Outra maneira de ver os povos

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Outra maneira de ver os povos

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Os irmãos Cláudio (E) e Orlando Villas-Bôas com seus filhos: exemplos de simplicidade

À medida em que eu ia lendo detidamente essa atraente coleção de flashes que Wany Sampaio e Vera da Silva, em seu livro Os povos indígenas de Rondônia, reeditado pela Universidade Federal de Rondônia, apresentam sobre várias culturas indígenas da Amazônia rondoniense, crescia-me a suposição de que os indigenistas não são de fato imunes a um processo de assimilação de alguns valores do seu objeto de trabalho, entre eles a simplicidade.

Isso leva à conclusão de que se trata de gente simples porque trabalha com gentes simples. Eis aí a assimilação da simplicidade do objeto de trabalho.

Nada tem que ver com a acculturation que Donald Eerett Webster define como acomodação por parte de um membro de um grupo alheio ao grupo que o recebe, imitando suas pautas.

Esta minha suposição vem de longe. Recordo-me de quando, em 1960, em um dos costumeiros serões culturais na casa de Osny Duarte Pereira, destacado jurista e escritor brasileiro, conheci pessoalmente Noel Nutels e um dos famosos irmãos Villas Bôas, que se celebrizaram na defesa e desenvolvimento dos indígenas brasileiros e de suas culturas.

Eles eram gente muito simples, de explicação simples, objetivas quando enfocavam nossos índios. E o faziam sem complicadas formulações científicas. Dir-se-ia que buscavam formular os enfoques indigenistas a partir de elementos fáticos, a partir de dados empíricos. Diferenciavam-se de alguns etnólogos que, apesar de não poderem prescindir deste patamar da pesquisa para se elevar às interpretações científicas, complicam o conhecimento, tornando-o inacessível às gentes simples, como os adolescentes aos quais se destina esta obra de Wany e Vera.

Outra simplicidade em pessoa que conheci foi o indigenista Eduardo Galvão, do Museu Emílio Goeldi, em Belém do Pará, quando coincidimos estar a serviço das Nações Unidas em El Salvador, lá por volta de 1968. De maneira extraordinariamente inteligível, falava-me de um encontro de sociedades tribal e nacional na região do Rio Negro na bacia amazônica, sem maiores percalços da linguagem profissional. Era agradabilíssimo ouvi-lo discorrendo sobre “O cavalo na Amazônia indígena”, tema de seu artigo publicado, em lustro antes, na Revista do Museu Paulista.

Como Wany e Vera hoje, Eduardo Galvão, na década de 60, no Simpósio sobre a Biota Amazônica, mostrou claramente que o impacto da catequese religiosa e o da “domesticação” pelo colono provocando a mudança na economia local, abalaram profundamente a estrutura social aborígene. Era de esperá-lo evidentemente para os que leram Lênin no seu Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, escrito no final do século XIX, no qual analisa as populações isoladas, alcançadas pela circulação mercantil, que sofrem mudanças estruturais pelo fato de incorporar-se à economia mercantil.

É bem verdade que essas mudanças não se processam com rapidez e sim a ritmo quase molecular no âmbito da cultura autóctone, principalmente se os núcleos indígenas dispõem de refúgio cultural, a comunidade originária e de todas as suas formas de produção e de sobrevivência de sua economia autêntica.

Basta conhecer as constatações de Sol Tax, etnólogo norte-americano, que na década de 30 escreveu O capitalismo do centavo, resultado de uma exaustiva pesquisa que fez junto a um grupo indígena nas ribeiras do Lago Atitlan, na Guatemala.

Essas constatações, 40 anos depois, mostraram em linguagem simples que quase não houve derruimento, erosão, desgaste dos padrões culturais indígenas estudados.

Com efeito, pese a que muitos daqueles indígenas de idioma “cachikel” anualmente baixam três meses à “Boca Costa” como assalariados da colheita do café e à costa do Pacífico para o corte da cana, o refúgio da comunidade originária permitiu que a sua cultura atravessasse, como que incólume, quase meio século as inserções sazonais na economia da grande empresa capitalista. Porém aquele cientista não teorizou sobre essa incolumidade. Ficou somente na simplicidade do relato. Alejandro Dagoberto Marroquin, salvadorenho e antigo presidente do Instituto Interamericano indigenista, da Organização dos Estados da América (OEA), e grande amigo de Sol Tax, um dia me segredou as razões da extrema simplicidade de Sol Tax: “Ele, Sol Tax, como todo cientista norte-americano — já o dizia Karl Mannheim — sofre de um medo excessivo às teorias; adoece de um ascetismo metodológico que ora impede de formulação de teorias gerais, ora mantém as teorias existentes isoladas de pesquisa prática.”

