal e coletiva
Lideranças assasssinadas, povos oprimidos. Tudo parece nomal porque índio não tem dinheiro para pagar o monopólio de imprensa e esses povos originários não fazem parte do governo, relata Carlos:
— Esse extermínio dos índios foi uma coisa absurda. Em pleno século 20, o regime militar repetiu a prática que os portugueses e os espanhóis trouxeram, quando colonizaram as Américas, de um canto ao outro, de norte a sul: saíram matando os índios, acabando com grupos e famílias inteiras de índios. E isso continua, hoje ainda, com lideranças indígenas sendo assassinadas — como Chicão Xucuru e Galdino Pataxó—, esse último queimado em Brasília, há alguns anos, por um filho de gente rica de lá, considerado um vândalo. Mas, na verdade, é perseguição contra os índios.
Região rica, povo empobrecido
Além do índio, o povo em geral, de qualquer etnia tem sofrido opressão por parte do poder dominante na região do Vale do Jequitinhonha, segundo o cantor popular:
— A minha principal preocupação ao desenvolver o meu trabalho é desmistificar o estigma que existe sobre a região, conhecida ao longo dos anos como o 'Vale da Miséria'. De fato existem bolsões de miséria na região, mas também riqueza cultural, riqueza humana.
Carlos relata que este é o resultado do extrativismo, seja vegetal ( da madeira, da borracha etc) ou mineral:
— É uma região rica em pedras preciosas. A micro região de Teófilo Otoni é conhecida como capital das pedras preciosas: as turmalinas, os topázios, essas águas marinhas —as mais lindas de Minas Gerais — são recolhidas do garimpo do Vale do Mucuri. Só que a região nada ganha com isso, porque o negócio é dos atravessadores, gente de fora, que as retira, e nada constrói… Então o subsolo é riquíssimo, mas o povo é pobre.
Vira e mexe, os mesmos grupos, poderosos testas de ferro seguem dando as cartas, conta Carlos Farias:
— É uma região em Minas com estradas paupérrimas, com pouco asfalto. Não tem indústria. Com o declínio da grande mineração, no século 18, início do século 19, com o garimpo do ouro e do diamante chegando ao fim, a situação ficou muito ruim para o povo. O garimpo do diamante ainda existe, mas nas mãos de grandes empresas, como a Andrade Gutierrez e outras. É um garimpo mecanizado, com grandes dragas. Para os pequenos garimpeiros não sobra quase nada, e isso também já está em declínio, porque eles mexeram tanto no rio, reviraram tanto o leito, que agora está difícil. Eles vão acabar com o garimpo, exterminando-o, com essas grandes dragas.
Com toda essa devastação, conta Carlos, o povo, que ficou cada vez mais pobre, está descobrindo através da arte, uma maneira de gerar recursos. E essa é uma das pequenas contribuições que ele pode dar, além de passar para o Brasil inteiro uma cultura muito rica e desprezada.
A arte gera saúde
Como músico profissional e psicólogo, Carlos Faria tem uma visão diferenciada de arte. Para ele, além de representar um país e um povo, a arte gera recursos para o povo que a produz, o que ele chama de: a afirmação da identidade coletiva:
— A arte tem um papel gerador de saúde e afirmação da identidade pessoal e coletiva daquela macro-região. Ele faz o povo não perder a sua própria identidade, a enxergar através dela o valor que ele tem. Valoriza o que é seu, as suas histórias, mostra o seu caráter popular para o mundo e para o povo. Ao mesmo tempo, para aqueles que a produzem, vem algum dinheiro.
Falar a verdade e produzir recursos; oferecer a arte e viver do seu trabalho: eis o que é a vida para os que vivem pelas suas próprias mãos, explica o artista:
— Devido a grande pobreza do povo local, eu procuro sempre trabalhar juntando a cultura com a produção de recursos materiais. O trabalho que faço com as lavadeiras, por exemplo, tem essa finalidade. Elas continuam lavando roupas, ainda não mudaram de vida, mas quando somos chamados, viajo com elas para shows e apresentações, em que ganham os seus cachês, além da parte na venda dos discos.
