As perdas dos acionistas passam de US$ 1,5 trilhão este ano e acumulam US$ 5 trilhões desde o início da crise. Eles sofrem queda brutal em sua renda, especialmente os desavisados particulares e muitos fundos de pensão”. A informação é do Doutor em Economia, Adriano Benayon, sobre os problemas da economia dos Estados Unidos, atualmente. Leia a íntegra do artigo escrito especialmente para A Nova Democracia.
Vale a pena tentar compreender a singular situação da economia dos EUA. O primeiro distintivo, o mais conhecido, é a dimensão do PIB de US$ 10 trilhões, quase 1/3 da economia mundial. O segundo envolve a vantagem da seniorage, que, desde o final da Segunda Guerra Mundial, permite aos EUA emitir a moeda principal dos pagamentos internacionais. O terceiro reside em que a União, os estados, condados e cidades perderam poder para as oligarquias do capital privado. Em função disso, o Federal Reserve Board (FED), que faz as vezes de banco central, é governado por um sistema de bancos privados, apesar de seu titular principal ser nomeado pelo presidente da República. Este próprio, quer “democrata”, quer “republicano”, só obtém o cargo por meio de doações para campanhas das grandes empresas e entidades privadas. No Século XIX, durante o desenvolvimento econômico, elas eram menos poderosas. Foram produto do desenvolvimento. O motor deste foi o Estado, sob presidentes como Abraham Lincoln. Depois, ainda houve alguns de sua linha, todos, como ele, assassinados.
No Século XX, os governos dependeram, com poucas exceções, do grande capital privado, que já havia atingido formidável concentração, ao ponto de dois grandes grupos apenas, Rockefeller e Morgan, comandarem o essencial da economia. Foi preciso a profunda depressão econômica dos anos 30 para que surgisse novamente um presidente voltado para o bem comum, Franklin D. Roosevelt. Este foi, por isso, objeto de tentativas de assassinato e das difamações mais violentas da história americana. Os golpes praticados pelo poder econômico concentrado, em que avultavam apenas cinco grandes oligarcas, contra as políticas do presidente, levaram-no a afirmar que o governo do empresariado organizado é mais perigoso do que o do crime organizado. A concentração econômica tem sido constante e tem feito desviar, cada vez mais, recursos da economia produtiva para a financeira. Desde os anos 60, com o eurodólar, cresceu assombrosamente o volume do dinheiro expatriado. Desse modo, além de os governos não controlarem seus próprios bancos centrais, estes não controlam os ativos financeiros multiplicados nos paraísos fiscais. Não se trata somente de Grand Cayman, Bahamas, Luxemburgo, etc. Os maiores estão em Londres, Nova York e Zurique, ao lado dos sistemas financeiros nacionais. A atual depressão econômica mundial tem nos EUA um de seus epicentros. Outro é o Japão, mas, ao contrário deste, a dívida externa dos EUA assume cifra gigantesca: US$ 2 trilhões. Essa vulnerabilidade provém dos déficits na conta corrente com o exterior, da ordem de US$ 450 bilhões por ano.
Desequilíbrio
Como sucede com países latino-americanos, sugadíssimos pelas transferências de recursos praticadas pelas empresas transnacionais que dominam suas economias, o balanço de pagamentos dos EUA só se equilibra por meio de enormes fluxos de capital estrangeiro. Este se dirige à compra de títulos públicos e privados, bem como à aquisição de empresas norte-americanas. Trata-se de dependência análoga à do Brasil e à da Argentina, pois quanto mais o balanço de pagamentos se “equilibra” por meio de investimentos diretos estrangeiros, mais crescem os fatores do desequilíbrio. O ingresso desses capitais nos EUA subiu de US$ 142 bilhões em 1990 para US$ 466 bilhões em 1996. Em 2000 atingiu 1,24 trilhões. Decresceu em 2001 para US$ 895 bilhões e prossegue em queda. Declinam os maiores fluxos, da Europa e mais do Japão, com o agravamento da crise desse país, onde aumenta a resistência às pressões políticas para sustentar o precário equilíbrio nos EUA. No caso da Arábia Saudita, há mesmo declínio do estoque, de US$ 600 bilhões para US$ 450 bilhões nos últimos dois anos.
