O verdadeiro samba resiste no morro

O verdadeiro samba resiste no morro

Em 17 de julho de 1930, nascia no morro da Providência, área portuária do Rio de Janeiro, Djalma Souza da Silva. Dito assim não parece data de muita valia, porém, se explicarmos que o cidadão é mais conhecido por Djalminha, a comunidade do samba aplaude. Sambista de Lei, não muito divulgado fora da comunidade — o que ele justifica "por não gostar de dar parceria" -, com poucos sambas gravados. Entre eles: Barraco no classificado, por Zeca Pagodinho; Seu sabão por Marina Lima — que virou tema da novela Um homem muito especial da Rede Bandeirantes; Mel de marimbondo, por Almir Guineto; Mané carvoeiro, por Joel Teixeira; De tarde para amar, por Piccolino. A música que fez mais sucesso foi Barraco no classificado, que entrou sem querer até em novela da Globo, quando Ney Latorraca sai de uma bolha cantando "…e o aluguel de um barraco tá mais alto que o morro…." Gravou um LP e um CD solo, um disco misto com Dicró, pela Continental.

Quanto à vocação de sambista ele comenta: "Todo garoto no morro entra no samba quando vai pegar água na bica; é que ele vai batucando na lata e assim vira sambista. Tenho um partido que diz: "Foi batendo numa lata que me tornei um bamba, partideiro da pesada, respeitado na roda de samba." Ou então batucando numa caixa de fósforo." E lembra dos tempos em que a favela não tinha o estigma de violenta: "Não se pode explicar a alegria que era o morro. Havia mais união, mais humanismo. Não tinha essa coisa de drogas. Era feijoada no domingo e o samba comendo a tarde toda. Depois que o tóxico subiu o morro, acabou o sossego dos moradores. No outro dia dei uma palestra no Palácio do Catete e comentei: em favela não pousa avião e nem sobe navio. O lixo da cidade é que foi para a favela. Tinha um banqueiro do bicho que freqüentava o Cassino da Urca, o apelido dele era Cocaína e a gente chamava ele assim como se chamasse João ou José; a droga já dominava os cassinos. O tóxico é coisa da elite, o pequeno, o favelado serve de bucha. Ninguém procura ver a origem das drogas que sobem a favela. Não há interesse em terminar com elas. É como eu já dizia: O negócio não é brigar com quem bota feitiço na sua porta, é matar o feiticeiro! Mata os donos da macumba que não tem mais feitiço na sua porta! Acaba com o cara que traz pro morro e pronto! Eles não querem isso."

Nem negro, nem branco: um país mulato

Fala com muito amor sobre as várias origens da cultura brasileira: indígena; negra; branca; italiana; alemã, que criou esse Brasil misturado, mais mulato que branco ou negro. Conta com grande conhecimento a história do samba, sua origem no cais do porto, Gamboa — único lugar, então, onde o negro tinha espaço por causa do trabalho braçal -, e de João da Bahiana, que na Pedra do Sal, começou a reunir grupos de samba, que teve origem no Zamba que, por sua vez surgiu do Jongo, que era como o negro se expressava nas senzalas, com cantos de crítica ou de gozação, de amor ou de saudade.

O negro no Brasil, hoje, não é africano há muito tempo;
é brasileiro, assim como o branco

"Esse país é mulato. Não é branco nem negro. Não existe predomínio de preconceito do negro com o branco nem do branco com o negro, pois o negro também é preconceituoso com o negro. O negro no Brasil, hoje, não é africano há muito tempo; é brasileiro, assim como o branco. Houve um português que foi mais brasileiro do esse que ficou aí, nos últimos oito anos, que foi D. Pedro I que expulsou do Brasil aquela canalhada de portugueses que só queria nos roubar." Discorda com fervor da invasão cultural no Brasil onde a mídia impõe a música americana, em detrimento da brasileira, ou pior, só divulga a brasileira de má qualidade.

