Anotações feitas por um pesquisador entre nativos de Madre de Dios, uma rica região do Peru fronteiriça ao Acre, acrescentam reveladoras informações sobre a história recente da Amazônia sul-americana sob a égide do capital monopolista inglês e ianque. Cabe lembrar que, apesar das mudanças nas atividades econômicas – até mais improdutivas, predadoras e cruéis que o tradicional extrativismo –, as consequências escravocratas, semifeudais, além da administração semicolonial, impostas pelo capital financeiro, jamais foram erradicadas na região. Situação que foi e continua sendo de pleno conhecimento das autoridades peruanas, bolivianas e brasileiras, ao que não escapa o poder “civil” do piedoso clero, e que delas continua recebendo integral apoio. (Nota do editor)
Na selva amazônica do departamento de Madre de Dios, localizada no triângulo fronteiriço com o Brasil e a Bolívia, vivem grupos étnicos, cujos antepassados foram sequestrados e deportados para esta região na época do boom da borracha no início do século. Junto aos grupos de descendentes de Shipibo, Cashibo, Shetebo e Conibo (conhecidos na região como “Chama”), é de especial interesse o caso dos Santarrosinos, sobre os quais quase não existe informação na literatura.
Os dados foram recolhidos pelo autor durante a exploração de campo realizada em Madre de Dios, nos anos 1982-19841, e se baseiam principalmente em fontes orais. Lamentavelmente, por motivo de escasso financiamento, não me foi possível permanecer com os Santarrosinos o tempo necessário para fazer uma exposição mais detalhada de sua transformação cultural. Espero que isto possa ser resolvido no marco de uma futura investigação de campo.
O nome Santarrosinos deriva de Santa Rosa, região2banhada pelo rio Napo (Equador) e habitada pelos Quichua-hablante Quijo3. Considerando que entre os Santarrosinos o sobrenome Canelo se apresenta reiteradamente, deduzo que também se encontravam membros do grupo Canelo dentro do contingente indígena, trazidos do Equador para Madre de Dios. Os Canelo, cuja zona de assentamento se encontra no ocidente da Província de Pastaza, representam, segundo Oberem, o produto de uma mescla de indígenas foragidos do altiplano e os Quijos, como também os Jíbaros e Záparos, com indígenas próprios do lugar, que desenvolveram suas próprias características culturais com um denominador comum: o idioma Quíchua4.
Não é possível reconstituir em detalhes as razões que, ao final do século passado e princípio do atual, produziram a emigração do Equador das famílias Quijo e Canelo. Oberem menciona uma rebelião fracassada dos Quijo no ano de 1892 contra os padres jesuítas5. Quase todos os habitantes do povo de Santa Rosa fugiram para o norte, até o rio Putumayo, por temor a represálias. Uma parte dos fugitivos se radicou em Puerto Asís, às margens do rio Putumayo6. Outros se dirigiram ao sul e foram assentados, em 1928, por missioneiros da Ordem dos Dominicanos em Santo Domingo, na ribeira do rio Tigre7. Segundo Oberem, muitos Quijo foram sequestrados violentamente pelos caucheiros e vendidos no Peru, Brasil e Bolívia8.
Minha informante, a senhora Lucrecia Canelo M., que em 1983 tinha aproximadamente 65 anos, não pôde fornecer informação concreta sobre as condições em que chegaram à Madre de Dios seus pais Mauricio Macochoa e Dominga Machoa. Somente podia recordar que seus pais diziam: “Os caucheiros nos enganaram.”
É possível reconstruir a chegada a Madre de Dios do grupo dos Santarrosinos no período de 1905-10. Nesse tempo se levou a cabo a integração do território de Madre de Dios à nação peruana. Houve caucheiros que imigraram de Loreto sobre o istmo de Fitzcarrald9, exploraram a região e desterraram os competidores bolivianos que trabalhavam para a empresa gumífera de Nicolás Suárez.
