
Mais de trinta corpos foram soterrados em Quebrada Del Balcón Huaycco
Em 13 de novembro completaram-se 29 anos do massacre de Socos, localidade em Ayacucho, a apenas 18 quilômetros da cidade de Huamanga, quando membros da ex-Guarda Civil, a maioria pertencentes ao grupo de elite policial de luta contrassubversiva conhecidos como os “Sinchis”, irromperam numa casa onde se realizava uma festa de noivado e, sem motivo aparente, salvo o evidente desprezo desses policiais pelos pobres, camponeses serranos e índios, tiraram a vida de mais de 30 pessoas – homens, mulheres e crianças –, com uma crueldade sem limites.
Esse massacre ficou praticamente esquecido, pois não é funcional para os poderosos meios de comunicação de Lima recordar crimes estatais perpetrados com demência e frenesi macabro. Mais ainda quando se trata das intermináveis “pulsões de morte” entre a Lima “senhorial” e o sul peruano “índio”.
Este artigo está baseado quase inteiramente em dados extraídos do subcapítulo 2.1 do Tomo VII do “Informe da Comissão da Verdade e Reconciliação” (CVR) do Peru. Devemos dizer com toda honestidade que grande parte deste artigo é quase uma simples edição de referido subcapítulo, porque neste caso específico, consideramos que a CVR aplicou um trabalho investigativo e metodológico rigorosos, tentando fazer uma descrição rigorosa e imparcial dos fatos. Não obstante, discordamos das explicações conclusivas da CVR, pois não se ajustam à própria descrição dos fatos e, além disso, resultam evidentemente forçadas e direcionadas, uma vez que não questionam a institucionalidade policial, como envolvida nesse horrendo crime, nem tampouco a leniência do Poder Judiciário, que aplica simbolicamente penas drásticas contra os autores, mas na execução penal escamoteou sua atividade punitiva.
O Yaycupacu em Socos
O acampamento policial foi instalado em Socos por decisão do Comando Político Militar da Zona de Emergência de Ayacucho, menos de dois meses antes do massacre. Quase simultaneamente com a chegada dos efetivos policiais – muitos deles provenientes da costa peruana – ocorreram uma série de abusos perpetrados por eles contra a população – a maioria falava quéchua, camponeses pobres, muitos deles iletrados e vivendo em condições precárias. Os roubos dos bens e animais domésticos dos camponeses pelos policiais rapidamente se tornaram algo cotidiano.
Em 13 de novembro de 1983, era celebrada uma festa na qual Adilberto Quispe Janampa pedia Maximiliana Zamora Quispe em casamento, ato tradicional no lugar, conhecido como “Yaycupacu“ (pedida de mão).
Como de costume em Socos, os familiares do noivo prepararam comida e bebidas, convocando amigos e parentes mais próximos para a festa. Quando o noivo e sua comitiva se preparavam para ir ao encontro da noiva, repentinamente dois policiais entraram violentamente na casa e logo em seguida o resto dos policiais, dizendo prepotentemente que só era permitido realizar a festa até as 20hs e já eram 21hs.
Como muitos camponeses haviam bebido, um deles chamou a atenção dos policiais por sua conduta e lembrou dos constantes abusos que cometiam. Este pequeno protesto acirrou os ânimos dos policiais que atiraram para o alto e pediram os documentos dos presentes.
O massacre de Socos
Ordenaram a todos que saíssem e os levaram, caminhando, até a Quebrada Del Balcón Huaycco, a meia hora de Socos. Apenas um número reduzido de pessoas escapou.
Ao chegar ao Balcón Huaycco, os policiais separaram as mulheres jovens do grupo e as ultrajaram sexualmente, prática generalizada dos membros da polícia e das forças armadas peruanas nas zonas declaradas de emergência – com Estado de Sítio – durante as décadas de 1980 e 1990.
Às 2hs30min os policiais juntaram todos os camponeses detidos e investiram contra eles com rajadas de fuzis automáticos leves, convertendo a gélida noite andina de Socos no cenário de uma orgia sangrenta. Logo, os policiais agruparam os cadáveres e detonaram granadas para que as explosões provocassem o desprendimento de terra e pedras do desfiladeiro, sepultando com os escombros os corpos das pessoas. Houve apenas um sobrevivente, que não foi atingida e escapou de ser sepultada viva pela avalanche.
Foram mais de 30 vítimas com idades que iam (os adultos) de 21 a 62 anos. Ademais, entre as vítimas havia crianças, três dos quais não tinham nem um ano de vida, enquanto os demais não passavam dos sete anos de idade. Também foi considerada vítima um feto de oito meses e meio de gestação de outra vítima.
