Iniciada ainda no século XVII, a disputa entre as coroas portuguesa e espanhola pela grande região onde desemboca o Rio da Prata, ou seja, o sul do Brasil, mais os territórios hoje pertencentes ao Uruguai e Argentina, marcou o desenvolvimento, principalmente da porção oeste dos estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. O nome do rio deve-se ao fato dele ser o escoadouro de toda a prata retirada das montanhas andinas, o que explica por si só o interesse dos reis europeus.
Os conflitos pela posse da colônia de Sacramento — fundada em 1680 já como ponto principal do contrabando de ouro e prata entre Brasil e províncias espanholas, e disputada desde então, além de guerras como as Guaraníticas (1754-56), a Cisplatina (1825-28), a Farroupilha (1835-45) e a do Paraguai (1864-70) — dificultaram qualquer desenvolvimento agrário na região até a demarcação definitiva das fronteiras, o que só se deu às vésperas da proclamação da República.
No início do século XVIII, com o ciclo do ouro em ascendência em Minas Gerais, o Rio Grande do Sul passa a ser o principal fornecedor de gado bovino, cavalar e muar para a região aurífera. Os animais, trazidos por missionários jesuítas, desenvolveram-se muito bem na região dos pampas e lá eram criados soltos, sem qualquer cercado. Antes de servir Minas Gerais, mulas já eram enviadas à Potosi, na Bolívia. Era um bom animal de transporte em montanhas. Em Minas, o gado servia para tração, transporte e alimentação. A corrida do ouro foi tão intensa na região que faltou comida, porque ninguém plantava, só cavava.
Riquezas para os outros
Com o comércio entre Rio Grande e Minas Gerais foram surgindo vários caminhos de boi no interior dos estados do Sul. Assim, apareceram estâncias e vilas, como Lages, em 1771.
O século XIX marca o final do ciclo do ouro mineiro e o início das guerras territoriais no Sul do Brasil. Nesse século, aportam imigrantes ao país, um excedente populacional miserável de originários da: Alemanha, pressionada demograficamente e com más colheitas; da Itália, principalmente das regiões menos desenvolvidas que sofreram com a unificação do país; Polônia, fatiada pela Áustria; Prússia e Rússia.
Santa Catarina foi a primeira província a iniciar um programa de imigração, em 1829. Segundo a pesquisadora Maria Ignez Paulilo, isso se deve ao fato da província ter uma economia praticamente inexistente e estar sempre precisando de soldados. Para ali já haviam imigrado, de 1748 até 1756, muitos habitantes das Ilhas dos Açores (pertencentes a Portugal) para servir — e passar fome — nos fortes catarinenses. Ela conta em seu livro Terra à vista… E ao longe que só havia, por parte de Portugal, imperativos militares nos planos de colonização do Sul e que, sem qualquer infra-estrutura ou apoio do governo, estes imigrantes, que já vinham de camadas médias e pobres da Europa, sem recursos, eram abandonados à própria sorte, criando desde este momento populações sem terra e migrantes na região.
AND mostrou, na edição número 10, que as colônias do vale do Itajaí, tão isoladas, tinham a língua portuguesa como totalmente desconhecida das comunidades. O descaso foi tamanho, que o governo alemão proibiu novas imigrações em 1859, mas logo voltou atrás, pois seu país transbordava de gente.
Mais uma vez, a terra não é do povo
Também no século XIX têm início as pressões da Inglaterra pelo fim da escravidão, invocada não por humanismo, mas movida pelas tendências do comércio mundial. Em 1850, começam a aparecer leis reprimindo o tráfico de escravos, o que incentiva a imigração de europeu, juntamente com as idéias racistas de “branqueamento”.
Eis que surge, também em 1850, para impedir aos pobres o acesso aos mais decisivos meios de produção, a Lei de Terras. Ela reforça a discriminação já em seu segundo artigo: quem não era branco, não tinha direito à propriedade de terras. E como quem era pobre não podia votar, não podia, portanto, negociar privilégios e direitos. A lei dá fim ao sistema de sesmarias, que existia desde 1500, e passa a exigir contratos de compra e venda na aquisição de terras, mencionando o reconhecimento de posses já existentes, o que de fato ocorreu muito pouco.
Assim, é garantida aos grandes proprietários de mão-de-obra barata imensas faixas de terra que já possuíam e a incorporação de outras, o que inaugura um novo tipo de escravidão, mais lucrativa ainda: o trabalho (parcamente) assalariado de posseiros, meeiros e imigrantes. Esses trabalhadores, segundo Paulilo, firmavam “um contrato pelo qual se obrigavam a não abandonar a fazenda até pagar suas dívidas (com o governo, proprietários ou companhias colonizadoras) que, na verdade, só faziam aumentar devido ao custo de manutenção dos primeiros anos.”
Coronelismo, garantia de opressão
As chamadas “terras devolutas” eram de posse do governo até o fim do Império, quando passaram para a posse dos estados, num grande trunfo das elites regionais, que aumentaram seu poder de barganha. Devolutas também eram as terras onde muitas tribos indígenas viviam em toda a região Sul. O índio era considerado parte da fauna, portanto não detinha propriedade alguma. A condenação pela Igreja das práticas e costumes daquelas sociedades, adicionada às doenças contra as quais não tinham resistência, desestruturam de vez seu modo de vida e espaço, invadido impiedosamente.