A falta de mão-de-obra na organização da exploração do caucho foi, desde o princípio, o problema principal, uma vez que o processo de obtenção do caucho requer um trabalho intensivo. Somente com uma boa quantidade de mão-de-obra era possível abrir uma “estrada” e explorá-la regularmente. As condições de trabalho eram miseráveis sob aquele clima úmido e quente e, apesar de alguns patrões oferecerem salários altos, não era possível contratar o pessoal necessário; razão pela qual essa região, como outras do plano amazônico, os caucheiros recorreram ao sistema de “correrias”, com o fim de recrutar os peões necessários ao trabalho.
Perseguiam os povos indígenas autóctones, destruíam seus povoados levando homens e mulheres aptos para o trabalho, enquanto assassinavam crianças e anciãos. Porém, os caucheiros imigrados no norte e no oriente do departamento de Madre de Dios já não puderam, com muito pesar seu, realizar correrias rentáveis, porque nos anos 1896-1902 o comerciante boliviano de caucho, Nicolás Suárez, havia ordenado expedições de “caçadores de escravos” e dizimado quase todas as tribos indígenas, enquanto as pouco restantes haviam se retirado para regiões inóspitas10. Os caucheiros que operavam desde o Peru viram como única saída possível a “importação” de indígenas de outras regiões da Amazônia. Delboy (1912) calcula que o número de indígenas importados foi de dois mil12. Entre outros, havia Amuesha, Campa, Cocama, Lamistra, Huitoto, Shipibo, Cashibo, Conibo, Shetebo e Santarrosinos13.
Os espanhóis Máximo e Baldomero Rodríguez, dedicados ao comércio do caucho, que haviam imigrado em 1905 de Loreto a Madre de Dios, se converteram nos principais importadores de indígenas14. Eles conseguiram grandes contingentes de famílias indígenas nas barracas dos caucheiros, entre Iquitos e o alto rio Ucayali através da compra, ou os convenciam com promessas sedutoras para que fossem com eles para Madre de Dios. Em um desses tantos tráficos chegaram os Santarrosinos a Madre de Dios. Em 1910, mais tardar, finalizou essa época de “importação” de indígenas15.
Próximo ao posto de caucho Puerto Balta, na desembocadura do rio das Piedras, foram estabelecidos os Santarrosinos. A eles foi designada a obtenção do caucho no baixo rio das Piedras16. Já que o irmão de Máximo Rodríguez, Baldomero, foi morto em 1910 por indígenas insurretos, os empregados do primeiro cuidavam do processo de trabalho e recebiam as pélas de caucho. A cada um dos grupos étnicos sequestrados pelos irmãos Rodríguez foi encomendada uma zona de trabalho; os Campa receberam o posto San Lorenzo, na ribeira do rio Tahuamanu. Outro exemplo é os “Chama”, a quem lhes designaram Ibéria, base central do império de Rodríguez17.
O asturiano Máximo Rodríguez conseguiu montar uma dominação parecida com o feudalismo na região do norte da selva no departamento de Madre de Dios, devido ao isolamento em que se encontrava, em enclave feudal no Peru. Até 1942, ano em que vendeu seu fundo à Rubber Development Corporation (empresa ianque que reabilitou a extração gumífera sob pretexto de urgências durante a Segunda Guerra), foi chefe de polícia, juiz, arrecadador de tributos e o senhor de uma região de aproximadamente 4000 km2, cuja capital era Ibéria. Inclusive, de 1910 a 1912 levou a cabo uma guerra privada contra os militares bolivianos e contra o inimigo mortal que, diga-se de passagem, era o seu competidor mais poderoso: Nicolás Suárez18. Os soldados de seu exército privado eram recrutados de sua mão-de-obra indígena, especialmente dos Campa19. Um grupo de empregados espanhóis – já que, segundo sua opinião, os peruanos eram irresponsáveis – controlavam os postos de caucho com revólveres, carabinas e chicotes. Os estrangeiros estavam proibidos de entrar na sua zona de influência sem permissão, inclusive estava proibida a circulação de dinheiro.
Tanto os intentos de fuga por parte dos trabalhadores indígenas, como a produção insuficiente, segundo a opinião dos espanhóis, eram castigados publicamente para que servissem de exemplo20. Diante do olhar das pessoas eram açoitados os culpáveis, ou lhes atavam uma pedra ao colo e os atiravam no rio para que tivessem de lutar por sua vida21.
