Os novos bugreiros de Santa Catarina

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Os novos bugreiros de Santa Catarina

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Preconceitos contra os índios

Os novos bugreiros de Santa Catarina

"Bugre" era como a classe dominante catarinense chamava, pejorativamente, os indígenas locais. E "bugreiros" eram os grupos armados que caçavam índios pelo estado, nos séculos 19 e 20, trazendo cabeças decepadas e orelhas como provas do serviço feito, para receber o pagamento. Passadas tantas décadas, o preconceito racial e de classe dos donos do poder contra guaranis, caingangues e xoklengues, permanece e contamina até partes da população pobre, que não vê os índios com bons olhos. É o antigo truque de jogar povo contra povo. Hoje, novas formas de manifestação "bugreira" ocorrem em S. Catarina, uma moderna unidade federativa capitalista, porém dominada por uma burguesia de mentalidade velha e reacionária.

Rosana Bond

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Depois que os guaranis foram obrigados a fugir do litoral às matas interioranas (do sul do Brasil, Paraguai e Argentina), no século 17, para escapar da morte e escravização advindas dos ataques bandeirantes, o interior do território catarinense continuou sendo ocupado por índios. Destes, os caingangues e xoklengues começaram a frequentar eventualmente zonas próximas ao litoral, já que os habitantes brancos eram poucos ou inexistentes.
Enquanto durou esse despovoamento branco, tudo correu bem. Mas foi só o governo trazer colonos europeus para S.Catarina, no século XIX, que a tragédia indígena se desatou. Grupos de "bugreiros", armados e pagos por autoridades e colonos, mataram milhares de índios, num genocídio que significou um dos episódios mais aviltantes da história do país.

As milícias assassinas foram desativadas no início do século XX, porém o mesmo não ocorreu com a ótica anti-indígena das classes dominantes. Há ainda hoje, em Santa Catarina, um preconceito de classe e racial que se manifesta das mais variadas formas. Negação de demarcação de aldeias, expulsões, decisões judiciais, matérias jornalísticas, livros, etc, etc, etc.

Não é raro encontrar obras de "História", escritas recentemente, que negam a presença ancestral de índios em certas regiões catarinenses, como modo de justificar a não-legalização de aldeias.

Matérias do monopólio da imprensa, como a publicada pela revista Veja (março de 2007) que provocou reações indignadas nos campos da antropologia e Arqueologia, chegam ao cúmulo de chamar os guaranis de invasores recentes vindos do Paraguai. Mesmo quando se sabe que aqui eles já estavam antes de espanhóis e portugueses, estes sim invasores, aportarem em praias catarinenses.

Falando-se em guaranis, este povo tem sido especialmente sacrificado pela mentalidade "bugreira" dos gerentes governantes. Nenhum centímetro de terra foi demarcado para eles em SC, até hoje, à exceção de um ínfimo pedaço em Biguaçu.

Há pouco, em setembro de 2007, o prefeito de Gaspar, ao saber que a Funai estava negociando uma área no município para assentar uma aldeia guarani, rapidamente decretou o terreno como de utilidade pública, afirmando que ali iria instalar um horto florestal. Vergonhoso.

No oeste catarinense, o desejo dos guaranis de retornar à uma terra ancestral, Araçaí, tem sido manipulado pelos poderosos, jogando povo contra povo. Isto é, agricultores médios/pequenos contra os índios. A seguir, publicamos o resumo de um artigo de Protasio Paulo Langer e Valdir Cemin, publicado na internet pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Indigenistas, a respeito do caso.

Esclarecemos que os guaranis, desde o ano 2000, entraram várias vezes na área e foram expulsos. Abriram processo na Justiça, o qual, sem nenhuma surpresa, está parado e engavetado.

Conflitos étnicos no oeste de Santa Catarina:

Diáspora e reagrupamento no Araça’í

Em julho do ano 2000, um grupo de guaranis reocupou uma área que outrora pertencia a uma aldeia conhecida pelo nome de Araça’í. Esta se situava no extremo oeste catarinense e durante muitos anos foi negada, ou dissimulada pelos colonos que residem na região e pela própria Funai. Neste artigo pretendemos acompanhar os artifícios discursivos que permitiram negar a presença indígena na referida região. Com o presente trabalho, visamos analisar o percurso histórico de um conflito étnico e fundiário que envolveu, de um lado, pequenos e médios proprietários rurais e, de outro, um grupo de índios Mbiá guarani, nas localidades de Araçá/Araçazinho, nos municípios de Cunha Porã e Saudades, no oeste de Santa Catarina.