Dois dias depois do massacre, uma vez que os fatos foram denunciados, a polícia entrou nas casas da professora Victoria Cueto Janampa e de Vicente Quispe Flores, os denunciantes. Os policiais dispararam na cabeça de Victoria, na presença de sua mãe e sobrinho. Vicente foi sequestrado, executado e seu cadáver foi abandonado em uma ponte da região.
Os policiais ainda assassinaram Javier Gutiérrez Gamboa, um homem encarregado da limpeza e que ajudava os policiais na cozinha, porque ele sabia do ocorrido. Para ocultar esse outro crime, os policiais disseram que haviam sofrido uma emboscada terrorista na qual só este jovem havia falecido.
Ante as investigações do Ministério Público, a polícia – como instituição questionada – tentou encobrir o crime de seus efetivos, ao destacar na conclusão de um atestado policial que: “não está descartado que os autores do delito de terrorismo e do homicídio múltiplo com arma de fogo sejam integrantes do grupo Sendero Luminoso”. Igualmente, o chefe departamental da ex-Guarda Civil descartou totalmente que o pessoal do Destacamento de Socos tivesse executado os camponeses, assinalando que não existiam provas que demonstrassem fidedignamente o contrário, chegando inclusive a afirmar que não havia tido nenhuma festa no lugar.
Negaram mesmo que tivessem autorizado qualquer festa. Trocaram as peças das armas utilizadas para alterar o resultado da perícia balística, simularam fustigamentos “senderistas”, alteraram o caderno de denúncias para incluir supostas incursões subversivas ao distrito e perseguiram a única testemunha presencial.
Apesar de todas essas manobras, não só dos perpetradores, mas também da institucionalidade policial, foi aberta instrução em fevereiro de 1984 e foi ditada sentença condenatória em 15 de julho de 1986, a mesma que foi declarada como não tendo nulidade em todos seus extremos, mediante Executória Suprema de 30 de setembro de 1987 da Corte Suprema da República.
A sentença condenou onze dos acusados por assassinato dos 32 habitantes de Socos e tentativa de homicídio, absolvendo quinze efetivos que não participaram nos fatos. Os condenados, entre os quais haviam seis “sinchis”, foram:
- Tenente GC Luis Alberto Dávila Reátegui: pena de internamento por pelo menos 25 anos. Saiu em semiliberdade em 5 de abril de 1991.
- Sargento 2do GC Jorge Alberto Tejada Breñis: 20 anos em penitenciária. Saiu em semiliberdade em 14 de março de 1990.
- Sargento 2do GC Segundo Shapiama Apagueño: 15 anos. Saiu em liberdade condicional em 17 de junho de 1991.
- Cabo GC Luis Alberto Machado Tanta: 15 anos. Saiu em liberdade condicional em 3 de julho de 1991.
- Cabo GC Gustavo Alfredo Cárdenas Riega: 15 anos. Saiu em liberdade condicional em 7 de junho de 1991.
- Cabo GC Víctor Ángel Alberto Barrios Barrios: 15 anos. Saiu em semiliberdade em 28 de fevereiro de 1989.
- Guarda GC Juan Carlos Aguilar Martínez: 15 anos. Saiu em semiliberdade em 11 de janeiro de 1989.
- Guarda GC Pedro Ciro Agurto Moncada: 15 anos. Saiu em semiliberdade em 26 de julho de 1989.
- Guarda GC Félix Armando Javier Suárez: 15 anos. Saiu em semiliberdade em 31 de agosto de 1989.
- Guarda GC César Yamer Escobedo Arce: 10 anos. Saiu por cumprimento de pena.
- Guarda GC Genaro Gilberto Pauya Rojas: 10 anos. Saiu em semiliberdade em 1 de dezembro de 1988.
A título de reparação civil foi imposto o pagamento de 120 mil intis (moeda hoje inexistente no Peru), que os sentenciados deviam abonar de forma solidária em favor dos herdeiros legais das vítimas. Apenas César Yamer Escobedo efetuou o depósito de 11 mil intis e cumpriu a condenação de forma íntegra.
Por outro lado, a mesma Executória Suprema impôs aos responsáveis pelo massacre de Socos as penas assessórias de inabilitação absoluta durante o tempo de duração da privação de liberdade e até cinco anos posteriores a ela, assim como interdição civil durante a condenação. A pena de inabilitação absoluta impedia que os efetivos regressassem ao serviço ativo de sua instituição até cinco anos depois de obterem a liberdade definitiva. Mesmo assim, entre os anos 1990 e 1992, ainda antes de obter sua liberdade definitiva, cinco deles tinham sido repostos em seus cargos de forma irregular.