Assim, após o boom do caucho, Rodríguez seguia exportando, ainda que em menor quantidade, através do rio Acre em direção a Manaus; porém, também negociava com peles e castanhas (nozes do Brasil) e, além disso, fundou em Ibéria uma criação de gado.
Pelo ano de 1920, Máximo Rodríguez transferiu aos seus fiéis empregados espanhóis Mario e Benjamín Valdés, asturianos como ele, por meio de uma espécie de “contrato de vassalos”, o posto de caucho de Alerta às margens do rio Muymanu. Facilitou o negócio vendendo-lhes o conjunto de famílias dos Santarrosinos.
Seguindo o exemplo de Rodríguez, os irmãos Valdés fundaram em Alerta um domínio com características feudais. Também aqui, homens, mulheres e crianças tinham que colher o caucho ou castanhas durante seis dias na semana, além de cumprir com as fainas agrícolas. E aquele que, no parecer de Valdés e seus capatazes, não trabalhasse o suficiente, era chicoteado, recebendo, em geral, entre oito e dez chibatadas22. Contudo, Lucrecia Canelo não se recorda de que tenham matado os Santarrosinos com o intuito de justiçamento, como sucedia sob o domínio de Rodríguez. A sua sogra, por exemplo, pelo ano de 1915, foi morta a tiros por um empregado de Rodríguez, porque tentou escapar. Como Rodríguez, os Valdés determinavam também a vida conjugal de seus escravos indígenas. Sempre que se casassem entre eles, os espanhóis não intervinham, porém, no caso de uma jovem Santarrosina não encontrar um par conveniente, lhe acontecia o que fosse mais conveniente para os espanhóis.
Na casa comercial dos Valdés eram trocadas as pélas de caucho e as castanhas, entre outras coisas, por fósforos, álcool ou peças de roupa. Naturalmente, eram eles que determinavam as condições da troca. Da mesma forma, em Ibéria e Alerta se proibiu estritamente a circulação de dinheiro. Enquanto em Ibéria Rodríguez distribuía alimentos, como carne, entre seus escravos indígenas, os Santarrosinos tinham que buscá-los, de modo que se viam obrigados a criar galinhas perto das choças que lhes serviam de vivendas, além de que necessitavam preparar o terreno para a semeadura, trabalho que realizavam geralmente aos domingos, seu dia “livre”, porque os Valdés eram muito católicos23.
Os missionários espanhóis, da Ordem de São Domingos, em Puerto Maldonado, eram hóspedes bem recebidos, tanto por Máximo Rodríguez como pelos Valdés. Lucrecia Canelo se recorda que, vez em quando, chegava um missionário para batizar as crianças e realizar matrimônios. A família Valdés exortava aos Santarrosinos que se submetessem às instruções dos missionários. Isso não lhes era difícil, já que os Santarrosinos haviam conservado a tradição católica através dos anos no estrangeiro24. O padre missionário José Alvarez visitou duas vezes em 1936 o posto de caucho de Alerta e publicou suas experiências na revista da missão. Este relato representa, a meu juízo, a única fonte escrita sobre os Santarrosinos em Madre de Dios.
O padre José Alvarez ficou surpreso diante da devoção dos “selvagenzinhos”, nome que ele dava aos Santarrosinos, que, diferente da mão-de-obra indígena de outros postos de caucho, o receberam com amabilidade e até o convidaram a tomar parte da festa de Santa Rosa:
Diremos em geral deles que têm toda a simpatia e atração dos selvagens, por seu caráter respeitoso e obediente e sua amável doçura, cheia de sincera espontaneidade, e toda a bondade dos civilizados, por sua religiosidade e constância no trabalho26.
