Pesca, poesia e resistência

Pesca, poesia e resistência

Pescador por tradição — de pai, de avô, de desde quando ninguém nem lembra mais — , e solteiro por convicção, Enéas Marques convive com o fantasma do despejo de sua comunidade — Zacarias, em Maricá, Rio de Janeiro — desde a infância, quando apareceu um proprietário para a área de quase nove milhões de metros quadrados que equivale à Restinga de Maricá. Seu Enéas sabe que a Comunidade Tradicional de Pescadores de Zacarias ainda está lá porque luta, e registra em poesia o dia-a-dia dessa gente que não desiste.


Seu Enéas durante a I Mostra Brasileira de Poesia em Maricá, Rio de Janeiro

Nascido em novembro de 1931, Enéas começou a pescar aos 14 anos, como todos na comunidade. E, também como todos, só cursou até a 4ª série. A poesia ele não sabe como aprendeu a fazer.

  — Vem nas idéias, naturalmente. Assim como o cavaquinho, um dia ganhei um e fui testando, tocando até que aprendi — revela.

A ameaça do despejo se deu quando Lúcio Tomé Feteira apareceu se dizendo proprietário de toda a Restinga e mais a área de Zacarias.

— Foi antes de 1940. Em 43 criaram o Centro Comunitário, lá em baixo dos pinheiros, e já tava na maior guerra. Ele dizia que era dono mas não mostrava a escritura, só que os prefeitos sempre apoiavam ele — recorda.

— Teve despejo, cortaram moirão com machado, máquina pra derrubar. Uma tristeza… Teve invasão de casas, teve prisão… Finado Araújo enfrentou um jeep de capangas, levou um tiro no pé e foi preso.

E assim Enéas segue narrando a saga dos moradores:

— O que fizeram com a Tuguesa [Dirce Ângela da Costa] foi covardia e desumano: algemaram o Cóia [marido dela, Ângelo José Marins] e puseram os cinco filhos paralíticos no meio da rua, debaixo do sol, pra derrubar a casa dela. Depois vem o prefeito, o Odenir, e manda reconstruir. Mas e a vergonha… a humilhação…

— O finado Lúcio, que tinha um armazém aqui é que começou a fazer reunião, conversar com as pessoas e começou a peitar. Então surgiu a Cecaz [Centro Comunitário de Zacarias, que deu origem à Acclapez, atual Associação dos Pescadores] e a comunidade se organizou, mas teve pescador que se vendeu: deixou a casa em que morava e aceitou a que o Feteira deu, um ‘pombal’ com dois andares, casa embaixo e em cima. Eu não entendo. Comigo não tinha negócio, não saio da minha casa.

— Só saí de Zacarias num tempo que morei em Guaratiba [bairro vizinho] porque trabalhava no balcão de um armazém lá. Trabalhava por lá, comia por lá e dormia, mas tava sempre por aqui.

Durante aquele período os pescadores ficaram proibidos de fazer melhorias nas suas casas ou de construir alguma outra para um filho. Havia permanentemente dois capangas do Feteira circulando, das cinco da manhã até as cinco da tarde, e se alguém tentava levantar uma parede lá vinha caminhão com choque da PM pra derrubar.

— A gente esperava o cara ir embora e levantava um cômodo durante a noite e entrava. Daí que quando ele chegava já tinha gente morando. Na casa da Silvia vieram arrancar a cerca, deu confusão. Então conversa daqui, conversa dali e disseram que podia refazer. Não é que voltaram pra arrancar? — recorda indignado.

— Houve uma reunião no Fórum e tinha um pessoal revoltado que tentou jogar o Dr. Fernando [advogado do Feteira] da galeria e os outros foram acudir. Imagina só atirar o homem lá de cima…

Hoje o que revolta a comunidade é a quantidade de pessoas ‘de fora’ que construíram em Zacarias.

— Agora que ficou fácil, depois que a gente peitou para os filhos dos pescadores, vem esse povo pra invadir — protesta Enéas.