Um fator determinante na hierarquização do campo, no Sul do Brasil, é a criação, em 1831, da Guarda Nacional, principal milícia brasileira até a Guerra do Paraguai, só extinta em 1918. “Os senhores de gado, os estancieiros, transformaram-se oficialmente no que já eram de fato — chefes militares que comandavam grupos armados”, escreve Paulilo. Recebiam a alcunha de “coronel”, tinham seu séquito miliciano e inimigos próprios.
Vale lembrar que havia dois tipos predominantes de propriedades na região: pequenos pedaços de terra em terras devolutas, dos posseiros, e áreas extensas remanescentes das sesmarias. “O reforço do poder dos senhores de terra, permitindo-lhes armas e séquito, aumenta ainda mais a fragilidade dos despossuídos frente a eles. A única possibilidade de libertação é a locomoção, procurando terras pelas quais os coronéis não tenham interesse, até que esse interesse surja e os afugente”, conclui Paulilo. Toda essa dominação vai culminar em Santa Catarina na Guerra do Contestado (1912-16) — veja AND 8 —, com a construção da ferrovia São Paulo-Rio Grande e a concessão de uma imensidão de terras onde viviam posseiros a empresas de colonização, como a britânica Southern Brazil Lumber and Colonization Co.
Atração e expulsão
Com a saturação das colônias no leste catarinense e no Rio Grande do Sul, começam com o século XX as migrações para o oeste catarinense e Paraná, regiões povoadas por índios e alguns posseiros. As empresas colonizadoras, mais uma vez, têm um negócio fabuloso para realizar. Algumas chegam a controlar e vender centenas de milhares de hectares na região. O auge dessas migrações se dá nos anos 50 e 60, quando mais de um milhão de pessoas migram para o Paraná, principalmente do Sudeste e demais estados do Sul, ultrapassando em termos absolutos o estado de São Paulo, até então, a área de maior atração migratória.
Já nos anos 70, essa fronteira agrícola dava sinais de saturação. É a década da “revolução verde” dos gerenciamentos militares na América Latina, coincidindo com a promoção de integração de terra no Continente, mediante desemprego no campo, particularmente no Brasil. “O governo se ocupa em adotar política agropecuária que atende às reivindicações conjunturais da economia e não em resolver o problema da estrutura agrária do país”, explica Carmela Panini no livro Reforma agrária dentro e fora da lei.
Houve incentivo ao uso de máquinas e outros insumos modernos, principalmente grandes lances patrocinados pelo capital financeiro mundial e, quem não conseguiu se “modernizar” ficou marginalizado. Alguns, na tentativa desesperada de utilizar o traiçoeiro crédito rural cedido pelo governo, perderam até o pouco que tinham para as instituições bancárias federais. Panini afirma que, em 1987, 64% dos agricultores expropriados em Chapecó, no oeste catarinense, tinham perdido sua propriedade por causa de dívidas do crédito rural. Nessa região, cresceram muito, desde então, os frigoríficos de suínos e aves que utilizam a forma de “produção integrada”, onde o agricultor vira marionete da indústria estrangeira que opera no país: só pode comprar e vender para ela, devendo obedecer a “padrões internacionais” de qualidade ditada pelas corporações mundiais.
A concentração latifundiária avança: em 1970, propriedades com mais de 200 hectares representam 0,4% dos estabelecimentos e 11,9% das terras. Em 1980, passam respectivamente para 0,5% e 16,1%. O que era área de atração passa a ser área de expulsão. Novas migrações ocorrem, do Sul para o Centro-Oeste até Rondônia, a avassaladora marcha para a Amazônia, conhecida como a “última fronteira agrícola”, de onde muitos voltam depois de constatarem que a vida havia se tornado mais difícil ainda.
A luta pelo acesso a terra
Esgotado o gerenciamento militar, surgiram novamente esperanças para o povo camponês. Mais uma vez, foi em vão. A Nova República, para o camponês, foi tão repressora quanto o gerenciamento militar. Nos anos 80 houve recordes de assassinatos de lideranças rurais, e o oeste catarinense e paranaense somou números a essa estatística.
Ao longo da década de 80, camponeses invadem diversas fazendas em diversos municípios catarinenses e se organizam em movimentos. Alguns são despejados e outros mantêm seus acampamentos por alguns meses. É um modo de sobreviver quase morrendo, migrando. Em 1990, calcula-se a existência de 664 mil indigentes em Santa Catarina, representando 15% da população total e 24% da rural.
Mesmo se tratando de uma das regiões que mais produz alimentos no país, o oeste catarinense tem meninos de rua furtando para comer, favelas em cidades de pequeno e médio porte, índios e agricultores expulsos da terra. A organização dos pequenos produtores — seja sob a forma da expansão dos movimentos pela posse da terra, na criação de uma nova escola, etc. — acontece de maneira lenta e sofrida, tendo ao seu encalço os batalhões da polícia operacional e as matilhas da polícia política, as mais diversas correntes oportunistas, a espionagem, a imprensa dos latifundiários e do capital burocrático interno e externo.
Santa Catarina é miticamente conhecido como um estado onde o imigrante europeu, ao contrário dos “caboclos” — palavra pejorativa relativa aos nativos da região — prosperou: 33% dos agricultores que expropriaram a terra dos latifundiários possuem sobrenome europeu. Essa é a história oficial, contada pelos empresários que adentraram na esfera política. A outra é a que anunciamos agora, semelhante a do Brasil inteiro.