Em seu informe à Lima disse que pôde oficiar a comunhão de 27 “selvagens” 27, e cobriu de elogios os senhores Valdés por tratar os Santarrosinos sob os preceitos morais e sociais do Evangelho:
Os senhores Valdés se fazem credores também de um bem merecido elogio pelo grande esmero com que lhes têm sabido tratar, dentro dos preceitos morais e sociais do Evangelho. Que Deus os pague por seu fecundo trabalho tão humanitário quanto cristão28.
O sistema de trabalho e dominação com características feudais dos espanhóis patrões do caucho, Rodríguez e os Valdés, correspondia naquele tempo ao conceito dos missionários – igualmente espanhóis – do que tinha de ser uma civilização cristã, coberta de êxito.
Não obstante, além dos missionários, outros visitantes nunca foram bem vistos, caucheiros peruanos ou comerciantes. Tinham isolado os Santarrosinos do mundo exterior. Sem permissão do patrão lhes era proibido dirigir-se à gente estranha e a afastar-se do posto de trabalho nos arredores de Alerta. Esses dados de Lucrecia Canelo foram confirmados pelo senhor Tovalino29, de Puerto Maldonado. Ele trabalhou ao norte do departamento como extrator de caucho durante a segunda metade dos anos 40, quando o preço do produto no mercado mundial havia subido fortemente em curto espaço de tempo, devido aos sucessos da guerra. Nessa época lhe tocou pernoitar muitas vezes em Alerta, quando se dirigia ao seu posto de trabalho, e a família Valdés lhe havia proibido terminantemente qualquer tipo de contato com os Santarrosinos. Nem sequer podia se aproximar de suas choças. De acordo com as suas narrações, o velho Valdés (Mario) tinha pânico de que os Santarrosinos se inteirassem da economia monetária (existência de dinheiro), do preço do caucho e da castanha no mercado, assim como dos produtos industriais introduzidos ali.
O seguinte episódio provém também do senhor Tovalino: Em 1947, as autoridades escolares de Puerto Maldonado enviaram à Alerta um professor que fundara uma escola primária. Mario Valdés deu um jeito de convencer o professor a desprezar a sala de aula e que melhor faria se trabalhasse na casa comercial com a remuneração correspondente. Por dois anos foi possível retardar a fundação da escola, até que se tornou evidente a inatividade do professor e as autoridades decidiram enviar outro professor, que não se deixou seduzir pelas ofertas recebidas, criando a escola. Isso, e o crescente contato com o mundo exterior, começou a tornar cambaleante o antigo sistema.
A empresa ianque Asher & Kates fundou em Puerto Maldonado, no ano de 1952, uma agência para dirigir a compra e a exportação da castanha. Já que a região situada entre Puerto Maldonado e Alerta é, por natureza, uma das mais ricas no que se refere à produção da castanha, se iniciou no período seguinte um movimento migratório que, se no ponto de vista regional não significou muito, localmente teve grande importância. As famílias se transferiram de Puerto Maldonado e Cuzco para as antigas barracas de caucho de Mavila, Shiringayoc e Alerta. Os Santarrosinos rapidamente se deram conta de que resultava muito melhor trocar ou vender as castanhas aos forasteiros que entregá-las ao estabelecimento de Valdés. Por outro lado, a família Valdés era demasiado débil para desalojar os novos comerciantes. Quando morreu Mario Valdés, o último dos representantes da geração de patrões do caucho, começaram a emigrar os Santarrosinos. A maioria dos membros da família Caneloa, que se agregou a outras famílias no transcurso de tempo, fundou nos anos 1954-55 o povoado de Puerto Arturo, às margens do rio Madre de Dios, distante da desembocadura do rio das Piedras. A maioria dos Santarrosinos permaneceu em Alerta, uma família se transladou a Puerto Maldonado. Os Santarrosinos seguiram trabalhando em Alerta e em Puerto Arturo como camponeses independentes e, à parte do trabalho agrícola, vendiam, sobretudo, castanhas (de dezembro a abril), caucho e madeira.
Devido ao isolamento em que viveram durante alguns decênios, os Santarrosinos se casavam quase exclusivamente entre eles, de tal maneira que existe um parentesco entre todas as famílias. As únicas exceções eram os casais Shipibo ou Campa, do contingente de escravos de Máximo Rodríguez em Ibéria. Recentemente, nos últimos 10 ou 15 anos, os Santarrosinos da geração mais jovem passaram a formar casais entre a população não indígena.