Carlos Faria conta que seu trabalho também é feito no sentido de estimular outras pessoas a fazerem o mesmo. Desde que começou com as lavadeiras, vários grupos têm surgido na esteira deste trabalho, se inspirando nele e lançando discos. Além disso, os artesãos estão mais organizados em associações e já participam de feiras fora do Vale do Jequitinhonha.
Grandes artesãos também fazem parte da riqueza do Vale conhecido pelo seu belo artesanato em argila e barro:
— Entre outros, temos Lira Marques; temos a Zefa, que trabalha com madeira; e a dona Isabel, lá de Santana do Araçaí, que em 2005 teve uma de suas esculturas escolhidas pela ONU como uma das obras brasileiras mais representativas. Ela expôs uma escultura na França, porque 2005 foi o ano do Brasil na França, e recebeu o devido merecimento. Quer dizer, o povo do Vale está se incluindo socialmente pela sua arte. Os cantadores de lá, tem corais magníficos, vários artistas — como o Rubinho do Vale, Paulinho Pedra Azul, Saulo Laranjeira — são do Vale, enfim, grandes nomes nacionais. E eu estou vindo devagarzinho marcando presença também.
O trabalho de Carlos também serve para uma identificação do Brasil, do povo brasileiro de uma forma geral, porque a cultura que existe no Vale é de domínio nacional, pertence a todo o povo trabalhador brasileiro. Neste sentido, o artista sabe que sua obra ganha uma conotação ainda maior, de não somente divulgar a cultura do Vale do Jequitinhonha para o país e o mundo, mas também de divulgar o Brasil para o grande povo brasileiro e o Brasil para o mundo:
— Essa micro-região de Minas Gerais, é de todos os verdadeiros brasileiros. Inclusive foi formada por gente de outras partes do país. Ela tem grande influência nordestina e também do sul de Minas. Enfim, outras regiões de Minas, de alguma forma se encontram ali. Recebe influências de várias partes do país. Mesmo com escravidão e extermínios, a contribuição desses dois grupos, africanos e indígenas, para a cultura brasileira é muito importante e forte. E no Vale estão presentes por toda a parte, mostrando uma riqueza que ultrapassa o valor comercial.
Carlos criou um selo para que seu trabalho sobreviva e possa ajudar outros artistas: Epovale Produções Artísticas, com o qual produz seus próprios discos e o de outros artistas, geralmente da região do Vale do Jequitinhonha:
— Tive que aprender a ser um gestor cultural, captar recursos para sobreviver e ajudar outros artistas que também precisam.
A criação do selo foi necessária já que as grandes gravadoras, geralmente de capital estrangeiro, não estão dispostas a investir em um trabalho do tipo que Carlos desenvolve. Ele reconhece:
— Não conseguiria continuar meu trabalho sem o selo. Nós somos do interior e as gravadoras não se importam conosco. Nem sabem que existe o nosso trabalho. Isso nos atrapalha muito. Mas por outro lado, quando conseguimos desenvolver algo, fica maravilhoso, porque temos total liberdade de escolher o repertório e de gravar do jeito que queremos. Por isso produzimos discos de qualidade. Nós temos o controle de cem por cento desse trabalho.
Carlos diz que a maioria das gravadoras dificilmente produziria Cds iguais, que já é diferente na própria capa. Elas são obras de arte que recordam os antigos Lps. Tudo é feito quase de forma artesanal:
— Por ser produção independente eu posso fazer isso. Tenho uma equipe que trabalha comigo. Tudo é elaborado nos mínimos detalhes, pensando naquele que vai adquirir o Cd. Mas também estamos à margem da indústria cultural, que poderia modificar, alterar pontos que não podem ser alterados, por correr o risco de tirar sua essência. Nós temos um trabalho que está encontrando ressonância em pessoas sensíveis, que buscam coisas originais, ligadas à cultura comprovadamente popular. Então somos representativos nessa área. Também os países da Europa gostam muito do nosso trabalho, e da música brasileira em geral. Temos uma aceitação maravilhosa lá fora.