Mas permitam-me regressar ao tema da acculturation que eu pessoalmente pude testemunhar na Selva Lacandona, Estado de Chiapas, México, quando ali trabalhei com os indígenas descendentes dos maias.

Um exemplo desse processo de aculturação é a socióloga Aracely Burghete y Cal, candidata ao título de mestre em Antropologia Cultural, funcionária do Instituto Nacional Indigenista (INI) e partidária do que se denominava pesquisa participante.

Com traços fisionômicos da estética maia, foi fácil ser aceita para viver na casa de uma família indígena e adotar o visual das mulheres, com coloridas indumentárias indígenas, que andam descalças e que fazem todos os trabalhos domésticos: a alimentação, lavar roupas, lavar crianças etc. Era difícil distingui-la entre as mulheres do povoado indígena de Velasco Suarez. Creio que chegou a fazer-se entender bem em tzotzil, que era o idioma do grupo étnico a que ingressou, e pelo menos balbuciava o tzeltal e o chole. A licenciada Aracely de Burghete y Cal só não chegou a casar-se com algum indígena porque era noiva de um dos diretores do INI. Pois bem, a acculturation de Aracely Burghete y Cal foi de tal intensidade que, logo depois de defender sua tese de Mestrado, regressou para as selvas a fim de tomar parte nas lutas de defesa dos indígenas até que, lamentavelmente, foi atingida por uma bala no pescoço, que a pôs temporariamente fora do combate.

Uma outra indigenista que tentou sua acculturation foi a famosa suíça Gertrudes Blom, cujo sobrenome, o do marido, mostra que se casou com um indígena da Selva Lacando-na, onde ela, em 1972, com quase 80 anos de idade, era ainda considerada a “Princesa da Selva”. Loira de olhos azuis, Gertrudes, no entanto, viu muito cedo o epílogo de seu processo de acculturation, logo após o falecimento de seu esposo.

Os seus últimos anos, a suíça Princesa da Selva passou como dona de uma luxuosa casa de repouso na cidade chiapaneca de São Cristóvão de las Casas, de clima adorável e que atraía muitos europeus gringos e canadenses interessados em descansar, em ecoturismo e em roubar peças arqueológicas da mesoamérica. Por conta disso não faltaram infundadas suspeitas de que Gertrudes era cúmplice desse tipo de delito.

Ao contrário de Gertrudes Blom, Aracely Gurghete conserva até hoje uma acentuada simplicidade no trato das coisas e culturas indígenas. É o reflexo da simplicidade do objeto de produção científica que ela buscou transformar.

Os relatos que Wany e Vera destemidamente escrevem de maneira simples, ou seja, sem a menor complicação dos antropólogos culturais, demonstra que o que tem existido na Amazônia é um longo e trágico conflito étnico expresso em um surdo e generalizado racismo anti-indígena. A discriminação racista é tratada como crime inafiançável: vão para a cadeia os que discriminam cidadãos negros. No entanto não são punidos os que discriminam os indígenas, porque essa discriminação, que se pode extrair dos relatos de Wany e Vera, é de caráter oficial, assumida pelo Estado na forma de uma legislação arcaica e de uma justiça lenta para as causas indígenas e por pessoas ditas bem intencionadas, a exemplo dos religiosos que os tratam como cidadãos inferiores, dignos de compaixão. E haja genocídio que, aos poucos, ou de uma só vez, elimina a maioria, e, com ela vão eliminados os que falam o idioma de seu grupo étnico, de sua nação. Na maioria dos casos sobram uns poucos para contar a história e converter-se em fóssil de seu idioma, como deleite e meio de vida de alguns paleolinguistas que vêm de fora gravar o seu linguajar, copiar as primeiras interpretações feitas pelos cientistas locais e usá-los, apropriando-se delas em descarada pirataria.

São, dir-se-ia, “etnólogos de motel”, que chegam pela tarde, dormem uma noite e, no dia seguinte, vão-se embora com os alforjes cheios de gravações de indígenas e de rascunhos de outrem, de terceiros. E que os índios continuem lascados sem mudar seu status quo porque a mudança significa desemprego para muitos cientistas do indigenismo.

