A rua está repleta de mistificações: a pornografia nas bancas de revista; o consumismo dos outdoors; os enganadores da fé do povo e demais apelos alienantes. Ir para a rua, portanto, tem um conteúdo ideológico cuja diferença está entre adormecer a consciência das massas ou despertá-la. Quando a Arte é colocada a serviço do povo, ela retira dele o melhor de sua obstinação, de sua coragem e determinação de transformar a cruel realidade em que vive, reelaborando o material e devolvendo a este povo um produto cujo conteúdo e estética são aceitos e reconhecidos como parte de sua luta. E quando isto é feito na rua, constitui-se num verdadeiro embate ideológico com as forças do obscurantismo e do atraso. O povo se identifica com a fala, com os gestos, com a mensagem enfim, e, ao aplaudir, aplaude a si mesmo.
Grupo Gaúcho de teatro, há vinte e seis anos faz um trabalho forte junto ao povo, com um teatro de rua, teatro de vivência, e um centro de pesquisa: a Terreira da Tribo, onde desenvolve seus projetos de escrita coletiva teatral, e outros junto a comunidade local, como oficinas gratuitas. Apresentando espetáculos marcantes, tanto na rua, quanto na Terreira, o grupo aparece como um dos mais importantes do país, no quesito arte voltada para o povo.
A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis surgiu em 1978, com uma proposta centrada no contato direto entre atores e espectadores, transcendendo a clássica divisão palco/platéia. Com sede em Porto Alegre, RS, vem seguindo a linha de um teatro voltado para a interação com o público. A trupe gaúcha é especialista em trabalhar os espaços de cada espetáculo que vai apresentar, transformando o seu teatro, chamado Terreira da Tribo, de acordo com a trama a ser encenada, colocando o público sempre em locais diferentes.
Segundo a atriz e coordenadora do Ói Nóis, Tânia Farias, o grupo desenvolve um trabalho contínuo de pesquisa em relação à linguagem cênica e ao processo criativo de ator. — A história da Tribo sempre se pautou pela afirmação da diferença, da independência em relação ao mercado e as estruturas do poder, com encenações caracterizadas pela ousadia e liberdade criativa. As suas três principais vertentes são: o teatro de rua, nascido das manifestações políticas, de linguagem popular e intervenção direta no cotidiano da cidade; o teatro de vivência, no sentido de experiência partilhada, em que o espectador torna-se participante da cena; e o trabalho artístico pedagógico, desenvolvido na sua sede junto a comunidade local —, conta Tânia.
Ela diz que as principais sombras do trabalho do Ói Nóis são com certeza o pensamento do dramaturgo francês Antonin Artaud (1896 – 1948) e o seu Teatro da Crueldade, e do dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898 – 1956), com o seu Teatro Épico.
— Acreditamos que o que fazemos é uma fusão do pensamento deste homens, colocada nas três principais vertentes do trabalho/projeto do Ói Nóis: o teatro de vivência, o teatro de rua e o trabalho pedagógico —, define Tânia.
Contato com o público
Criada em 1984, sob o signo do teatro revolucionário de Antonin Artaud, a Terreira da Tribo não é somente um espaço para apresentação de peças teatrais e sede do grupo, ela é hoje um dos principais centros de investigação cênica do país. Desde as oficinas teatrais de iniciação, pesquisa de linguagem, formação e treinamento de atores, até a elaboração e montagem dos espetáculos do Ói Nóis Aqui Traveis, é um espaço que possibilita a sua utilização de diversas formas. É na Terreira que o grupo cria o seu Teatro de Vivência, com os seus ambientes cênicos onde o espectador, integrado ao espaço, torna-se um participante do ato teatral.
— A Terreira abrigou, desde a sua criação, diversas manifestações culturais, além de proporcionar para as pessoas em geral o contato com o fazer teatral. Gerida de uma forma libertária pelo Ói Nóis Aqui Traveis, a Terreira é uma peça fundamental para o desenvolvimento do teatro porto-alegrense. Várias das suas manifestações já foram apropriadas pela cidade, como o Teatro de Rua, hoje com vários grupos atuando regularmente, e as Oficinas Populares de Teatro desenvolvidas em diversos bairros de Porto Alegre —, declara Tânia.
O Ói Nóis trabalha uma investigação de Teatro Ritual. As premissas da encenação ritualística são a essência do teatro e como pode realizar-se plenamente através do contato direto e criativo entre atores e público. No Teatro Ritual, o espectador volta a ser participante, como na origem do teatro, quando acontecia uma integração entre atores e espectadores. A esse movimento o Ói Nóis Aqui Traveis denominou de Teatro de Vivência.
— Ele privilegia a ação cênica, o acontecimento vivido, remetendo o público as raízes da cena onde todos estão integrados — , define Tânia.
Dentro desse Teatro de Vivência está a peça Ofélia Machine, uma criação coletiva da Tribo, inspirada livremente no dramaturgo alemão Heiner Muller (1929 – 1995). A idéia de Muller é um trabalho de releitura paródica do clássico de Shakespeare, tornando-o atual e potente para uma crítica ao contemporâneo.
— Com o Teatro de Vivência (últimas montagens: A Morte e a Donzela, 1997/98; Hamlet Máquina, 1999/2001 e Aos Que Virão Depois de Nós Kassandra In Process, 2002/04) o Ói Nóis dá continuidade a investigação sobre Teatro Ritual. O teatro como interação entre atores e público —, fala Tânia. — Esta proposta de encenação é realizada na Terreira da Tribo, onde o espaço teatral é modificado por completo de um espetáculo para outro, em função do modo de relacionamento que se quer colocar em prática entre o ator e o espectador. O Ói Nóis Aqui Traveis trabalha com a encenação coletiva onde cada um dos atores é um dos criadores do espetáculo. Para o Ói Nóis o teatro é um lugar de invenção e experimentação, um meio de transformação, de mudança de mentalidades, em nível social e também individual. Seu trabalho de investigação sobre a linguagem procura uma lógica diversa da cultura dominante, que provoque um estranhamento em relação à percepção usual de mundo e que seja expressão das contradições da sociedade na qual está inserido.
— Todo o projeto desenvolvido pelo Ói Nóis Aqui Traveis está diretamente relacionado com o seu centro de criação: a Terreira da Tribo, que ocupa lugar de destaque entre os espaços culturais do estado, sendo igualmente apontada como uma referência de âmbito nacional —, continua Tânia.
Teatro de Rua
Uma especialidade marcante do Ói Nóis é a encenação de espetáculos teatrais em praças públicas, ruas e vilas de Porto Alegre, e outras cidades: o Teatro de Rua.
— As primeiras intervenções cênicas nas ruas da cidade datam de 1981, com encenações curtas em manifestações ecológicas e antimilitaristas, contra o uso indiscriminado da energia atômica. A partir daí, vem promovendo intervenções cênicas sistemáticas em momentos de mobilização política, em atos de repúdio à injustiça social e à violência institucionalizada—, conta Tânia.
— A partir de 1985, com a montagem do espetáculo Teon – Morte em Tupi-Guarani , o Ói Nóis Aqui Traveis iniciou uma trajetória de encenações para teatro de rua (últimas encenações: A Exceção e a Regra, 1998/2000 e A Saga de Canudos, 2000/2004) que percorrem as ruas, praças, bairros e vilas populares da cidade, criando um teatro popular onde arte e política se fundem, voltado para a maior parte da população, aquela que por suas carências culturais e econômicas não tem acesso às salas de espetáculos — , continua.
O grupo faz um teatro de rua lúcido e irreverente, de intervenção direta no cotidiano da cidade de Porto Alegre, com uma pesquisa de linguagem bastante específica. As pequenas ações dão lugar aos bonecos gigantes, as máscaras, as pernas-de-pau, a música e as cores. Estes são alguns dos elementos que compõem a cena poética do Ói Nóis na rua. O grupo desenvolveu ao longo desses vinte e seis anos, uma linguagem e dramaturgia muito próprias para o seu Teatro de Rua.
— Para que a rua seja palco de um teatro que se assuma como um constante repensar da sociedade, motivando uma releitura da vida cotidiana, para seduzir esse público anônimo e passageiro, o Teatro de Rua requer uma pesquisa estética levada às últimas consequências, onde surgem elementos como máscaras e bonecos de grandes proporções, pernas de pau e música, canto e dança, figurinos e adereços criativos e coloridos. A formação do ator para o Teatro de Rua tem sido consequência do aprendizado grupal. A Terreira possibilitou ao Ói Nóis Aqui Traveis empreender uma política de sistematização e consolidação da experiência do Teatro de Rua, desenvolvendo desde 1988 o projeto ‘Caminho Para Um Teatro Popular’, criando um circuito regular de apresentações nos bairros populares —, comenta Tânia.
Entre suas apresentações destaca-se a peça Saga de Canudos, um espetáculo que faz por recuperar o caráter político do movimento liderado por Antônio Conselheiro no final do século dezenove, mostrando um Conselheiro fruto da história. Com máscaras e bonecos, música e dança, a encenação conta a luta entre os deserdados e os poderosos.
Escola de Teatro Popular
Funcionando dentro do espaço Terreira da Tribo, a Escola de Teatro Popular oferece ao povo oficinas de iniciação teatral, pesquisa de linguagem, formação e treinamento de atores. Ela surgiu em 2000, a partir da experiência desenvolvida há quase vinte anos pelo grupo, com as oficinas populares de teatro, em bairros e vilas onde mora a camada mais empobrecida da população de Porto Alegre. A formação do ator é desenvolvida nas áreas de: interpretação; improvisação; expressão corporal; expressão vocal; teoria e história do teatro ocidental; história do teatro brasileiro; e história do pensamento político. Entre os professores estão os atores: Tânia Farias, Paulo Flores e Clélio Cardoso.
— Atualmente as Oficinas oferecidas pela Escola de Teatro Popular são: a Oficina Para Formação de Atores, composta por aulas diárias, teóricas e práticas, com duração de doze meses, buscando através da construção do conhecimento favorecer a emergência do artista competente não apenas no desempenho de seu ofício, mas também preocupado no seu desenvolvimento como cidadão; a Oficina de Teatro de Rua, que desenvolve e pesquisa as diversas formas de se abordar o espaço público a fim de viabilizar a sua transformação em espaço de troca e informação; e a Oficina de Teatro Livre, com a proposta de iniciação teatral a partir de jogos dramáticos, expressão corporal e improvisações —, explica Tânia. — Todas as oficinas são oferecidas de forma gratuita a todos os interessados. A procura cresce a cada ano, de forma a confirmar a necessidade deste trabalho desenvolvido pela Tribo. A Terreira da Tribo constituiu nesses vinte anos um espaço de possibilidades, talvez uma das características mais significativas do trabalho teatral, criando um campo fértil para semear as possibilidades do homem em todos os tempos. Quando utilizamos a expressão popular estamos falando sobre tudo na democratização do acesso ao fazer teatral. Neste sentido o teatro de rua e a Escola de Teatro Popular servem bem como exemplo — , finaliza.