Pescadores contra a privatização do litoral em Recife

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Pescadores contra a privatização do litoral em Recife

Uma área de 169 hectares da praia de Boa Viagem, em Recife – PE, foi privatizada pela Seap para criação do peixe beijupirá e cedida à empresa Aqualíder pelos próximos 20 anos.

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Os interesses das classes dominantes já expulsaram centenas de famílias para transformar uma aldeia de pescadores no mais luxuoso bairro recifense, ocupando toda a faixa dos 12 km da praia de Boa Viagem. Agora, é a gerência FMI-PT, através da Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (Seap) que decreta a expulsão dos pescadores artesanais também das águas oceânicas, através da "cessão do mar" para instalação de viveiros do peixe beijupirá. Um precedente para privatizar as áreas marinhas que historicamente são usadas pelas populações pesqueiras.

Pelo projeto do governo e da empresa Aqualíder, serão instalados 48 tanques-redes, com capacidade inicial de produzir 5 mil toneladas de peixe por ano, ao custo de U$ 50 mil cada tanque. Os tanques serão afixados por cabos de sustentação medindo 150 metros de comprimento, protegidos por uma tela de proteção que servirão para isolar a área. Os viveiros serão feitos com resina plástica resistente, terão 250 metros de diâmetro e ficarão a 18 quilômetros da praia, dez metros abaixo do nível do mar.

Essa notícia caiu como uma bomba no colo dos pescadores, surpreendidos pela informação durante reunião do Conselho Nacional de Pesca, no mês de março último. Naquele dia, eles souberam que o projeto vem sendo discutido em segredo desde 2006, pela gerência FMI-PT com empresários, sem dar-lhes qualquer informação.

O vice-presidente da Associação dos Pescadores do Pina (bairro vizinho a Boa Viagem), Edvaldo Martins da Silva, afirmou que o projeto de privatização "vai criar mais problemas para os pescadores. Eles não mostram os estudos que fizeram, publicaram um edital sem que ninguém soubesse, ninguém sabe dos impactos ambientais que esse viveiro provocará e que risco trará à pesca na plataforma continental".

Edvaldo informa que, na área escolhida pelos técnicos para instalar o viveiro, trabalham mais de 350 pescadores:

— São centenas de famílias que tiram o sustento daquela área, pescando ariocó, agulha, sardinha e outras espécies. São muitas gerações de pescadores que dali sempre tiraram o sustento, e que de uma hora pra outra estão sendo ameaçadas de perder tudo. O governo diz que a exploração exclusiva da área será por um período de 20 anos, mas só que este domínio não lhe pertence, mas sim ao público, pertence aos pescadores.

Ele alerta também para o fato de que os peixes do viveiro serão alimentados com farinhas animais e antibióticos que poluirão o mar e destruirão os corais. De fato, nas fazendas aquáticas os criadores usam produtos veterinários para evitar a disseminação de doenças entre os peixes, provocando muitos problemas. As substâncias químicas provocam a concentração na água de substâncias como nitrogênio e fósforo. O resultado é a proliferação de algas tóxicas na região em que a fazenda está instalada. As algas retiram o oxigênio da água e provocam a morte de espécies no entorno do viveiro.

Às vezes a própria instalação de viveiros já provoca deterioração ambiental. Só nas Filipinas, 75% da vegetação de mangue foi destruída desde os anos 50. Nos últimos 30, metade das áreas de mangue foi destruída na Tailândia e 25% na Malásia. É comum também que em grandes fazendas haja fuga de parte dos peixes, como ocorreu na Escócia, quando 100 mil salmões escapuliram do tanque em que viviam. Peixes cultivados em fazendas, quando escapam, provocam um aumento súbito na espécie e competem por alimentos com os que estão livres, causando desequilíbrio geral.

Camarão é exemplo

Essa situação, segundo a coordenadora nacional da Comissão Pastoral dos Pescadores — CPP, Laurineide Santana, já é sentida no nordeste brasileiro, principalmente no Rio Grande do Norte e Ceará, onde está a maior parte dos 15 mil hectares de viveiros de camarão implantados no país. Segundo ela:

— O Ceará tem a maioria dos seus criatórios já contaminados e muitas fazendas já estão abandonadas — acrescentando que o mesmo problema acontece no Rio Grande do Norte, onde antigas salinas foram transformadas em viveiros do crustáceo, provocando um forte impacto ambiental e causando sérios prejuízos para centenas de pescadores.

A criação de camarão em viveiros (carcinocultura), especialmente no Rio Grande do Norte, prejudica os pescadores autônomos também por causa da ganância das empresas. Alguns empresários, além de monopolizarem o cultivo, dificultam para os pescadores artesanais a captura não só do camarão, mas também de outros peixes. Esses empresários degradam os mangues com os resíduos da produção, aumentam a quantidade de material orgânico disponível, poluindo as águas dos rios e matando peixes entre outras espécies. Na Câmara Federal, em 2006 um relatório já alertava que a carcinocultura gerou problemas sócio-ambientais em muitas áreas, sobretudo no fluxo das marés, extinção de áreas de mariscagem e até mesmo a contaminação da água destinada ao consumo humano.