A defesa da existência física e da existência cultural dos índios fica a cargo, pois, dos cientistas locais, como Wany e Vera, e outros abnegados e dedicados a salvar aqueles que escaparam de serem vítimas dos crimes de lesa-humanidade, dos genocídios de milhares de índios brasileiros hoje reduzidos na Amazônia a um quarto de milhão de indivíduos.

É bom aqui se deixar claro que existe uma enorme diferença entre a consciência dos brasileiros e a de alguns povos latinos, como por exemplo os mexicanos, no que diz respeito aos indígenas. A maioria dos brasileiros está ainda muito longe de reconhecer no índio qualquer cidadania, se bem que seja conhecido que grande parte deles se orgulha de possuir sangue indígena nas veias. Aqui e acolá não falta alguém que com orgulho afirma que sua tataravó foi capturada a dente de cachorro na mata. É o subjetivista e romântico enaltecimento do indígena. Porém, os fatores objetivos da luta de classe fazem com que os indígenas sejam considerados, pela maioria dos brasileiros, uma sub-classe, um estrato ou o estamento mais inferior da sociedade e jamais como cidadão.

Os mexicanos, ao contrário, reconhecem com orgulho ser um povo mestiço. E esse reconhecimento eles expressam em lápide monumental na Praça das Três Culturas (indígena, espanhola e mestiça) do bairro do Tlaltelolco, no centro da capital e, mais ainda, o expressam em homenagens presentes por toda parte aos heróis indígenas que lutaram inclusive contra os espanhóis e que, hoje, dão nome a ruas, escolas, avenidas, e estão representados em estátuas monumentais por todo o país.

Se o Padre Hidalgo, prócer da independência, resultou dessa miscigenação, Benito Juarez (líder da revolução liberal e exterminador do fantoche imperador francês, o rei Maximiliano), no entanto, era um autêntico indígena de Oaxaca. De forma que, depois de Montezuma e de Cuautemoc é o prócer mais cultuado pelos mexicanos.

Porém eles não se limitam apenas ao culto desses indígenas, figuras nacionais. Nos parlamentos estaduais e no nacional, os indígenas ocupam muitas cadeiras de legisladores, para não falar do enorme número de indígenas integrantes do Poder Judiciário e dos Legislativos e Executivos Municipais.

Para mim, foi uma surpresa assaz agradável conhecer seis deputados indígenas envergando seus trajes de gala, típicos de suas respectivas culturas, em uma das seções diárias da Assembléia Legislativa do estado de Chiapas, na sua linda capital, Tuxtla Gutiérrez, situada no istmo de Tehuantepec.

Às 14 horas em ponto, o presidente da Assembléia anunciou o início da secção, ao mesmo tempo em que os deputados levaram os audífonos aos ouvidos. É que ali, cada deputado se expressa no idioma de sua cultura, contando assim com traduções simultâneas para o “tzotzil”, o “zeltal” e “chole” e um idioma (latino) não indígena, que é o castelhano. Foi muito emocionante escutar os debates mutuamente respeitosos naquele parlamento estadual, no qual os deputados indígenas que se consideravam “mexicas” (mexicanos) dirigiam-se aos colegas do mesmo partido, o PRI (Partido Revolucionário Institucional), tratando-os de “vocês, os de Castela”.

Quando eu narrava esse episódio para alguns amigos brasileiros eles diziam: “Você está brincando! Isso não é verdade!”.

Era compreensível essa reação, já que no Brasil o único deputado indígena que tínhamos, na época, era o Juruna, alvo constante de chacotas (de franca discriminação), tanto de jornais e indivíduos da direita quanto da “esquerda”.

Pelo visto, lamentavelmente, vai tardar ainda muitos anos para que os brasileiros adquiram outra consciência, uma consciência de respeito aos índios. Livros como este de Wany e de Vera, destinados principalmente a jovens escolares, ajudarão de alguma forma na criação dessa nova consciência, sem a qual continuaremos sendo vistos como insensíveis e desumanos pelos povos mais civilizados, os quais insistem em acusar-nos de genocidas das populações indígenas. Eis aqui, pois, o grande mérito deste livro.

 


*Clodomir Morais é Doutor em Sociologia pela Universidade de Rostock (Alemanha). Nos anos 60, pertenceu à Direção Nacional das Ligas Camponesas. Hoje, aos 75 anos, é professor colaborador da Universidade Federal de Rondônia.
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