Uma retrospectiva permite que o conflito possa ser identificado desde 1923. Todavia, desde esta data, que marca a ocupação por frentes de colonização ítalo-germânicas, não só o conflito, mas os próprios índios, foram sistematicamente negados pelos colonizadores. Mas, em julho de 2000, cerca de 200 índios, procedentes de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, retomaram parte das terras por eles reclamadas como tradicionais dos Mbiá Guarani. Diante dessa reocupação, o conflito não pôde mais ser camuflado.

Existem situações interétnicas pouco estudadas pela historiografia que, não poucas vezes, se preocupou mais em reproduzir os conteúdos ideologicamente convenientes às elites regionais do que em analisar dados empíricos relacionados à precedência indígena. Os tão propalados memoriais aos pioneiros (que sempre homenageiam o colono branco) e os festejos municipais que geralmente enaltecem as etnias européias e obscurecem o passado indígena são exemplos do eurocentrismo que impregnou as festividades, o senso comum e a própria historiografia sul-brasileira.
A presença indígena, e especificamente Mbiá Guarani, na região oeste de SC, desde longínquas datas, é tão óbvia que sua simples comprovação não carece de novas pesquisas. Os registros históricos, os artefatos arqueológicos, os relatos e, até mesmo, fotos dos próprios colonos comprovam que a região, até há poucas décadas, era ocupada por comunidades autóctones.

Devido a um retraimento estratégico, até o ano de 1923, os contatos dos Guarani da aldeia do Araça'í com as forças expansionistas, eram esporádicos. Todavia, a partir daquele ano, os conflitos com as frentes de colonização tornaram-se inevitáveis e intensos.

No Brasil, a primazia dos povos indígenas sobre as terras que ocupavam sempre foi reconhecida legalmente. Mas no começo do século XX, a política indigenista foi redirecionada. Com a República, as terras devolutas da União foram entregues aos Estados, que ficaram com o direito de medí-las e doá-las. Além dessa providência, foi criado o SPI (Serviço de Proteção ao Índio), que passou a articular a questão indígena às necessidades de nacionalização das fronteiras. A preocupação passou a ser o abrasileiramento dos índios no intuito de incorporá-los como guardas de fronteiras. Tais diretrizes confluíram para aquilo que José Catafesto de Sousa chama de velamento dos autóctones, ou seja, o não reconhecimento da sua indianidade e, por conseguinte, dos seus direitos. A hipótese que colocamos é que nem para o SPI e muito menos para as companhias colonizadoras, ou para os próprios colonos, interessava reconhecer a existência dos Mbiá Guarani na região. Na ânsia de afirmarem sua primazia sobre as terras e de se abastecerem com mão-de-obra barata, os colonos e as companhias produziram um discurso impregnado de valores eurocêntricos que camuflava a autoctonia da população que os havia precedido.

O discurso do encobrimento da indianidade
até hoje continua sendo reproduzido
como subterfúgio ideológico que denega
os direitos conquistados pelos índios
na Constituição de 1988

O discurso do encobrimento da indianidade até hoje continua sendo reproduzido como subterfúgio ideológico que denega os direitos conquistados pelos índios na Constituição de 1988. Recentemente, Roque Jungblut publicou uma obra sobre a colonização de Itapiranga (cidade vizinha do Araça’í) em que se refere à população nativa da região da seguinte maneira: Os colonizadores encontraram habitantes de etnias diferentes. Alguns eram parecidos com índios, outros eram bastante morenos, sem aparência indígena.

Genericamente eles mesmos se denominavam de caboclos ou brasileiros. Haviam centenas de famílias dessas, que residiam nos dois lados do Rio Uruguai. Tinham consciência de que não eram donos das terras por isso não reagiram ao serem desalojados. […] eles viviam pelos matos sem moradia […] Falavam o Português, o Espanhol e alguns o Guarani.

Como podemos observar, segundo o autor, não havia índios na região, mas apenas caboclos e alguns parecidos com índios. O problema fundiário é sumariamente negado quando afirma que esses habitantes tinham consciência de que não eram donos das terras que ocupavam. Nas entrelinhas, podemos ler que antes mesmo da colonização ítalo-germânica os "caboclos e parecidos com índios" tinham consciência de que as terras, donde tiravam seu sustento, não eram suas. Se assim fosse, estaríamos diante de um fenômeno totalmente inédito na história da humanidade. Que outro exemplo o autor poderia evocar de populações que tradicionalmente ocupam determinado território e que tem consciência de que este não lhes pertence? Essas afirmações não deixam margem a dúvidas de que estamos diante de uma formulação cristalina da ideologia que encobre as alteridades nativas e justifica sua expropriação territorial em prol de uma "gente de melhor espécie".

O pano de fundo dessa ideologia é a supremacia da economia de mercado sobre a economia tradicional (cabocla ou indígena); da exploração agrícola intensiva sobre a exploração baseada na coleta extrativista, na caça e na agricultura de pequeno porte; do progresso sobre a tradição; e, finalmente, do europeu sobre o nativo.