As relações matrimoniais internas têm trazido como resultado o fato de que a grande maioria dos Santarrosinos, até agora, fale entre eles um dialeto Quichua das terras baixas equatorianas. Unicamente nas famílias em que um dos cônjuges não é Santarrosino se dá o caso das crianças não aprenderem o dialeto tradicional. Devido à minha curta permanência (três, quatro dias) em Puerto Arturo e Alerta não me foi possível estimar até que ponto se tem conservado elementos materiais e a idiossincrasia da cultura dos Quijos e Canelos. Em algumas casas pude observar, por exemplo, que se utilizavam os cestos de carga descritos por Oberem30.
Segundo meus cálculos, atualmente (1984), o número total dos Santarrosinos em Madre de Dios é de aproximadamente 200 pessoas. Para o censo do Ministério da Agricultura, de Puerto Maldonado, o número de habitantes de Puerto Arturo era de 95 (23 famílias), desses, 78% (correspondentes a 74 habitantes) eram Santarrosinos31. Alerta tinha, em 1983, aproximadamente 200 habitantes32, dos quais cerca de 65% (130 pessoas), no total de 46 famílias, eram Santarrosinos33.
Em 1984 foi submetida à discussão em Puerto Maldonado a idéia de reconhecer Puerto Arturo e Alerta como “Comunidades Nativas”, de acordo com a lei No. 22175 (“Lei das Comunidades Nativas”). A maior vantagem de um reconhecimento legal seria, sem dúvida, a adjudicação de um título de propriedade de terras coletivas sem a possibilidade de venda34. No caso de Puerto Arturo, sobre isso os funcionários do Ministério da Agricultura não viram nenhum inconveniente. Não obstante, se negaram a realizar o procedimento administrativo no caso de Alerta. Nessa povoação e em seus arredores alguns dos imigrantes Quíchua-hablantes, procedentes do departamento de Cuzco, se queixaram, argumentando que era inaudito outorgar aos “estrangeiros equatorianos” direitos especiais numa zona onde a produção de castanhas tinha muita importância. Além disso, a totalidade da zona, ao longo da estrada rodoviária em construção – que vai de Puerto Maldonado à Ibéria e Iñampari , em direção ao Brasil, tem sido declarada zona de colonização. Seguindo o exemplo brasileiro, milhares de habitantes da serra andina virão nos próximos anos colonizar a região para formar uma “frontera viviente”35.
A julgar pelo que diz a lei No. 22175, seria possível o reconhecimento dos Santarrosinos que vivem em Alerta como Comunidade Nativa. A maioria dos habitantes é, como já se mencionou, Santarrosino, e os demais imigrantes que falam Quíchua poderiam, segundo a lei, incorporar-se na Comunidade Nativa.
As famílias dos Santarrosinos se distanciam do resto dos imigrantes em Alerta construindo suas vivendas um pouco afastadas dos demais. Apesar disso, muitos negam, se lhes perguntam diretamente, sua procedência étnica e suas características culturais, devido ao temor que têm da discriminação como “nativos” ou “estrangeiros”. A meu modo de ver, os funcionários do Ministério da Agricultura estariam bem aconselhados se, antes de tudo, fomentassem e consolidassem os grupos de habitantes estabelecidos há muitos anos ao norte do departamento de Madre de Dios, em vez de dedicarem-se a planos complicados e pretensiosos cujas probabilidades de êxito são duvidosas. Não encontrei um só Santarrosino que pensasse em regressar à Santa Rosa, no Equador. Um ou outro gostaria de empreender uma visita, mas, também, não teria dinheiro suficiente para tanto. Eles se sentem cidadãos peruanos e os jovens prestam serviço militar em Puerto Maldonado ou Ibéria.
Na historiografia do departamento Madre de Dios e nas aulas de história nas escolas locais, não aparece o destino dos Santarrosinos e de outros grupos étnicos que têm sido sequestrados e levados à força para Madre de Dios. Em seu lugar se colocam, hoje, rodeados de uma auréola de glória, os antigos patrões do caucho, como por exemplo Fitzcarrald, Rodríguez, os Valdés, para citar alguns. Seria necessário, por fim, realizar um quadro mais diferenciado da história da região.
Notas da redação:
Caucheiro: Cucho, Castilloa ulei, árvore que produz borracha inferior à seringueira ( Hevea brasiliensis). Nos domínios de Máximo Rodríguez havia uma grande quantidade de jebe fino , esse látex extraído das seringueiras. Gomais são áreas, no Peru, em que se concentram principalmente cauchos, mas serve para designar chauchais e seringais. Caucheiro tem a função do patrão seringalista.
Máximo Rodríguez (1873 – 1943) era natural de Astúrias, Espanha. Em 1905 criou o Fundo Ibéria, imensa faixa de terra no Departamento de Madre de Dios, que o Estado peruano lhe concedeu,a fim de peruanizar aquela parte da Amazônia.
Don Máximo abriu uma trilha para cargas (68 km na selva), de Ibéria à localidade de Iñapari (Peru), separada da atual Assis Brasil pelo rio Acre, na margem direita. As mercadorias eram transportadas até à Quebrada de Yaverija. Dali, baixadas em balsas, seguiam em direção ao Rio Acre que separa, mais à frente as cidades de Cobija (Bolívia) e Brasiléia (Brasil), ambas portos finais das lanchas de Manaus.
A economia da Amazônia era dominada pelo sistema de aviamento. As grandes casas aviadoras se localizavam em Manaus e Belém, e operavam através de complicadas manobras financeiras que faziam abarrotar principalmente os cofres ingleses e ianques, com predominância de lucros para o último ao ser deflagrada a Segunda Guerra.
Na disciplina imposta por Don Máximo, um dos elementos funcionais do regime feudal por ele instaurado, cabia as penas de: calabouço, chibatadas, picota e morte. Picota é um instrumento medieval de afronta pública, utilizado para prender pés, mãos e, às vezes, a cabeça da vítima, cujas posições incômodas provocam terríveis dores.
Os Estados peruano, boliviano e brasileiro tinham pleno conhecimento do regime instaurado por esses poderosos e sanguinários seringalistas, mas nunca moveram uma palha (inclusive a bondosa Igreja) para pôr fim ao seu regime. Pouco antes de morrer, Máximo criou a Fundação que levou seu nome, em Madre de Dios, destinada a obras de beneficência social, com que financiava a nova Missão dos Dominicanos, em El Pilar, também propriedade de Rodríguez.
* Klaus Rummenhöller, de nacionalidade alemã, é doutor em antropologia. De suas pesquisas no departamento peruano de Madre de Dios, fronteiriço ao estado do Acre, resultaram artigos brilhantes que muito contribuem para a elucidação de inúmeros aspectos da formação histórica da Amazônia no processo do “desenvolvimento” imperialista . (N.E.) 1 As estadias de 1982-83 se realizaram no marco de um projeto de investigação do Instituto Latino-americano da Universidade Livre de Berlim, financiado pela “Sociedade Alemã para Investigação de Conflitos e Paz”.
2 Oberem delimita a região dos Quijos da seguinte forma: “A região dos Quijos está situada na parte ocidental da província de Napo, aproximadamente entre os 77 o . e 78 o . de longitude ocidental e entre a linha equinocial e 102 o de latitude sul (Oberem, Udo – Los Quijos. Historia de la transculturación de un grupo indígena en el Oriente Euatoriano, 1980, p. 25)
3 Oberem dá uma exposição extensa da história e cultura dos Quijos (Los Quijos).
4 Oberem, Udo – Einige ethnographische notizen über die Canelo Ost Ecuadors. Em: Ethnologische Zeitschift, 1974, p. 319.
5 Oberem – Los Quijos, p.115.
6 Oberem – Los Quijos, p.116.
7 Oberem – Los Quijos, p.116.
8 Oberem – Los Quijos, p.117.
9 O comerciante de caucho Carlos F. Fitizcarrald, do Peru, abriu em 1883 uma passagem entre as duas grandes redes fluviais Ucayali e Madre de Dios (mais exatamente, entre os afluentes Capajali e Serjali). Essa nova passagem é chamada, desde então, “Istmo de Fitzcarrald”.
