Personagens do cotidiano popular na exposição itinerante
Pelas ruas e calçadas – comércio informal e ambulante ontem e hoje, do Museu Histórico Nacional
No Museu Histórico Nacional convivem duas correntes de história: uma, nitidamente político-militar, que teve seu auge durante o século XIX e inícios do XX, a segunda, situa os movimentos de massa com a particularidade da vida cotidiana – duas correntes que, todavia, não significam duas concepções do mundo diametralmente opostas.
Um exemplo de história ufanista e burguesa, preocupada em glorificar os feitos do Estado, pode ainda ser vista numa exposição de canhões, num pátio interno do museu. Montada na década de 20, a mostra evidencia a exaltação ao militarismo, reunindo exemplares de canhões portugueses, ingleses, franceses, holandeses e brasileiros, representando os diversos períodos da nossa história. A leitura de quem vê a exposição hoje (considerando o espectador como uma pessoa de idéias não reacionárias) é diferente, por exemplo, daquela de um visitante da década de 30 ou 40. Talvez um espectador do passado se enchesse de júbilo e orgulho nacionais ao se deparar com a exaltação da evolução militar ao longo da história.
“Antigamente os museus se preocupavam com peças que simbolizassem a elite, apenas. Como um museu de história acompanha, mais ou menos, a historiografia, esse movimento de renovação ideológica acaba nos atingindo”, conta Jorge Cordeiro, museólogo responsável pela reserva técnica do Museu Histórico. “Quando a história muda e dá luz a uma fatia da sociedade que não é elite, o museu tende a acompanhar isso.”
“Conheço apenas alguns museus históricos do Brasil, mas acho que a tendência é mais ou menos geral. No entanto, é bom lembrar que há museus temáticos, como o Imperial de Petrópolis. Nele, por exemplo, fatalmente teremos a noção de uma história de elite, o que se justifica pelo recorte”, completa Jorge.
O arbitrário e a História
A rigor, elite é uma terminologia empregada no idioma oficial, muitas vezes, em substituição à expressão classes dominantes (burgueses e latifundiários, quando à mesa, não permitem que lhes chamem pelos seus verdadeiros nomes), com as suas frações dirigentes de maior destaque, entre elas a fração hegemônica. Também é óbvio que essa outra fatia não se apresenta como versão dominante, desde o momento em que a história lhe “dá luz”, ainda que um movimento progressista no campo da ciência possa se generalizar país afora. Tampouco, o reflexo da existência social e do sistema econômico vigente, tornada concepção ao longo dos séculos e que predomina num determinado momento, por si só, permite que a outra fatia se faça “elite”, por usa vez. Ganhar força não significa ter poder consolidado, a ponto de uma classe ter se libertado e conquistado o direito de traduzir fielmente as leis objetivas do desenvolvimento da sociedade e de divulgar livremente as necessidades do desenvolvimento histórico de nossa época, incluindo a consolidação de uma nova concepção de museu, de história, etc.
Não se pode pretender que determinadas peças figurem impunemente no acervo de um museu, que a interpretação científica sobre a sua existência circule explícita da mesma maneira, permitindo que se descortine uma nova e pujante realidade, antagônica à realidade dominante hoje. Essa luz concedida “a uma fatia” da sociedade, se comparada a toda luz irradiada por aqueles que detêm o poder, é ainda tão tênue quanto a emitida por um castiçal em péssimo estado. Inclusive, o velho poder mantém, até agora, inoperantes os esforços dos museólogos mais progressistas para fazer com que vigorem justamente por todos esses feudos – universidades, museus, bibliotecas, etc. -, a concepção científica da história. A mesma coisa seria atribuir iguais poderes ao mais progressista e vigoroso movimento estudantil e à política semifeudal, semicolonial e burocrática vigente e dominante nas universidades brasileiras. Sem vontade não se chega ao poder, mas o poder não é vontade, pura e simplesmente.