E o SPI, porque não reconheceu a presença dos Mbiá Guarani na região? Uma hipótese é que este grupo era visto com desconfiança pelos ideólogos da nacionalização das fronteiras, pois, historicamente, os guarani, de modo geral, eram identificados como súditos da coroa espanhola.

Todavia, a principal explicação do encobrimento dos Mbiá Guarani deve ser buscada nas sinuosas estruturas da política fundiária. Os setores dominantes acabaram titulando para si enormes extensões de terras. As estruturas jurídicas e administrativas foram subordinadas aos interesses de colonos, comerciantes e industriais de ascendência européia. Esta prática arrebatou as terras tradicionalmente possuídas pelos índios, como se fossem devolutas e passaram a titular para fazendeiros interessados. 

Para os propósitos do presente artigo, importa destacar que o conflito acima referido ainda está em vigor. Em relação às teorias que previam a extinção gradativa, mas irreversível da população indígena, o caso do Araça'í é um exemplo contundente da resistência e sobrevivência indígena para a posteridade.

Os Guarani do Araça'í estão removendo o véu que os ocultava e negava como sujeitos históricos. A reterritorialização desse grupo é uma conquista histórica em se tratando de um reparo (ainda que tardio) de injustiças legalizadas pela lei dos mais fortes.

Quem são os amigos*

Certa vez um cacique da tribo Xicrin, da Amazônia, disse:

— Os civilizados são muito brabos, difíceis de ser amansados.

São os índios, com sua sabedoria, sua luta e sua valente resistência durante esses 500 longos anos, que têm precisado "amansar" os animais selvagens do capitalismo e do imperialismo, que só pensam no dinheiro, no lucro, na acumulação de riquezas e na exploração dos pobres.

A segunda frase é de Bertold Brecht, grande revolucionário, homem do Teatro e escritor. Disse ele:

— Infelizmente, nós que queremos abrir caminho à cordialidade geral, não podemos ser cordiais.

Porque há um inimigo feroz que ataca. Ele, como sabemos, é o sistema capitalista. Então, por enquanto, não se pode ser "bonzinho". Até que o inimigo seja vencido, não dá.

Os inimigos capitalistas, os povos indígenas conhecem bem. Todas as vezes que as tribos foram "boazinhas"com eles, em troca receberam ou traição ou chumbo grosso.

Fazendeiros, latifundiários, grandes empresas, bancos. E seus representantes e aliados, que são vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores, presidentes, policiais, várias ONGs, juízes, religiosos, etc.

Então os povos indígenas não possuem amigos e aliados dentro da sociedade "branca"?

Possuem, sim. Seu maior amigo e aliado é o povo pobre e explorado. Aquele que também é vítima do capitalismo e do imperialismo. E que não passou para o outro lado.

Mesmo assim, é preciso estar atento, porque infelizmente existem algumas vítimas do capitalismo que andam de braço dado com o inimigo, inclusive algumas lideranças indígenas.

Há também outros amigos, que também lutam. Pequenos comerciantes, estudantes, professores, pesquisadores bem intencionados, artistas do povo, alguns jornalistas, médicos, advogados, promotores públicos, etc. Com esses aliados verdadeiros, combativos, revolucionários, as tribos podem contar.

As minorias nacionais na China revolucionária*

Um dos países que tratou suas etnias, seus povos nativos com muito respeito e dignidade foi a China revolucionária. Não a China de hoje, que é capitalista e finge ser outra coisa.

Falo da outra China, do líder Mao Tsetung, que durou da década de 1950 à década de 1970. Naquele tempo, o governo chinês determinou que jornais, revistas, livros, cinema, teatro, música, programas de rádio, tudo fosse feito nas 55 línguas das etnias daquele país.

Além disso, o governo da China, no tempo de Mao, criou os Institutos das Minorias Nacionais, espalhados por todo o país. Os alunos eram gente de todas as etnias, que ali se matriculavam para estudar como preservar as suas culturas.

Eram como se fossem universidades dos próprios índios. Diferente do que acontece aqui, onde nas universidades são apenas os "brancos" que estudam as culturas indígenas.

Naqueles Institutos chineses funcionavam diversos departamentos. Entre eles o Departamento dos Idiomas, o Departamento de História, o Departamento de Arte das Minorias, o Departamento de Pesquisa — onde as etnias pesquisavam seus hábitos, costumes, roupas, comidas, músicas, descobertas de peças arqueológicas, etc.
Aqui no nosso caso, seriam como universidades para os índios serem cada vez mais índios. Já pensaram que interessante?


*Trechos do discurso proferido por Rosana Bond no 6º Encontro do Povo Tapeba, realizado em 2007, nos dias 11 a 13 de maio.

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