"A mídia insiste em divulgar o samba pornô. A comunidade, mesmo sendo envolvida pelas mudanças culturais, preserva o hábito de, numa sexta-feira, reunir o povo em volta de uma mesa, e o que rola é samba. Na Mangueira, no Império, se não for um trabalho sério, não se cria. O samba de terreiro é justamente esse, que fala do comportamento do morro. A baixaria impera hoje em dia. Você pode fazer sambas mais quentes, mas faça bem feito. Eu fiz, sem querer, uma música de duplo sentido, Mané Carvoeiro: Trabalho bom eu já disse que é do Mané Carvoeiro, anda sujo o dia todo e cheira pó o ano inteiro."

"O Agepê morava na Travessa do Mosqueira, na Lapa, e eu estava com todo mundo do samba esperando ele chegar. Do outro lado da calçada havia uma carvoaria, um camarada estava descarregando carvão e quando saiu da carvoaria deu uma baita assoada no nariz. Eu achei graça e compus, mas, naquele tempo, não havia essa coisa de pó. Essa música foi limpa naquela época, depois é que ficou com duplo sentido."

Lembra que, pela sua origem na senzala, o samba precisa ser mais representativo da comunidade, do povo em geral. É tradição no samba a crítica ou a chacota política e social. Exemplos existem muitos como o caso do presidente Artur Bernardes, que mandou prender os compositores de um samba de carnaval que fazia críticas a ele; assim como Getúlio que, quando caiu em 1945, surgiu um samba dizendo: eu assisti de camarote o seu fracasso, palhaço…, e quando ele foi eleito em 1950 surgiu: bota o retrato do velho, menina, bota no mesmo lugar. Acha que Chico Buarque é grande sambista quando compõe músicas como Apesar de Você.

"Não podemos é ficar à mercê do capitalismo selvagem que está aí, onde a Globo obriga a só se ouvir música americana impedindo a divulgação da música brasileira. Eu conversei com um diretor da Warner e ele me disse: Djalma, não podemos fazer nada, o próprio Paulinho da Viola, nós vamos mandar embora. Isso vem desde 64. Conforme Lyndon Jonhson (ex-presidente do USA, que substituiu John Kennedy) declarou, numa matéria do canal dois (TVE), que os seis milhões de dólares que levou as forças armadas a dar uma reviravolta política no Brasil foi para impor a cultura americana também."

O controle nefasto da mídia

Torcedor de coração da Escola de Samba Vizinha Faladeira, entrou na Vila Isabel por volta de 1969/70, no ano do enredo Glórias Gaúchas, enquanto a Vizinha Faladeira "dormia e só acordou há coisa de 8 anos." Na Vila Isabel, lançou um samba de terreiro, que foi coqueluche na escola, em 79/80, intitulado À procura dela:

Oh! Oh! saudade, Oh! Oh! Saudade
Vê se descobre onde mora meu amor,
se encontrar transmite a ela por favor
Que só você é que restou.
(…)
Tudo é saudade à minha frente
nem sei o que fazer agora
Vai daqui saudade, por favor
Vai descobrir onde ela mora…

A dominação da mídia está acabando com os sambistas de raiz e com o carnaval, fazendo o que se chama de reminiscências carnavalescas, isto é, uma idéia (que Djalma garante vir da Rede Globo) de se refazer enredos do passado — Chica da Silva; Aquarela do Brasil; Bahia de Todos os Santos, etc —, com os sambas originais, o que acabaria com a ala de compositores das escolas, as disputas de samba de enredo, e as gravadoras não precisariam mais pagar direitos autorais. "Na ala de compositores estão os grandes sambistas que têm a tradição do samba de terreiro, que não tem vínculo com o samba comercial, assim como Darcy da Mangueira, Noca da Portela, Valdir 59, Tiãozinho do Salgueiro, Pintado da Vizinha Faladeira, Lecy Brandão, Paulinho da Viola e muitos outros. É no samba de terreiro que os compositores falam com a comunidade sobre as coisas dela. Antigamente o compositor era muito mais importante na Escola que o samba de enredo, mas depois que este começou a dar dinheiro para a escola, o autor não inte-ressa mais. A mídia, desde 64, começou a pôr de lado as coisas verdadeiras do povo."

