A Escola Popular de Comunicação Crítica forma sua primeira turma, plenamente capacitada a combater a representação preconceituosa e distorcida dos espaços populares dada pelo monopólio da imprensa.
"Nunca no mundo uma bala matou uma idéia"
(Monteiro Lobato)
Bira Carvalho: "a fotografia é fascinante"
No Rio de Janeiro, distante dos arranha-céus da Zona Sul e das novas mansões da Zona Oeste — regiões cuja Prefeitura se esforça para entregar a um determinado grupo de pessoas (ver AND 32) — funciona a Escola Popular de Comunicação Crítica, dentro do bairro Nova Holanda, na Favela da Maré.
Considerada uma das favelas mais violentas do Rio de Janeiro pelo monopólio da imprensa, a Maré está situada na Avenida Brasil e é composta por 16 bairros que reúnem um total de 132 mil habitantes. Seus problemas de infra-estrutura não são diferentes das outras áreas brasileiras negligenciadas pelo poder público: são sonegados saneamento básico, energia elétrica, escolas, postos de saúde etc.
No entanto, mesmo diante de todas esas dificuldades, a Escola Popular conseguiu formar sua primeira turma do curso de fotografia no final de novembro de 2006. São estudantes que receberam diploma chancelado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), que reconheceu este curso como Atividade de Extensão com um total de 180 horas/aula. Para se ter uma idéia, o curso oferecido pela própria UFF aos estudantes de comunicação social tem apenas 60 horas/aula.
Um ponto que poderia ser questionado pelos mais incautos seria quanto à qualidade do curso oferecido pela Escola Popular. A estes, breve esclarecimento: professores renomados tanto da UFRJ quanto da UFF coordenaram o curso, como Dante Gastaldoni e Eduardo Coutinho, que conseguiram reunir uma equipe de professores de alto nível. Além disso, os alunos tiveram o privilégio de assistir a palestras dos fotógrafos Walter Firmo e Evandro Teixeira, entre outros. No coração da Favela da Maré, jovens estudantes aprenderam a fotografar, a tratar imagens e noções de informática, além de como indexar fotos em banco de imagens e, claro, história da fotografia.
O resultado não poderia ser outro: a primeira turma formada no curso de Fotógrafos Populares está plenamente capacitada a retratar a realidade da favela sem o olhar preconceituoso do monopólio da imprensa. Toda a força dos trabalhadores e a vida que pulsa nos bairros proletários agora podem ser documentadas com um viés mais humano e, por que não dizer, revolucionário.
Esse novo olhar acerca desses espaços que, a propósito, representam a realidade da grande maioria do povo brasileiro, já pode ser visto em algumas publicações da própria Favela da Maré, como o jornal "Língua solta" e a revista "O cidadão". Além disso, no decorrer do curso, os corredores da Escola Popular da Comunicação Crítica são frequentemente ilustrados com exposições fotográficas dos próprios alunos, em imagens ampliadas, emolduradas e repletas daquilo que eles mesmos chamam de "explosão de alegria".
A foto da alma
"A fotografia é fascinante", resume Bira Carvalho, 36 anos, aluno do curso. Seu interesse por fotografia começou em 1999, no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, quando teve aulas com o consagrado fotógrafo João Roberto Ripper.
Bira é o quinto filho de seis, e perdeu o pai cedo. "O espírito era mais forte que o corpo", define o homem que andava da Vila Progresso ao centro de Niterói — cerca de 25km — todos os dias, porque lhe faltava o dinheiro da condução. Cardíaco, não suportou e morreu.
Bira é cadeirante* há mais de dez anos e pelo volume de atividades que pratica, pode-se dizer que o sujeito é um fenômeno. Não de mídia, como o outro. É que Bira, além de estudar fotografia, pratica natação, boxe, tênis, basquete e handball; daí os braços fortes. Lê de tudo um pouco e dá aulas de "Pinhole", técnica usada para fotografar a partir de latas; daí o raciocínio apurado.
