Em setembro de 1955 foi realizado no Recife o I Congresso Camponês do Nordeste. Ele marcou a reorganização das Ligas Camponesas e a eleição da sua primeira diretoria. A convite dos representantes da classe, presidiu aquele evento histórico o médico Josué Apolônio de Castro. A reunião de três mil delegados culminou com grande e ruidosa passeata pelas ruas da cidade e motivou a expansão das Ligas Camponesas, que passou a mobilizar, além dos pequenos posseiros, também os assalariados agrícolas.
A colaboração do intelectual Josué de Castro para o sucesso daquele Congresso, foi um exemplo prático daquilo que ele sempre defendeu nas suas principais obras, ao abordar a necessidade de eliminar o latifúndio de nosso país, “um tabu que precisa ser enfrentado com a mesma tenacidade com que se deve enfrentar a fome”.
Ao estabelecer o seu Programa de 10 Pontos de Combate à Fome (ver quadro), Josué de Castro é implacável ao proclamar a necessidade de combater o latifúndio; “a monocultura em largas extensões” e, o “aproveitamento racional de todas as terras cultiváveis circunvizinhas dos grandes centros urbanos”.
Neto de retirantes da seca e criado à beira dos mangues recifenses, Josué de Castro (cujas obras foram editadas em 25 idiomas) foi o responsável pela primeira pesquisa científica sobre as condições de vida e hábitos alimentares entre os operários brasileiros. Sua obra As condições de vida das classes operárias no Nordeste baseou-se em entrevistas com 500 famílias de bairros do Recife, ainda no ano de 1932.
O estudo teve repercusão nacional e levou à realização de pesquisas semelhantes em outros estados, influindo decisivamente no processo de criação do salário mínimo. Nessa pesquisa, Josué analisou o poder de compra dos salários, relacionou-os com a quantidade e qualidade da alimentação dos operários recifenses, para concluir que só havia uma maneira de alimentar-se pior do que aquela: era a de não comer nada.
— É por isto que esta gente não fala em alimentar-se, mas em enganar a fome, dizia Josué. Josué alertava para o fato de que “os caracteres de deficiência e de inferioridade de alguns povos, atribuídos outrora a fatores étnicos e à fatalidade racial, são apenas conseqüências diretas de más condições higiênicas e principalmente de uma alimentação má”.
Nesse estudo minucioso, o cientista chegou à conclusão que as classes dominantes faziam o proletariado morrer “legalmente” de fome. Analisando aspectos do modus vivendi da classe operária, estabelecendo os valores médios dos salários e os custos de sua subsistência, Josué pesquisou em três bairros proletários do Recife: Torre, Encruzilhada e Santo Amaro — para concluir que o trabalhador manual da cidade do Recife tinha um salário médio de 3$700 (três mil e setecentos réis), com o qual ele precisava pagar as despesas de sua família composta em média de 5,17 pessoas. Na época, para sua manutenção, a família operária despendia em média 3$866, isto é, um pouco mais do que ganhava, donde o seu balanço deficitário e a sua impossibilidade de economizar e melhorar sua condição social. Este déficit permanente obrigava o operário a viver sempre devendo, sem saldar jamais os seus modestos compromissos, contraídos à força da necessidade de viver. As suas rendas não dando, assim, margem a nenhum luxo, eram estritamente empregadas em satisfazer as suas necessidades básicas de vida: alimentação, abrigo e vestuário.
Penúria e opulência
Josué verificou, também, que a quota alimentar abrangia 71,6% das despesas totais, com variações de 69 a 74%, de acordo com o tipo de salários, sendo proporcionalmente tanto mais alta esta porcentagem quanto mais ínfimo o salário. Comparativamente, os estudos oficiais desse mesmo período, procedidos no USA, estabeleceram que o operário de salário mínimo despendia 55% em sua alimentação.
Estatísticas argentinas, publicadas pelo Departamento Nacional do Trabalho, indicavam para o operário de Buenos Aires uma quota alimentar de 52,7%. Donde se deduzia que, à época, esta porcentagem de 71,6% já era excessivamente elevada, demonstrando que o salário do operário recifense se encontrava abaixo do salário mínimo de outros países.
Ele analisou os hábitos alimentares das 500 famílias e concluiu que todas elas consumiam feijão, farinha, charque, café e açúcar, e a maior parte delas (81%) também consumia pão. Os demais alimentos eram consumidos por um pequeno número de famílias, sendo que o consumo de certos deles, dado o seu destacado valor alimentar, mereceu uma atenção especial: o leite entrava no regime alimentar apenas em 19% das famílias operárias e em quantidade mínima.