Reclama do controle que a mídia exerce sobre as Escolas de Samba e da atitude dos atuais diretores e presidentes: "Onde tem dinheiro, tem vagabundo, tem ladrão, safado, canalha. Ninguém queria tomar conta de Escola de Samba. Agora que entra dinheiro todo mundo quer. E não se pode falar, porque o império do samba é muito forte e você não pode reclamar; tem que dizer amém. Tem muito "Bush" nas Escolas de Samba. Existem carnavalescos que, apesar de já serem pagos pela Escola para fazerem o carnaval, resolveram querer parte dos direitos do samba que o compositor recebe na venda do CD, com a desculpa de que são eles que dão o tema. Estão acabando com o espaço do sambista."

"Na Escola, o cara faz uma fantasia que não vale mais que R$ 150 e vende por R$ 800. Eu posso dizer isso porque sou gerente de qualidade da minha mulher, Edna Morais, que é estilista. Eles não vão dizer pra mim o valor de fantasia. Os caras vendem as fantasias e dão de graça só para uns gatos pingados da comunidade. Todo mundo paga a fantasia para botar uns artistas da Globo na avenida e a Globo botar dinheiro no bolso. Em 72 eu abandonei a Vila Isabel, voltei em 77 para um festival, em que me classifiquei em segundo lugar, e em 79 abandonei em definitivo a Vila. Nas escolas, não interessa se o samba é bom ou não, só vence aquele que o presidente ou diretoria decide."

A origem e o novo

Considera que personalidades do samba são inesquecíveis, como Clementina de Jesus: "Clementina não era uma grande sambista, era um documento com a sua voz de senzala"; Risoleta, citada em um samba, na década de 30, que dizia: Vou prender essa nega Risoleta/que me fez uma falseta /e me desacatou porque não lhe dei o meu amor; Candeia, "ele era meio atrevido, não é porque ele morreu que a gente não vai falar isso. Um dia, eu fui convidado para um feijão, lá na Portelinha. Às duas horas da tarde, numa roda de samba, ele me tomou o microfone da mão quando eu fui chamado para cantar."

Após a morte de Candeia, foi convidado por Valdir 59 para participar de um carnaval do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo — fundado por Candeia, Valdir 59, Wilson Moreira, Jorge Coutinho e outros, com a finalidade de divulgar sambas, afoxés, e ritmos de raiz — num enredo intitulado A revolta dos Malês. Porém, por problemas internos, a Escola acabou não desfilando. Para sua escola de coração, a Vizinha Faladeira, compôs o samba para o enredo A cara alegre do Rio — uma homenagem ao cinquentenário do cartunista Lan que dizia: Eu vou chutar até o pau da barraca/cara a cara, marca a marca/de um carioca festeiro/e se faltar nesta festa/o desenho da mulata/eu expulso da favela /o meu Rio de Janeiro(…) Oh, sempre-viva saudade/ e o grande bolo que já está cortado pra muvuca/e o Flagrante está na cuca/e é da melhor qualidade./Eu sou pé-quente e muita questão eu faço/ó Vizinha Faladeira, vim te dar o primeiro pedaço/Sou cidadão tarantela, milongueiro /neste chão de partideiro com feitiço de montão/ com humildade exalto a Vizinha Faladeira/mais uma águia altaneira dentro do seu pavilhão. Mas seu samba foi cortado da disputa e a escola caiu.

Diante dos novos movimentos musicais que estão surgindo — como o hip-hop, que é de favela e fala da situação atual, que critica as desigualdades e se soma ao samba -, diz que, por ser autor, poderia fazer até hino de igreja, se fosse preciso, mas, por vontade, não, e acrescenta: "cada qual no seu cada qual. Se eu estou no samba, onde eu estou quase chegando a rei, não vou ser bastardo em outro lugar. Eu não sou contra, cada qual faz aquilo que gosta."

Quando garoto, Djalminha ouvia muito o realejo do Seu Domingos, que tocava músicas como Santa Lucia, e a coleção de tenores que o pai de um amigo possuía. Assim foi tomando gosto pelo canto lírico, gênero ao qual se dedicou e estudou. Fez canto com o professor Alfredo Colozzimo, mas reconhece que o fato de ser sambista criou muitos preconceitos nessa carreira. Frequentou o Teatro de Ópera do Rio de Janeiro onde participava de uns saraus com o professor D'Ângelo. Foi convidado para cantar no Clube Naval, mas se recusou: "não canto para militares."

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