Carlos explica que vende seus discos no boca à boca, por telefone, pela internet e no sitio www.onhas.com.br, que além do seu trabalho, divulga o de vários outros artistas da região.
— Atualmente existe também uma gravadora, a 'Sons e Sons', que é do nosso amigo Marcos Viana, grande artista mineiro que nos ajuda muito. Ele tem o estúdio e distribui os discos pelo Brasil inteiro e até para alguns lugares da Europa. Tem sítios estrangeiros que estão com meus Cds. As pessoas compram pela Internet ou nos telefonam e o Marcos manda pelo correio ou simplesmente compram os Cds depois dos shows.
Além de cantor, músico e produtor, Carlos profere inúmeras palestras em escolas e empresas, que chama show, porque acaba usando a música, a poesia, os casos recolhidos e o folclore da região, como uma atração a mais em suas apresentações.
Carlos diz que não tem mais tempo de clinicar como psicólogo mas que já fez isso bastante no passado:
— Atualmente a música, a produção cultural, virou a minha principal profissão.
A cultura que as forças do atraso jamais vencerão
O que pode se passar na cabeça de um artista que, ainda criança, via índios transitar junto à sua porta, outras vezes, descendentes de quilombolas, do rio ver as lavadeiras entoando canções belíssimas, violeiros surgindo no meio da poeira vermelha levantada pela boiada, mais tarde a capital, a música, o teatro, a faculdade de psicologia? Ou segue os caminhos dos homens sérios, gente de confiança do povo, ou se torna um alienado.
A propósito, se o artista e professor Carlos Faria se servisse desses artifícios filosóficos, sociológicos e psicológicos que o imperialismo, o latifúndio nativo e os oportunistas classificam 'literariamente', por exemplo, de auto-ajuda ou coisas do gênero, poderia afirmar que o vai e vem dos índios à porta de sua casa nada mais era que fantasmas percorrendo a região em que antes habitaram livres. Coisas assim lhe trariam muito prestígio e dinheiro. Mas o artista não se rendeu à embromação, ao misticismo e à desonestidade.
A psicologia se tornou ciência precisamente quando se pôs a explicar as funções psíquicas superiores do homem como produto complexo do desenvolvimento social. E, vale lembrar, uma das características fundamentais da nação é ter uma conformação psíquica comum que se exprime na cultura comum das classes que constituem o povo trabalhador brasileiro.
O povo trabalhador tem necessidades elementares materiais, assim como necessidades específicas no plano da cultura espiritual. As necessidades produzem os interesses (da mesma forma materiais e culturais). Portanto, as necessidades econômicas de uma sociedade determinada se manifestam em primeiro lugar como interesses. Sendo assim, a psicologia e ideologia de um povo refletem sempre interesses reais de determinadas classes sociais, de onde provem, em última instância, sua consciência, porque cultura não se transfere pelo plasma sanguíneo de gerações, nem se adquire por forma espontânea. É a existência social que determina a consciência social (concepções: filosóficas, políticas, artísticas, científicas e morais) dos homens.
E que luta heróica não desenvolveram os povos originários, entre os Aimorés, Aranãs, Macaxalis e a gente quilombola para sobreviverem, mesmo uns poucos, até que pudessem se apresentar diante de nós, nos ajudando a conhecer a feição e as vísceras da história verdadeira de nosso país?
O Brasil autêntico, o do povo trabalhador e sua imensa cultura, é um vulcão que expele incessantemente milhares de causas justas. Só um programa político capaz de expressar os mais profundos clamores de nosso povo terá competência e força suficiente para sistematizar e transformar em vitória essas causas.