Os mocinhos são bandidos

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Os mocinhos são bandidos

Alguém disse, com toda a razão, que a imprensa do capitalismo pode ser comparada a certas salsichas: se as pessoas soubessem como estas e as notícias são fabricadas, não engoliriam nem umas nem outras. Com poucas chances de errar, pode-se estender o alerta contra todos os meios de comunicação impressos e audiovisuais fabricados pelo imperialismo: jornal, revista, rádio, televisão, cinema.

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É um asco. Por mais que a ideologia da classe dominante coloque conservantes, odorantes e belas embalagens, esses produtos não deveriam ser consumidos assim sem mais nem menos, sem cuidado, pelo freguês. Fazem mal à saúde. Principalmente ao cérebro.

Deglutir notícias, programas de televisão, filmes (notadamente ianques), sem qualquer prevenção, é um perigo. O raciocínio se reduz, os pensamentos ficam confusos, o senso crítico vai embora.

Tratando-se de cinema, ao entrar na sala escura, uma boa dose de precaução deve ser ingerida junto com a pipoca. Pois até películas aparentemente inofensivas, como Gladiador por exemplo, apresentam alto risco ao consumidor desavisado. São salsichas contaminadas pela nojeira do pensamento imperialista.

Sobre o assunto, AND apresenta um trecho, sintetizado, do artigo Transformações da esfera pública na sociedade da informação: pensando mídia, guerra e cultura de Giulia Crippa, doutora em História Social pela USP e Marco Antônio de Almeida, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, publicado na edição nº 30 da revista Projeto História, da PUC de S. Paulo:

"Ridley Scott (diretor dos incensados Alien, Blade Runner e Thelma e Louise) aparentemente converteu-se à visão norte-americana dominante na era Bush. Com Cruzada, Ridley Scott completa o que poderíamos chamar de uma Trilogia do Império, iniciada com Gladiador, em 2000, seguida de Falcão Negro em Perigo, de 2001

Os três filmes podem ser lidos como apologias mais ou menos disfarçadas do império norte-americano.

(…) No primeiro filme, ele aborda as dificuldades "internas" do império romano (corrupção, lideranças "fracas", necessidade de recuperar antigos ideais). Os Estados Unidos são evocados sub-repticiamente como os sucessores e sucedâneos desse império na contemporaneidade.
No segundo filme, os Estados Unidos são retratados como os libertadores de africanos miseráveis que logo se revelam selvagens mal-agradecidos — a alusão é tão óbvia que não merece comentários. Finalmente, em sua última obra, o império norte-americano emerge metaforicamente como condutor da nova "guerra santa" que se impõe

O Gladiador retrata a decadência a partir de uma perspectiva moral do império, encarnado na figura de Cômodo, por volta de 180 d.C. (…) O filme se concentra em uma interpretação ideológica da decadência do império, que remete à "história cristã", na perspectiva do vencedor justo e moralmente consciente da injustiça que, todavia, se torna catarse coletiva ao definir o espaço do herói individualista como salvador da pátria imoral: a ideologia reacionária aparece no espaço de ação do herói, que busca justiça (ou vingança) pela morte da família por ordem do imperador, e que não reconduz a nenhuma historicidade possível, mas ao salvador da pátria, ameaçada por fora (pelos ‘bárbaros’ germânicos) enquanto nenhuma referência explícita aparece ao espaço cristão, a não ser a soma de valores morais atribuídos ao herói: pai de família, que apesar de sua origem provinciana se identifica com o império romano nas crenças e valores simbolizados pelo velho Marco Aurélio.

No entanto, nada se especifica sobre o conjunto de valores, que, aos poucos, se revelam no herói: força física, desejo de vingança, frieza no planejamento da guerra, que leva ao justo destino da queda do tirano e ao ato de libertar os gladiadores de seu destino de escravos, como máxima aspiração coletiva.

(…) O mote inicial de Cruzada é a famosa frase do Papa Urbano 2º conclamando os cristãos a libertar Jerusalém: "Deus quer assim!" Eventualmente, poderiam ter sido ditas por George Bush 2º, que se declarou "cristão renascido" em 1999 e que após o ataque de 11 de setembro de 2001 chamou inicialmente a contra-ofensiva norte-americana de "cruzada", rebatizando-a posteriormente de "guerra ao terror".

O filme se passa durante a trégua celebrada pelo cristão Balian de Ibelin e o sultão Saladino entre a segunda e a terceira cruzadas, em 1187, no período turbulento posterior à morte do rei de Jerusalém, Balduíno 4º.