Diogo Vítor
Ripper, coordenador do curso de Fotógrafos Populares e reconhecidamente um dos repórteres fotográficos que mais contribuem para a luta dos movimentos sociais, afirma que o desempenho dos estudantes da Favela da Maré está bem acima da média. "Não tinha visto, antes de trabalhar na Maré, tanta dedicação, vontade de aprender e compromisso. É gratificante ver a preocupação que eles têm com a forma de documentar, o cuidado não só em se tornar bons profissionais, mas também em dignificar a favela, não ferir a sua identidade".
E nem sempre os alunos estão em condições de prestar atenção nas aulas. É o caso de Sara Marinho, que teve um filho assassinado, e Rosângela Silva, cujo filho foi preso. Mesmo assim elas estão ali dividindo a dor e o computador ao lado da porta, querendo saber como aumentar o contraste, diminuir a luz ou simplesmente exclamando "Manero!" no momento em que conseguem um ajuste bem sucedido durante a edição de uma fotografia.
O curso também enfatiza a importância da democratização do acesso à linguagem fotográfica como técnica de expressão e visão ideológica de mundo para ampliar o olhar humanista sobre a sociedade como um todo e, particularmente, das favelas sobre elas mesmas.
De acordo com o conteúdo programático do curso: "O sensacionalismo, a pobreza e a violência que caracterizam o olhar tradicional sobre tais comunidades – nos moldes da visão geralmente apresentada pela grande imprensa -, estão longe de dar conta da riqueza que é a experiência de vida posta em curso nesses espaços".
Solidariedade como a de Sadraque Santos, aluno do curso, que foi até o Canal do Cortado, na Zona Oeste, fotografar a demolição de quarenta casas:
— Viemos aqui prestar solidariedade aos moradores — disse enquanto subia em dois pulos a escada de Maria das Graças, no Canal do Cortado, Recreio, Zona Oeste. Depois dos cliques, Sadraque ainda dormiu na comunidade, onde seis famílias resistem à ação da Prefeitura (ver AND 32).
Após quase dois anos, a turma de fotógrafos populares está plenamente capacitada a retratar sua própria realidade sem o filtro do monopólio da imprensa. E isto tem grande impacto na forma como os próprios moradores da favela se vêem. Acostumados a serem retratados como bandidos nas imagens da televisão, jornais e revistas, eles agora descobrem um outro lado. A partir da fotografia popular, o povo percebe que pode ser o principal agente de sua própria história. E que é ele quem pode mudar a realidade do país, como previu o geógrafo brasileiro Milton Santos: "a revolução virá de baixo".
*Cadeirante; refere-se à pessoa que necessita, por alguma razão, de uma cadeira de rodas para se locomover.
Entrevista com o repórter fotográfico João Roberto Ripper, coordenador da Escola Popular de Comunicação Crítica e do curso de Fotógrafos Populares.
— Essa idéia começou a partir de um chamado do Observatório de Favelas para fazer uma documentação sobre as favelas do Rio de Janeiro, onde eu pudesse mostrar a vida nas favelas, onde cerca de 99% da população não tem envolvimento algum com a bandidagem, documentando essa realidade. Aí fui encontrando pessoas que gostavam de fotografia, que gostavam de fotografar. Então percebi que mais importante do que eu fotografar as favelas do Rio de Janeiro, era implementar um grande curso de fotografia, onde as pessoas aprendessem a fotografar e eles mesmos documentassem a sua realidade a partir de um olhar deles. Foi assim que surgiu a idéia.
— A fotografia, como qualquer trabalho de informação, na verdade você vai a qualquer lugar e tenta reconhecer valores. Quando você vai despido de uma visão pré-determinada, você vai pra reconhecer as coisas. Quem mora lá na comunidade reconhece seus valores a toda hora. E reconhecer esses valores, e reconhecê-los como valores produtivos, permite que eles traduzam a realidade deles, de participação, de trabalho, de alegria, de dor também. Mas eles tratam a favela de uma maneira absolutamente diferente da favela que é mostrada. A favela é mostrada como se fosse um reduto de violência, um lugar de problemas. Na verdade a favela é uma solução pra questão da habitação que o Estado não resolveu, e a população resolveu a sua maneira. E também porque a violência é mostrada de uma visão tão parcial que leva a sociedade a ter uma visão errada das comunidades pobres, das favelas. E o trabalho dessas pessoas tem mostrado uma riqueza, uma beleza, uma sensualidade, que eu acho um grito deles, do tipo: "Olha, nós somos bonitos, nós fazemos coisas bonitas". É uma grande discussão da comunicação, o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: "Todo ser humano tem direito a se informar do que quer e a informar o que quer". Se as comunidades pobres estão precisando fazer a sua própria comunicação, cabe a gente uma reflexão. Porque a forma como eles vêm sendo mostrados não traduz a realidade deles. Desagrada e ofende profundamente. Então eles estão precisando mostrar. Porque hoje, o grosso do material jornalístico produzido tem sido nocivo à pobreza.