A dívida do governo federal atingiu US$ 7 trilhões em 2001, e a dívida interna total, incluindo o setor privado, passa de US$ 31 trilhões, três vezes o PIB. O lado interno dos EUA não se apresenta, pois, melhor do que a interface com o exterior. Em 2001, faliram 257 empresas, com passivos de US$ 258,6 bilhões. Nos sete primeiros meses de 2002 foram 129, com dívidas de US$ 267,6 bilhões. Portanto, US$ 526,2 bilhões em 19 meses. É muito mais que os US$ 132 bilhões expostos na Argentina, a ser escriturados pelos bancos como créditos sem desempenho, ou os US$ 230 bilhões de perdas potenciais com a carteira brasileira, adiadas pelo acordo de agosto com o FMI. Os grandes bancos norte-americanos vêm-se mantendo a tona graças a emissões do FED e a fusões, nas quais vários superbancos já desapareceram. Há indícios de fraudes contábeis e problemas de liquidez com derivativos no J.P. Morgan e no Citigroup.
Outro aspecto norte-americano da depressão mundial reside na queda do valor acionário das companhias, ironicamente o objetivo que “norteou” a política das corporations de cortar custos a qualquer preço, levando ao aumento do desemprego, e de praticar fraudes contábeis. O índice Nasdaq, representativo da “economia da informação ou tecnologia”, isto é, da “nova economia”, já caiu em mais de 75% desde abril de 2000. O próprio índice Dow Jones, das blue chips, já decresceu mais de 40%. Os mercados de ações têm nos EUA grande peso na economia, pela dimensão, pelo movimento diário e pelo fato de que cerca de 50% da população compra ações. A “prosperidade” dos anos 90 se deveu em grande parte ao elevado consumo e endividamento associados à valorização desses ativos. Ao mesmo tempo em que a produção pouco crescia, ações, títulos de renda fixa e derivativos foram inflados a inimagináveis centenas de trilhões de dólares no mundo. É essa bolha que se está esvaziando desde 2000. As perdas dos acionistas passam de US$ 1,5 trilhão este ano e acumulam US$ 5 trilhões desde o início da crise. Eles sofrem queda brutal em sua renda, especialmente os desavisados particulares e muitos fundos de pensão. Se centenas de milhares ou até milhões de americanos estão perdendo emprego, chega à centena de milhão o número dos lesados pela erosão de suas economias.
Uma das coisas para as quais serviram os ataques de 11 de setembro de 2001 foi desviar a atenção desse problema crucial, bem como obter o apoio do Congresso à política econômica da oligarquia, inclusive ao aumento das enormes despesas militares. Para isso, ela recorre ao terror com rumores sobre novos supostos atentados. Em suma, lança-se muita fumaça sobre os olhos das vítimas das políticas da oligarquia, acentuadas desde os anos 70: desregulamentação, privatizações, benesses fiscais para os ricos e para as grandes empresas, e subsídios para estas. Tudo agrava a concentração econômica e a hipertrofia da finança predadora, em detrimento da economia real. O resultado está aí: depressão econômica e crise social. A desregulamentação permitiu, por exemplo, à Enron, beneficiária de corruptas privatizações no Brasil, arrancar ganhos extorsivos na distribuição de energia em estados americanos, como a Califórnia, onde faliram as empresas produtoras. Outra ilustração do descalabro no centro do poder mundial é a estimativa, da Sociedade Americana de Engenheiros Civis, de que os EUA, precisariam despender US$ 1,3 trilhão nos próximos cinco anos em infra-estrutura, para reparar seu desgaste.
A política anglo-americana voltada para a guerra de qualquer maneira contra o Iraque e outros alvos, como o Irã, prende-se mais à preponderância das “irmãs” do petróleo, ávidas por assenhorear-se de todas as principais reservas energéticas que ainda não controlam, do que ao uso keynesiano das despesas bélicas para estimular a economia. Há, ainda, o móvel de condicionar os cidadãos a aceitar um governo que só representa a oligarquia.
Adriano Benayon, Doutor em Economia pela Universidade de Hamburgo, Alemanha, é Autor de Globalização versus Desenvolvimento. e-mail: [email protected]