— Antes, o Feteira queria desocupar toda a área para fazer um empreendimento chamado ‘cidade de São Bento’, projeto de Lúcio Costa, que não foi adiante, então ele a vendeu para uma empresa que quer fazer hotel, condomínio de luxo e clube de golfe. Mantendo a Comunidade Tradicional Pesqueira de Zacarias ‘porque eles têm respaldo na Constituição Federal’.

A comunidade não aceita a permanência de não-pescadores na área porque a descaracteriza e enfraquece o movimento, facilitando para a sua expulsão.

Os diversos governos municipais e estaduais de todos esses anos sempre tiveram aguerrida resistência desse povo simples, porém incansável, e articularam como pôde para enfraquecê-los, como quando transferiu a sede da Colônia de Pesca Z-7, que era em Zacarias, para Itaipu, Niterói. Essa transferência nunca se justificou pois, até hoje, a maioria absoluta de pescadores cadastrados nela é de Maricá.

E a pesca, seu Enéas? — perguntei ao velho pescador.

— A lagoa era muito rica: dava camarão, curvinota, cará, anchoveta, parati, robalo. A gente aqui foi criada na base da savelha ( espécie de peixe) . Dava tanto peixe que Maricá abastecia o Rio, era pra toneladas, hoje quando muito se consegue umas curvinotas e não dá 40 quilos — recorda já atinando para outro assunto:

— A barra tinha uns cento e poucos metros de largura e meu avô já ajudou a abrir ela com pá de remo 1 . Teve uma vez que apareceu umas máquinas pra ajudar, parecia tudo bem, abriu rapidinho, mas quando a gente viu tinha dois caminhões querendo levar a areia para a vidreira do Feteira. Como é que pode? Não ta certo isso não! Mas veio um fiscal e deu a maior bronca dizendo: “Não pode não… essa areia tem que ir pro mar porque quando a barra enfraquece o mar traz ela de volta pra fechar. Se vocês levam, o mar vai trazer o quê?

E Enéas se indigna:

— O pessoal vivia dessa lagoa: comia, calçava, ia pra escola, mas depois do canal de Ponta Negra não dá pra mais nada.

Em 1975 houve uma grande mortandade de peixe, na Lagoa de Maricá, que durou quatro anos, extinguindo 200 toneladas de pescado somente no primeiro ano. Há quem diga que foi fruto de obras irregulares, resíduo de material pesado que era retirado da lagoa, monazita e tório, ou a abertura dos canais em Itaipuaçu e em Ponta Negra. Provavelmente tudo isso.

— Desde a abertura dos canais, anterior a 1960, a lagoa perdeu mais de 6 metros de espelho d’água, a pesca ta quase no fim. É preciso cuidar melhor da lagoa. É preciso manter a restinga. É preciso respeitar o pescador — pontua com a dignidade e respeito de um legítimo filho daquelas terras.

No dia 2 de janeiro
Um grande fato de deu
Na casa de um pescador
Português apareceu
Aí todos chegaram
Fizeram aquele veneno
Que tinham direito à casa
Mas não tinham direito ao terreno

Primeira vez eles vieram
Os pescadores estavam não
Mas à tarde eles voltaram
E botaram a cerca no chão
Disseram que tinham razão.
Por causa do conflito
trouxeram até camburão

Dali todos chegaram
E foram apresentados
Trouxeram a polícia
E até o delegado
Primeiro veio o cabo
Falamos com boa atenção
Mas o cabo foi tão safado
Que fez essa traição

Feteira é homem de dinheiro
Só topa parada dura
Dizendo que as terras são dele
mas não apresenta a escritura

*Abertura da Barra — Quando as lagoas enchiam, com o volume d’água que descia dos rios, era necessário ‘sangrar’ a Barra — abrir uma passagem de mais de cem metros entre a lagoa e o mar — para desaguar. Dessa maneira os peixes e camarões adultos voltavam para o mar e, quando ‘enfraquecia’ o mar jogava na lagoa os peixes e camarões para a desova enquanto ‘fechava a barra’.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
Agora, mais do que nunca, AND precisa do seu apoio. Assine o nosso Catarse, de acordo com sua possibilidade, e receba em troca recompensas e vantagens exclusivas.

Quero apoiar mensalmente!

Temas relacionados:

Matérias recentes: