Para o jornalista Arce Borja, de todos os crimes cometidos pelo governo Fujimori, ressalta-se a situação do líder maoísta Abimael Guzmán, o presidente Gonzalo, preso em 1992 e mantido incomunicável, em prisão especial, 6 metros abaixo do chão, na Base Naval de El Callao. Os mistérios envolvendo sua prisão e sua condição atual chegam às raias do surrealismo.
Em seu discurso de posse, o novo presidente do Peru, Alejandro Toledo, no dia 28 de julho de 2001, comprometeu-se a "começar uma luta frontal contra a pobreza e a promover a reativação do país", reafirmando seu compromisso com a democracia e os direitos humanos".
A composição do novo governo, entretanto, não confirma esta afirmação. Apoiando-se na Constituição de 1993 (promulgada após o auto-golpe de seu antecessor Alberto Fujimori em 92), Toledo conservou em postos chaves, antigos ministros fujimoristas, em nada alterando as medidas econômicas e políticas adotadas pelo antigo regime sob as ordens do imperialismo ianque. O ministro de Economia e Finanças do atual presidente é Pablo Kuczynski (ex-assessor econômico de Fujimori e um dos "pais" do plano econômico que levou à miséria 14 milhões de peruanos). O atual presidente do parlamento peruano é Carlos Ferrero Costa, aliado político do presidente Toledo e que aparece ao lado de Montesinos (super-assessor do antigo governo) em vários dos vídeos que revelaram a corrupção e o tráfico de armas sob sua direção durante a gestão fujimorista.
A recente visita de George W. Bush ao Peru foi saudada pela imprensa oficialista como acontecimento de salvação da situação caótica da economia do país (leia-se entrega de milhões de dólares). Na verdade, as razões da ajuda econômica norte-americana ao governo peruano estão voltadas, há muitos anos, a combater a insurgência maoísta surgida em 1980. Agora mais ainda, com o discurso de combate ao narcotráfico, esses recursos são destinados para os operativos, a partir do território peruano, como parte integrante do Plano Colômbia.
A grande imprensa peruana tenta colocar um selo de democrático no governo de Toledo, apesar da manutenção da política econômica e social e da presença, na atual administração, de um grande número de personagens que serviram a Fujimori. Para se definir o caráter da administração Toledo basta examinar seu comportamento frente à situação dos mais 9 mil presos políticos e prisioneiros de guerra que lotaram os presídios no governo anterior. O sistema carcerário, de morte e extermínio, institucionalizado por Fujimori, o isolamento e a incomu-nicabilidade dos presos durante 23 horas por dia, sem visitas, sem acesso a nenhum meio de comunicação e proibidos de exercer qualquer atividade manual ou intelectual, onde a tortura e os selvagens castigos eram práticas freqüentes nos diversos cárceres de segurança máxima, não sofreu qualquer alteração no governo atual, da mesma forma que os grupos paramilitares seguem dominando diversos povoados; milhares de peruanos vivem, ainda hoje, na clandestinidade dentro de seu país, para não serem presos e condenados, enquanto outros tantos estão exilados no exterior para fugir à terrível repressão do Estado, como denunciam organizações de direitos humanos internacionais. Colaboradores de Fujimori/Montesinos, na área militar, permanecem em altos postos e todo o aparato repressivo continua intacto. A repressão contra o povo, longe de ter atenuado, está aumentando. Exemplo recente é a aprovação de leis que caracterizam como crime a simples participação em manifestações políticas públicas, punindo com penas que podem chegar a vários anos de prisão.
A verdade deles
O presidente interino Valentin Paniágua (governo provisório até a eleição de Toledo) criou em 2 de junho do ano passado a "Comissão da Verdade", anunciada com muita pompa, com o objetivo de revelar as atrocidades cometidas contra presos políticos e prisioneiros de guerra e contra a população civil durante o governo Fujimori. Essa Comissão, revalidada por Toledo, é questionada pelos que denunciam e cobram efetiva revelação dos crimes do regime fujimorista. Para Luis Arce Borja, diretor do jornal El Diario Internacional, (www.eldiario internacional.com), proscrito por Fujimori e editado fora do país, a maioria dos membros da "Comissão da Verdade", abertamente ou não, tomou partido ao lado do governo deposto, contribuindo para a execução das ações contrainsurgentes do Estado peruano. O Presidente da Comissão é Salomón Lerner, Reitor da Universidade Católica do Peru, a qual dirige com o Cardeal Luis Cipriani, ambos conhecidos por sua ligação política com Fujimori, segundo Arce Borja. Outros dois membros da Comissão, Carlos Tapia e Carlos Iván de Gregori são conhecidos "sende-rólogos", o primeiro ex-dirigente da Isquierda Unida (Esquerda Unida), apoiador ativo da candidatura à presidência de Alan Garcia e depois de Fujimori, tendo então sido cotado para Ministro do Interior; o segundo é ligado à Fundação Ford, BID e outros organismos financeiros internacionais, também apoiador político do ex-ditador. Rolando Ames, fundador da chamada "Afirmação Socialista" da Esquerda Unida (IU), presidiu a Comissão do Senado, criada no governo de Garcia, para investigar o massacre de 300 prisioneiros políticos em junho de 1986. Para o diretor de El Diario esta foi mais uma comissão de fachada. Outro nome do governo passado é o de Beatriz Alva Hart, vice-ministra do Trabalho de Fujimori, Beatriz Alva Hart. Dentre os restantes membros da Comissão encontram-se ainda cardeais e sacerdotes da igreja católica que historicamente se posicionam com os presidentes da república.
Borja tem denunciado desde 92 as artimanhas de Fujimori, sob orientação da CIA, para atender a principal exigência do imperialismo ianque de acabar com a guerrilha maoísta. A maior façanha do ex-ditador foi a realização do plano para combater a guerrilha do ponto de vista ideológico, apresentando à imprensa mundial, em reunião na sede da ONU em 1993, as chamadas "cartas de paz", que segundo o governo peruano, teriam sido escritas pelo Presidente Gonzalo, propondo conversações de paz com o governo. Apesar das "cartas de paz", que lhe foram atribuídas, a situação do líder maoísta segue envolta em mistério, não se sabendo se continua vivo, já que desde sua prisão nunca mais foi visto a não ser em montagens duvidosas de vídeos, como a série divulgada após a queda de Montesinos. Todos os advogados que se apresentaram durante o regime fujimorista para defender Abimael Gusmán foram condenados à prisão perpétua.
Para Luis Arce Borja, o tratamento desumano dado aos prisioneiros pelo Estado peruano e, particularmente a situação do chefe da guerrilha maoísta, Abimael Guzmán, contrariam abertamente a propaganda sobre o caráter democrático do atual governo. Segundo o jornalista, Guzmán foi visto pela última vez, em abril de 1993, sendo transportado de barco da Ilha de San Lorenzo para a Base Naval de El Callao e, portanto, todas as notícias veiculadas pela imprensa oficialista, especialmente a revista Caretas, sobre visitas feitas a Guzmán no presídio são falsas e fazem parte de um plano sórdido de estabelecer várias versões para esconder a verdade sobre a real situação do líder maoísta. Sobre a "Comissão da Verdade", Arce Borja afirma que ela revela, tanto por seus componentes como por suas atividades, que está destinada mais a apagar pistas da autoria das Forças Armadas dos bárbaros crimes cometidos contra o povo peruano, do que realmente a tratar da verdade.
Pistas que não se apagam
Em artigo publicado no último dia 17 de maio, o jornalista peruano reafirma a hipótese levantada por ele em 1994, onde já assinalava que "as ‘cartas de paz' que Fujimori e Montesinos falsamente atribuíram ao chefe da guerrilha peruana, foram elaboradas sob uma concepção criminosa e sinistra que implicava no assassinato do presidente Gonzalo. Arce Borja denuncia que a probabilidade de Abimael Guzmán ter sido executado clandestinamente depois de abril de 1993, ganha corpo com a publicação de documentos secretos tornados públicos após a queda de Fujimori e seu super-assessor Montesinos. Afirma o artigo que "se conhece agora que as ‘cartas de paz' pedindo uma negociação da guerra popular não foram redigidas pelo presidente Gonzalo como propagandeou o governo. Seu autor, de acordo com uma auto-confissão, foi Rafael Merino Bartet, (funcionário de carreira do Serviço de Inteligência Nacional —SIN), que reinvindica a autoria das mesmas.(Declarações à revista Caretas, 9 de maio de 2002)". Arce Borja assinala que "agora também se sabe que o plano que o SIN elaborou e executou para ‘fazer Gonzalo capitular' se denominou "Aluvião dos Andes" como disse Montesinos, ou "Tempestade nos Andes", como disse Merino à revista Caretas. Segundo a versão de Merino este plano era composto de duas partes. A primeira destinava-se a tirar informações do prisioneiro e a segunda a convencê-lo que sua prisão descabeçara a organização que chefiava e que não lhe restava outra saída senão a capitulação. O propósito político das cartas forjadas era montar a versão de que o líder maoísta renegara suas convicções. Arce Borja denuncia que este plano, sob os auspícios da CIA, foi executado nos porões do SIN e "seus ingredientes foram a tortura, o crime, a montagem de vídeos, a falsificação de cartas e uma abundante publicidade nos meios de comunicação". Toda essa montagem foi patrocinada entre 1990 e 2000 pela CIA que entregou, segundo o jornalista, 10 milhões de dólares a Montesinos para sustentar o trabalho de inteligência nacional, especialmente o plano "Aluvião nos Andes", respaldado pelo governo e as forças armadas. A versão verdadeira sobre a situação do Dr. Abimael Guzmán é omitida através do método de propagandear distintas versões para ocultar a verdade, num velho truque que os exércitos e aparatos de inteligência utilizam já faz dezenas de anos. No jargão militar se denomina "guerra psicológica" ou "guerra de inteligência". As mentiras embaralhadas de Fujimori, Montesinos e Merino buscam criar o caos nesta história, e a partir disto ocultar o desaparecimento do presidente Gonzalo e encobrir a montagem em torno das ‘cartas de paz'.
Toda a polêmica exposta na imprensa peruana, com suas versões desencontradas, em torno da prisão do Dr. Abimael Guzmán, dos fatos que a seguiram e da comprovação de estar ele vivo ou morto, segue, no atual governo de Alejandro Toledo, sem esclarecimento, demonstrando que nada mudou na política de Estado do Peru.