De 500 famílias recenseadas, só 97 compravam leite, num total de 26 litros, e, no entanto, estas 500 famílias possuíam 976 filhos menores, cabendo-lhes assim em média teórica, para alimentação de cada um, 26 gramas de leite por dia. O uso de frutas e legumes era ainda mais raro (15 a 18%), donde se chega à evidência de que 80% da população operária não consumia nem leite nem frutas, nem verduras e os 20% restantes consumiam estas substâncias em quantidades irrisórias. A alimentação habitual das massas trabalhadoras reduzia-se a feijão, farinha, charque, pão, café e açúcar.
Cruzando dados entre o tipo e a quantidade de alimento consumido com o número de pessoas de cada uma das 500 famílias, o pesquisador chegou ao regime habitual da família operária recifense, deduzindo, daí, o regime alimentar individual: cada indivíduo se alimentava de 62 gramas de albumina, 310 gramas de hidrato de carbono e 13 gramas de gordura, num total energético de 1.646 calorias.
“Qualquer pessoa que possua noções gerais de dietética e diante de um regime desta ordem, só tem uma pergunta a formular: “Como se pode comer assim e não morrer de fome?” E só há uma resposta a dar, se bem que um tanto desconcertante: realmente é esta alimentação insuficiente, carencial e desarmônica, usada pelas classes operárias, na área urbana, a causa principal do seu elevado índice de mortalidade.
Josué de Castro foi mais além no seu estudo e verificou que uma alimentação para ser racional necessita ser suficiente, completa e harmônica: fornecer toda a energia necessária aos gastos fisiológicos do indivíduo; deve conter em determinadas quantidades — albuminas, hidratos de carbono, gorduras, sais e vitaminas, indispensáveis ao metabolismo orgânico; e o regime deve manter um certo “equilíbrio alimentar”. Assim, desvendou e denunciou a fome por inteiro: o tabu, a fome oculta, o fabrico da fome, os especialistas em contaminação que ocultam a fome, o fracasso dos programas imperiais contra a fome etc.
Um trabalhador, disse ele, necessita em média de 3.000 a 4.000 calorias diárias para suas despesas fundamentais e de trabalho. O regime analisado em Recife, possuia apenas 1.645 calorias, que dava apenas para cobrir os gastos do metabolismo mínimo individual no nosso clima sem margem para o gasto do trabalho. Tratava-se, sob o ponto de vista qualitativo, de um regime incompleto em albuminas, vitaminas e sais minerais, e impróprio sob todos os aspectos.
O cientista não esqueceu, também, de citar o Recife, como a então “melhor cidade do Nordeste, o maior núcleo de população, que desfruta, naturalmente, sob vários aspectos, duma certa supremacia econômico-social”. Deduzia, daí, que aqueles dados estatísticos seriam ainda mais graves em outras cidades nordestinas de população operária.
Pensamento brasileiro
Outro combate implacável do cientista Josué de Castro foi travado contra aqueles que tentavam justificar a calamidade da fome como efeito do crescimento demográfico, como certos seguidores da metodologia do economista inglês Thomas Robert Malthus (1766 -1834). O “espantalho malthusiano” formula a hipótese de que enquanto as populações crescem em progressão geométrica, a produção de alimentos cresce em progressão aritmética, o que justificaria a necessidade de limitar o crescimento demográfico.
Josué foi decisivo no desmonte dessa teoria. Ele dizia que enquanto os neomalthusianos afirmavam que o mundo vive faminto e condenado a perecer numa epidemia total de fome, invocando uma superpopulação, “não fazem mais do que atribuir a culpa da fome aos próprios famintos”. Josué constatou, nessa época, que a explosão demográfica é um efeito da fome, e, por este motivo, uma característica de países colonizados e semicolonizados (neocolonizados), onde há uma correlação entre uma alimentação pobre em proteínas e o aumento da taxa de natalidade. “Trata-se de uma expressão biológica de uma calamidade social”, resumia afirmando também que “o problema não é de gente, mas de produção”.