10 Tratava-se das tribos que falam Tacana, no baixo Madre de Dios e seus afluentes Manuripe, Tahuamanu/Orton, Heath e Tambopata; los Arazairi (alto rio Inambari) e Toyoeri (rio Madre de Dios entre o Inambari e Colorado) que pertencem à família linguística Harákmbut; ademais os Iñapari, que viviam na região do rio das Piedras e afluentes.
11 Segundo Portillo ( Portillo, Pedro – Departamento de Madre de Dios. Em Boletin de la Sociedade Geográfica de Lima, 1914, pp. 180, 186) , era muito provável que se tratasse das famílias indígenas Iñapari, Cordiños e Guarayos (também conhecidos por Hjarayos, sinônimo das tribos de fala Tacana, no Peru).
12 Delboy, Emilio – Conferencia dada pelo Sr. E. Delboy D. Na noite de 21 de novembro de 1912, sobre as regiões de “Madre de Dios” e “Acre”. Em Boletín de la Sociedad Geográfica de Lima, p. 309.
13 Ver Ballón Landa, Alberto, Los hombres de la selva, 1917, p. 290; e Portillo em boletín de la Sociedad Geográfica de Lima, p. 184.
14 Máximo Rodríguez (1873-1943) chegou pelo ano de 1888 a Iquitos e trabalhou até 1905 como empregado em diversas casas comerciais de caucho nos rios Ucayalki e Sapaha.
15 Declaração oral do senhor Castillo, de Puerto Maldonado. Ele tinha 97 anos na data de nossa conversação, em 11 de outubro de 1983. Em 1908 chegou como soldado a Puerto Maldonado e combateu de 1910-12 com Máximo Rodríguez contra os bolivianos. Disse que, ao chegar, já se encontravam ali os Santarrosinos.
20 Esses dados foram proporcionados pelo senhor Leonicio Shitahari, de Puerto Maldonado. Ele é Shipibo e foi levado quando tinha aproximadamente seis anos, junto com seus pais, por M. Rodríguez à Madre de Dios. Na data de nossa conversação, em dezembro de 1983, tinha aproximadamente 85 anos.
21 De uma entrevista com o senhor Emilio Hayabán, de Puerto Maldonado. Na data da entrevista, em 12 de agosto de 1982, tinha 69 anos e havia trabalhado como caucheiro nos anos 20 e 30, em diversas barracas de caucho.
22 Declaração oral da senhora Canelo.
23 Idem.
24 Sobre a história da cristianização dos Quijos pelos Jesuítas, ver Oberem 1980:100-110; 114-118.
25 Anônimo – Información misional: De la Misión de Lago Valencia. Em Misiones Dominicanas del Peru, 1936 – p. 239.
26 Alvarez, José – Uma oración por los que sufren. Notas de un viaje al Tahumanu. Em Misiones Dominicanas del Peru, 1936 – p. 211.
27 Anônimo – Em Misiones … p. 239
28 Idem 29 O senhor Tovalino tinha 76 anos na data e vive na condição de pequeno criador de gado próximo a Puerto Maldonado. 30 Ver Oberem, Los Quijos, p. 170. 31 Comunicação pessoal da senhora Lazarte, do Ministério da Agricultura de Puerto Maldonado. 32 Apreciações inéditas do Ministério da Agricultura, de Puerto Maldonado. 33 Esta cifra se baseia em investigações pessoais em Alerta. 34 A lei No. 22175 contém, entre outras determinações, o título de propriedade coletiva inalienável e o reconhecimento como pessoa jurídica. 35 Os planos de colonização se expõem em um estudo compilado do Projeto Especial em Puerto Maldonado, realizado em 1983. O estudo leva o título Estratégia de desenvolvimento: área de ações concentradas Ibéria-Iñapari, Madre de Dios.