Inicialmente chama a atenção da escolha dos atores que interpretam os bem-intencionados cavaleiros Balian e seu pai, que eram franceses originalmente e são transformados em ingleses. O próprio episódio específico escolhido por Scott também é singular, caracterizando-se como um momento de exceção em um período que dura de 1095 a 1291.

Chama a atenção, principalmente, a forma maniqueísta de trabalhar essa situação no filme. Assim como aconteceu em Gladiador, Scott insiste em fazer dos vilões caricaturas exageradas e desprezíveis.

Em Cruzada, os vilões são os radicais que assessoram Saladino e os corruptos afrancesados que cercam a corte de Balduíno, e que põem tudo a perder — no caso, uma frágil paz que poderia modificar as relações futuras entre Oriente e Ocidente.

Todas essas "licenças históricas" vêm embaladas na estética do espetáculo, tão cara à indústria do entretenimento, que faz do épico um parque temático da Idade Média, com várias cenas de batalhas espetaculares, onde até o sangue jorra estilosamente.

Na grande batalha final por Jerusalém, um ataque noturno de bolas de fogo é filmado como se fosse um moderno bombardeio de Bagdá pelas bombas "inteligentes" dos norte-americanos".

Esse filme é velho…

A manipulação da produção cinematográfica ianque e o engajamento da poderosa indústria de Hollywood na propaganda imperialista não são fatos novos.

Embora os estúdios, desde os tempos dos filmes mudos, tenham nascido como empresas capitalistas, exploradoras de trabalhadores e intelectuais, acredita-se que foi na 2ª Guerra Mundial que os USA perceberam, com maior nitidez, o papel que o cinema poderia desempenhar na doutrinação reacionária de corações e mentes, dentro do país e pelo mundo afora.

Tudo indica que a construção desse plano deu-se junto com o macartismo e a partir dele, quando o anticomunismo pré-existente virou close, tomou a tela.

Para que o cinema executasse sua nova e estratégica missão, era preciso uma atitude dura e disciplinadora contra seus trabalhadores. Operários especializados, técnicos, atores, roteiristas, escritores — quantos deles não eram tidos como mentes rebeldes, "esquerdistas", "comunistas".

Desde os tempos de John Reed e sua aventura jornalística no Outubro Vermelho da Rússia, quantos estadunidenses não se sentiam atraídos pela idéia socialista, entre eles o pessoal do cinema? Era necessário acabar com isso, era necessário botar ordem no galinheiro.

Assim, uma caça às bruxas foi desatada — levando o nome geral de macartismo, numa alusão ao senador por Wisconsin, Joseph Raymond McCarthy, fantoche escolhido pelo sistema para fazer o papel de um novo Torquemada, o inquisidor.

Não é de estranhar que, entre milhares de norte-americanos perseguidos, processados, presos e humilhados pelo Comitê de Atividades Anti-americanas (sigla HUAC, em inglês) e por comitês do Senado, presididos por McCarthy, os trabalhadores cinematográficos tenham sido alvos destacados.

Em 1947, a HUAC, presidida por J. Parnell Thomas, começou a investigar o pessoal de Hollywood. Após os interrogatórios iniciais, 19 pessoas foram acusadas de ter orientação esquerdista.

Uma delas, o respeitado dramaturgo Bertolt Brecht, foi obrigado a refugiar-se na Alemanha Oriental, para não ser punido. Outros dez, Herbert Biberman, Lester Cole, Albert Maltz, Adrian Scott, Samuel Ornitz, Dalton Trumbo, Edward Dmytryk, Ring Lardner Jr. (autor de Woman of the year, de 1942 e M*A*S*H, de 1970), John Howard Lawson e Alvah Bessie, negaram-se a responder as perguntas. A Corte Suprema os condenou por desacato, a penas de seis a doze meses de prisão.

Ironicamente, entre esse grupo, que foi chamado de os dez de Hollywood se encontravam nomes que haviam produzido filmes pró-USA no período da guerra e logo após. Tais como Hotel Berlim (1945), The master race (1941), Crossfire (1947), Sahara (1943), Pride of the marines (1945), Destino Tóquio (1944) e Trinta segundos sobre Tóquio (1944).

Chamado a depor, o conhecido ator Larry Parks, por sua vez, afirmou que pertenceu ao Partido Comunista entre 1941 e 1945. Quando lhe exigiram que denunciasse companheiros, respondeu: "Não me obriguem a escolher entre cometer desacato, e ir à prisão, e a me arrastar no lodo como um dedo-duro". Mesmo assim, a imprensa do capital noticiou que ele caguetou alguns nomes, entre eles os de Leo Townsend, Isobel Lennart, Roy Huggins, Richard Collins, Lee J. Cobb, Budd Schulberg e Elia Kazan. Parks. Foi assassinado em frente às câmeras em 1976.