E hoje, 72 anos depois, é cada vez mais comum assistir nas ruas das cidades brasileiras, e não apenas no Nordeste, ao triste espetáculo da fome. Homens, mulheres e crianças subjugados às necessidades da miséria, envergados sobre latões de lixo, catando restos para sobreviver; há mais de 50 anos o geógrafo e médico denunciava esse flagelo ao mundo em seu Geografia da Fome. Josué de Castro dizia, então, que todas as regiões que passaram pelo processo de colonização sofreram e ainda sofrem a tragédia da fome.
Crítico e analista das causas que levam à atrofia de nações inteiras em benefícios do império, Josué escreveu, no seu entender que, onde muitos pensam haver ausência de desenvolvimento, ocorre o “produto ou o subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta (…) É a concentração abusiva de riqueza — sobretudo neste período histórico dominado pelo neocolonialismo capitalista (…) as regiões dominadas sob a forma de colônias políticas diretas ou de colônias econômicas” (…), “produto da má utilização dos recursos naturais e humanos realizada de forma a não conduzir à expansão econômica e a impedir as mudanças sociais indispensáveis ao processo da integração dos grupos humanos” (…)
A causa primeira da fome e da miséria: a dominação de povos inteiros sob o tacão dos governos imperiais — e a colônia sob o domínio do império — concluia o médico, o geógrafo, o embaixador que, presume-se, nasceu em 1908 e veio a morrer em Paris, em 24 de setembro de 1973 — na condição de exilado.
E hoje, quando 36 milhões de seres humanos morrem de fome ou de suas seqüelas mais comuns — principalmente desnutrição infantil e avitaminose, o planeta reúne as condições objetivas de alimentar até doze bilhões de pessoas, o dobro do contingente mundial. Portanto, as denúncias de Josué de Castro continuam atuais e cientificamente provadas: a fome é fruto da concentração de riqueza e da espoliação do império através do processo moderno de colonização.
A produção, a distribuição e o transporte dos alimentos no mundo dependem quase que exclusivamente dos grandes monopólios que estabelecem o seu mercado — onde o alimento é considerado uma mercadoria como qualquer outra — sem falar que é a bolsa de cereais de Chicago (Chicago Commodity Stock Exchange) que, nos dias úteis, fixa o preço dos principais alimentos, através de seis empresas transcontinentais da indústria agro-alimentar e das finanças, que dominam essa bolsa. A tragédia da fome não deriva, portanto, de uma fatalidade qualquer, mas de um verdadeiro genocídio, exatamente com há meio século denunciava o Dr. Josué de Castro.
— Para cada vítima da fome, há um assassino — assim dizia um homem que, entre outros, forneceu imensa contribuição para o Pensamento Brasileiro. De forma notável, concluiu que as duas guerra e as revoluções soviética e chinesa “foram apenas manifestações aparentes ou sintomas da revolução mundial em marcha”, aquela que revela um processo de “transformação integral, de transmutação histórica, de substiuição de um mundo de convicções sociais por outro diferente, no qual os valores sociais anteriores já não tem significação”.
Programa de 10 pontos de combate à fome
(por Josué de Castro)
1 Combate ao latifúndio.
2 Combate à monocultura em largas extensões sem as correspondentes zonas de abastecimento dos grupos humanos nela empregados.
3 Aproveitamento racional de todas as terras cultiváveis circunvizinhas dos grandes centros urbanos para agricultura de sustentação, principalmente de substâncias perecíveis como frutas, legumes e verduras que não resistem a longos transportes, sem os recursos técnicos da refrigeração.
4 Intensificação do cultivo de alimentos sob forma de policultura nas pequenas propriedades.
5 Mecanização intensiva da lavoura, da qual dependem os destinos produtivos de toda nossa economia agrícola.
6 Financiamento bancário adequado e suficiente da agricultura assim como garantia da produção pela fixação de bom preço mínimo.
7 Progressiva diminuição, até a absoluta isenção, de impostos da terra destinada inteiramente ao cultivo de produtos de sustentação.
8 Amparo e fomento ao cooperativismo, que poderá servir de alavanca impulsionadora à nossa incipiente agricultura de produtos alimentares.
9 Intensificação dos estudos técnicos de Bromatologia e Nutrologia no sentido de que se obtenha um conhecimento mais amplo do valor real dos recursos alimentares.
10 Planejamento de uma campanha de âmbito nacional para a formação de bons hábitos alimentares, o qual envolva não só o conhecimento dos princípios históricos de higiene como o amor à terra, os rudimentos de economia agrícola e doméstica, os fundamentos da luta técnica contra a erosão.