O que acontece na Maré, e que surge também em outras comunidades do Rio, em São Paulo, em outros locais na América Latina, é a própria comunidade aprendendo o mundo da fotografia e, a partir desse aprendizado, fazer sua própria documentação como um grito. Acho que todo esse trabalho merece uma reflexão da sociedade sobre o direito universal de as pessoas se comunicarem. Todo mundo tem direito à comunicação. À medida em que as universidades não chegam nas áreas pobres e à medida em que os jornalistas cada vez mais se afastam das áreas pobres, ora, se você não conhece a pobreza e você não tem nenhum representante da pobreza, a gente tem um jornalismo que não serve à pobreza. Não dá pra gente compactuar e aceitar que a partir da morte de Tim Lopes o resultado seja a gente não ir até a comunidade ou só ir atrás da polícia. Não tem sentido. Se a gente não tem um trabalho muito forte de mostrar as comunidades pobres e permite que elas sejam mostradas como local de violência, como agência de violência, a gente permite que o Estado entre com carros que disseminam o terror dentro das comunidades, essa gente não tenha disposição para tentar apurar a corrupção da polícia, corrupção da polícia mineira, se a gente resume o problema da violência ao tráfico de drogas e a uma ótica própria de como se vê o tráfico de drogas, a gente está compactuando com isso aí. Há que se pensar que você tem populações imensas. Se a gente faz um trabalho pra defender a retirada das pessoas da favela, que a favela está tendo uma postura anti-ecológica e que está tomando os cartões postais do Rio, e pra convencer a sociedade a gente usa tele de 300, de 500, 800, pra traçar planos que passam a quilômetros de distância, a gente não está fazendo uma descrição correta. A gente está induzindo as pessoas a pensarem daquela maneira. A gente está induzindo ao medo, a gente está induzido a pensar que é o pobre o anti-ecológico, a gente não está fazendo refletir que grande parte das áreas de lazer da "classe média" foram calcadas em cima de aterros, que são medidas anti-ecológicas. E já existiam pessoas no alto das favelas morando e vendo isso acontecer. Então a discussão da favela tem que acontecer em cima dos problemas que lá existem, mas dividir isso com a vida real da favela e inclusive com o benefício que ela oferece à sociedade, quer dizer, pra tirar as pessoas, pra massacrar as pessoas não resolve o problema. Acirra o problema, aumenta o problema. Hoje eu trabalho com muito mais tranqüilidade dentro da favela do que se eu for sair pra fotografar na "classe média". A "classe média" está extremamente violenta. Por que estamos numa sociedade tão violenta? Será que basta a gente divulgar quase toda semana que tem mais um chefão preso, e se a gente for analisar esses chefões presos vamos ver que eles sequer resistem a ter um sapato e em sua conta bancária. Não tem nada. Quer dizer, vamos rediscutir isso aí. A gente não está passando a realidade da sociedade. A gente está sendo um pouco omisso e conivente com esse estado de coisas.
A grande diferença que ocorre é que as pessoas começam a ver que a fotografia pode fazer bem. Até então as pessoas tinham um verdadeiro pavor. Chegou fotógrafo, no dia seguinte vai ter alguma coisa de mau sobre a gente. Hoje as pessoas começam a procurar pela fotografia. Ou, se gosta de fotografar, pega a foto como retorno: "pôxa, estão documentando o meu trabalho". Começa a ter espaço para "eu posso me mostrar como eu sou", em contraste com o medo que se tinha antes de aparecer no jornal como se fosse bandido.