Elia Kazan, segundo ventilou-se mais tarde, teria se convertido em um notório informante. Boa parte de seus colegas nunca o perdoou.

Já Lee J. Cobb resistiu à tortura psicológica e ameaças durante dois anos. Depois, debilitado, teria denunciado Marc Lawrence, Lloyd Bridges, Rose Hobart e Jeff Corey. Tragicamente, Cobb se arrependeu depois e comenta-se que jamais se perdoou.

Outra tragédia foi vivida por David Raksin, a quem a perseguição macartista impediu até que alimentasse sua família, pois o capital e seus estúdios cinematográficos passaram a lhe negar trabalho.

Em 1950, o plano do imperialismo ianque de transformar o cinema numa arma de sua propaganda executou mais um passo importante. Em junho daquele ano, três ex-agentes do FBI — disfarçados de cidadãos "democráticos" —, junto com o reacionário produtor de televisão Vincent Harnett publicaram Red Channels ou Canais Vermelhos. Não passava de um panfleto no qual figuravam 151 escritores, diretores e atores, denunciados como membros de grupos subversivos, antes da 2ª Guerra.

Logo que a HUAC somava os 151 nomes à sua lista negra, cópias foram enviadas a todas as empresas da chamada indústria do entretenimento. Havia listas para o cinema, para as rádios, teatros, etc. Avisou-se que os suspeitos não seriam tirados da relação até que comparecessem ao Comitê. Ao mesmo tempo as empresas ficaram proibidas de lhes dar trabalho. A proibição foi tão covarde e fascista que se estendeu a fornecedores de bens e serviços, que ficaram impedidos de fazer negócios com empresários que tivessem trabalhadores incluídos no rol dos subversivos.
A lista negra continuou a crescer. Mais de 320 trabalhadores de Hollywood foram anotados pela HUAC e todos perderam o emprego.

Entre eles estavam: Larry Adler, Stella Adler, Leonard Bernstein, Marc Blitzstein, Joseph Bromberg, Charlie Chaplin, Aaron Copland, Hanns Eisler, Carl Foreman, John Garfield (cuja morte prematura esteve relacionada com a perseguição macartista), Howard Da Silva, Dashiell Hammett, E. Y. Harburg, Lillian Hellman, Burl Ives, Arthur Miller, Dorothy Parker, Philip Loeb, Joseph Losey, Anne Revere, Pete Seeger, Gale Sondergaard, Louis Untermeyer, Josh White, Clifford Odets, Michael Wilson, Paul Jarrico, Jeff Corey, John Randolph, John Lithgow, Kevin Spacey, David Hyde Pierce, Canada Lee, Orson Welles, Paul Green, Sidney Kingsley, Paul Robeson, Richard Wright, Abraham Polonsky e Howard Koch (que escreveu Casablanca em 1942).

O artista canastrão, mais tarde presidente da República igualmente canastrão, Ronald Reagan foi um dos dedo-duros mais implacáveis. Sua sanha era tão raivosa que além de evidenciar sua asquerosa posição política, seus colegas viriam a comentar com ironia, em algumas ocasiões, que a atitude derivava da certeza de sua incompetência como ator. Sabotando artistas talentosos, limpava o caminho para a própria mediocridade.

Centenas de trabalhadores do cinema tiveram suas vidas afetadas para sempre.

Charles Chaplin (assim como Brecht), foi embora dos USA e nunca mais voltou. Vários dos investigados morreram em consequência da inquisição macartista, como o ator John Garfield. A criatividade de Clifford Oddets deteriorou-se e jamais ele voltou a escrever.

Daquela primeira fase de disciplinamento e enquadramento do cinema no plano de propaganda ideológica imperialista (outras fases se seguiram, até os dias atuais, porém a maioria mais sofisticada, encoberta e subliminar) resultaram algumas, poucas, obras de denúncia como o livro Tempo de canalhas, de Lillian Hellman.

Quanto a Hollywood, participante e cumpridora fiel do plano, partiu na época para uma série de filmes reacionários como Eu me casei com um espião vermelho até chegar, à atualidade, com O Gladiador, entre muitos outros.

Fábrica de sonhos? Sim, sonhos alienantes. Mas o melhor mesmo seria chamar de salsicharia.

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