Riqueza escondida
Acontece que nos “porões” dos museus, às vezes há tanta riqueza quanto o que está à luz dos holofotes nas exposições. Disposta num corredor da reserva técnica do Museu Histórico (lugar onde é conservada boa parte das peças não exibidas), há uma série de estudos do escultor Rodolfo Bernardeli, “que era para o Brasil o que Rodin era para a França”, segundo Jorge Cordeiro. Embora primeiramente chame a atenção o deliberado nacionalismo ufanista das obras (retratando sempre as “figuras de vulto”), outro aspecto inusitado é a forma como um escultor das elites do século XIX realizava seu trabalho. Lá podem ser vistos moldes em gesso para estátuas de D. Pedro II, que seriam depois moldadas em bronze e espalhadas por diversas cidades do país – clara referência ao culto à personalidade do imperador. Uma história rica, desconhecida do grande público.
Em outras exibições, uma nova lógica historiográfica parece conquistar cada vez mais espaço. Um exemplo, ainda no Museu Histórico, é a exposição itinerante Pelas ruas e calçadas – comércio informal e ambulante ontem e hoje, com reproduções fotográficas de seu Arquivo Histórico, além de fotos especialmente feitas para a mostra. Em foco, a história privada das classes mais baixas, outrora ignoradas pela visão oficial de Estado. Lá estão personagens do cotidiano popular de ontem e hoje, como o mascate, o lambe-lambe, o burro sem rabo, a baiana e suas cocadas, o amolador de facas, os meninos vendedores de jornais, o camelô. As cenas documentam os aspectos e flagrantes da atividade comercial desenvolvida nas ruas das principais cidades brasileiras, com ênfase para o Rio de Janeiro do século XIX até hoje.
Novas e surpreendentes observações surgem, transportando o visitante a um universo de luta de classes, de exploração do homem pelo homem (essa noção fica clara no módulo O comércio se movimenta sobre a cabeça dos escravos… e também sobre a cabeça dos imigrantes) e a degradação cotidiana do povo que se perpetua até nossos dias (fotos de Hugo Leal documentam alguns dos 150 mil ambulantes em atividade no município do Rio). “Às vezes, dependendo do contexto de uma exposição, um prato de plástico pode ser mais importante que um de porcelana. A tendência de hoje é justamente retratar o cotidiano, o que antes não era valorizado”, explica Jorge Cordeiro.
Numa outra sala, a convivência de duas percepções. Em Expansão, ordem e defesa, o tema expõe a relação entre a formação da sociedade brasileira e os movimentos de expansão e defesa do território. Armas, uniformes militares do Império e da República e a tela nacionalista “Combate naval do Riachuelo“, de Vítor Meireles, compõem o quadro “oficialista”. Porém, a história dos oprimidos vem à tona na exposição de artefatos indígenas e peças ligadas ao movimento dos Sem-Terra. Peças que surpreendem o público, ainda acostumado aos emblemas ufanistas disseminados desde a escola. “A gente não imagina que isso vire peça de museu porque temos em mente que só as coisas ditas ‘importantes’ têm espaço”, conta a estudante Maria Carolina, que visitava a exposição.
Mas será que os museus são locais onde o povo realmente se vê? “Deveriam ser”, ressalta a museóloga Ruth Beatriz, também do Museu Histórico Nacional. “Aqui no museu a gente espera que o povo de fato se veja.” Ruth lembra que uma exposição é um processo coletivo e multidisciplinar, envolvendo profissionais de diversas áreas. E quase sempre o discurso ideológico de uma mostra dependerá da visão de seus organizadores (como exemplo, a já citada exibição de canhões da década de 20).
Um espelho
Em outro museu carioca, o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), um pouco da cultura popular conquista espaço em algumas salas, embora ainda conviva com um maior número de exemplares de uma arte burguesa e européia. Em duas mostras — uma de objetos de tribos indígenas brasileiras e outra sobre culturas africanas e sua influência no Brasil – a união prolífica entre antropologia, arqueologia e história parece proporcionar uma nova valoração de objetos de culturas anteriormente massacradas militar e ideologicamente. Será que veríamos em nossos museus, tempos atrás, máscaras rituais de uma tribo matriarcal da Guiné? Ou zarabatanas de tribos indígenas do Brasil?
Uma mudança de status desse tipo parece tornar museus espaços mais democráticos, onde o povo possa se ver mais, se sentir mais representado. Pelo menos é o que se nota por alguns exemplos, embora não tenhamos total firmeza para afirmar que tais instituições sejam hoje, de fato, locais representativos da luta de classes.