A CVR e o massacre de Socos

Entre as vítimas havia crianças com menos de sete anos e adultos que variavam de 21 a 62
Além de reunir todas essas informações, a CVR localizou e identificou 22 crianças e adolescentes órfãos em consequência do massacre de Socos. Eles tinham idades entre 8 meses e 18 anos na época do episódio, tiveram seus projetos de vida truncados e foram submetidos a difíceis condições de sobrevivência, além de arrastar o trauma pós-guerra, provavelmente por gerações.
Um dos pontos desse subcapítulo do Informe com o qual discordamos é quando a CVR assinala:
“A CVR considera que a sentença emitida em 15 de julho de 1986 e sua respectiva Executória Suprema de 30 de setembro de 1987, nas quais se sanciona os efetivos policiais que assassinaram os humildes moradores da comunidade de Socos, fortalecem o Estado de Direito, pois não ficou impune a grave violação aos Direitos Humanos cometidos pelas Forças da Ordem. É destacável, ademais, que o julgamento se tenha produzido no âmbito civil, apesar de que alguns processados apresentaram declinatória de jurisdição em favor do foro militar, o que não prosperou.”
No cálculo desde setembro de 1987, para cada um dos casos dos condenados, cujas saídas em liberdade se produziram entre dezembro de 1988 e junho de 1991, pode-se identificar que a prisão efetiva cumprida foi de um a 3,5 anos. Deixamos de lado o caso de César Escobedo, que cumpriu pena completa e pagou sua cota de reparação civil, quiçá por razões éticas pessoais, querendo expiar culpas com a reclusão prolongada, ou porque não contou com um “bom” advogado. Talvez não contasse com a simpatia da instituição policial a que pertencia ou simplesmente porque se tratava do mítico e indispensável bode expiatório, que deve existir em casos como esse.
Sem dúvida, pode ser que desde fevereiro de 1984 – quando se abriu a instrução – até setembro de 1987 – data da Executória – tenha havido muitos processados com detenção preventiva. Não obstante, esse detalhe a CVR não fornece e cabe a possibilidade de que alguns tenham gozado de liberdade provisória nesse período. De qualquer forma, há 2,5 anos de diferença, que fariam com que a prisão efetiva sofrida pelos criminosos tenha oscilado, no máximo, entre 3,5 e 6 anos.
Sob todas as luzes, esses tempos manifestam uma inédita leniência na execução da pena pelo Poder Judiciário, pois no Peru qualquer processado por delito de homicídio simples – sem falar de homicídio qualificado, como neste caso – não cumprirá menos de cinco anos de prisão efetiva, inclusive com benefícios penitenciários.
Então, a partir dos próprios dados fornecidos pela CVR, sem alterá-los nem por em questão nenhum deles, podemos tirar outra conclusão: que há evidentes indícios de leniência, de tibieza e atitude frouxa com a sanção dos policiais, sentenciados por seus crimes, e esta é uma forma sofisticada de impunidade.
Também podem ser apreciados nesse caso outros fatos abertamente impunes, cuja ocorrência real é evidente, tais como violação sexual, sequestro, abuso de autoridade, que também estão na esfera de proteção dos direitos humanos, e um ou outro delito, menor para esse caso, contra a fé pública.
Ficam também impunes os atos de encobrimento e obstaculização da ação da justiça por parte da Chefatura Departamental da ex-Guarda Civil em Ayacucho, que nem sequer foram investigados pelo Ministério Público e o Poder Judiciário.
A CVR focou principalmente no que foi feito efetivamente para o pagamento da reparação civil em favor das vítimas, assim como no fato de que cinco dos sentenciados tenham sido reincorporados à polícia, apesar de inabilitados. Quanto ao primeiro ponto, o montante total da reparação civil era tão ínfimo no momento em que o último sentenciado saiu da prisão – por causa da inflação da década de 1980 – que a soma total da reparação equivalia ao preço de dois bolos de pão no Peru. Sendo uma quantia tão ínfima, o que chama a atenção não é tanto o pagamento quase simbólico que os policiais poderiam ter feito, mas o desprezo – também simbólico – que acabaram manifestando, pois, até 1991, bastava pagá-la com apenas uma moeda de um novo sol (quase um terço de dólar) para pagar totalmente a dívida. Além disso, a CVR não menciona os cinco policiais inabilitados que retornaram ao trabalho irregularmente. Terão sido os outros cinco “sinchis”, exceto o tenente Dávila Reátegui, que tinha inabilitação por toda a vida?