Laurineide diz que a carcinocultura começa com o desmatamento do manguezal, para a implantação dos viveiros, reduz o habitat de numerosas espécies, particularmente sua área de reprodução, extingue áreas da vegetação de mangue e impermeabiliza as unidades do ecossistema.

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Pescadores: surpresa ao saber que projeto vem sendo discutido em segredo desde 2006

— Várias áreas de mariscagem e captura de caranguejos estão extintas, gerando um grande impacto social com a expulsão de marisqueiras e catadores de suas áreas de trabalho, promovendo seu deslocamento das comunidades para as favelas das cidades.

Ela desmente a tese de que a carcinocultura ou a criação de peixes em viveiros seja atividade geradora de emprego e renda.

— Renda mesmo, ou melhor, lucro fabuloso, só para os empresários da pesca. E emprego não existe: cada viveiro gera ocupação para um ou dois pescadores. Não tem condição de mais pescadores trabalharem. E quem trabalha em viveiro não se sente mais um pescador: eles dizem que viraram vigia de peixe. No caso dos viveiros de camarão, por exemplo, empregam-se duas pessoas por hectare em áreas que anteriormente serviam de subsistência para 10 famílias e, em muitos casos, sem qualquer direito trabalhista — diz Laurineide, e acrescenta:

— A Seap não tem nenhum respeito pelos direitos e pela cultura dos pescadores e quer transformá-los em piscicultores, o que são atividades conflitantes. Piscicultura e pesca não podem conviver no mesmo espaço.

O tesoureiro do Monape — Movimento Nacional dos Pescadores — Josias Clementino de Jesus, conhecido como Jorge da Praia, dá mais informações:

— A empresa Aqualíder se diz vencedora de uma licitação, mas na prática não houve esse processo licitatório, porque ela era a única concorrente, o próprio projeto é dela e da Seap.

Jorge denuncia também que a empresa fez um trabalho de cooptação junto a pescadores das colônias Z1 — Pina, Z25 — Jaboatão dos Guararapes e Z8 — Cabo de Santo Agostinho, para justificar um "falso apoio popular" à privatização do mar.

— Esse projeto começou em 2006 e só em março de 2008 é que os pescadores tiveram conhecimento dele. Já veio pronto, de que forma podem falar em apoio dos pescadores? Eu faço parte da colônia Z1 e nunca houve uma assembléia para debater esse projeto. Quem apóia é porque tem algum interesse, mas não é o interesse dos pescadores. Outra coisa: a idéia do governo é implantar três tanques já em 2009 e o restante até 2015. Mas nada disso foi discutido com os pescadores. Se vivemos numa democracia, que tipo de democracia é essa em que não há discussão? Depois da nossa mobilização já foi formado um grupo de trabalho na Assembléia Legislativa, mas até numa reunião desse grupo, na semana passada, os representantes da Seap e da Aqualíder faltaram. Os pescadores estavam todos lá, mas o governo e os empresários não compareceram. Agora nós estamos encaminhando para a Procuradoria da República e vamos em frente com a nossa luta.

Baianos também lutam

Na Bahia, os pescadores também protestam contra o projeto ganancioso e especulativo das empresas TWB (representada nas reuniões com os pescadores pelo ex-secretário da pesca do governo federal, José Fritsch) e Bahia Aquicultura, ambas controladas por empresas estrangeiras. No dia 8 de junho, mais de 500 pescadores, marisqueiras e outros trabalhadores do mar realizaram um abraço fraterno na Ilha do Medo, na Barra de Paraguaçu, município de Salinas de Margarida, a 70 km de Salvador, defendendo-a contra a possibilidade de privatização das águas no seu entorno, para instalação de gaiolas para cultivo de beijupirá.

— A criação desse peixe carnívoro, que não compõe nosso ecossistema, visa apenas ganhos reais e fortunas para aqueles que só enxergam lucro, incluído, aí, principalmente, políticos e empresários locais inescrupulosos — disse Maria José, da CPP-Bahia.

Os pescadores que atuam no entorno da Ilha do Medo estão firmes na luta e conscientes dos prejuízos sócio-ambientais que essa proposta absurda poderá causar. Na sua imensa criatividade o povo já apelidou os empresários e agentes do governo defensores da idéia como "beijupiratas". As marisqueiras, profissão da maioria das mulheres da região, estão preocupadas que isso represente o fim do trabalho artesanal, único modo de sobrevivência delas. Os pescadores mais velhos estão com medo que o mar seja loteado e as redes recolhidas sem o pescado.

A pesca responde por 80% do sustento dos nativos de Barra do Paraguaçu e de outros cinco distritos de Salinas da Margarida, com cerca de doze mil habitantes e um dos poucos locais do litoral onde ainda se encontra o beijupirá.

Querem privatizar os oceanos

A política de privatização do litoral brasileiro é mais uma das diretrizes do Banco Mundial, que em 2001 já determinava aos seus agentes pelo mundo afora a privatização das águas. Certamente que desde então tem pressionado o governo de Luiz Inácio também neste sentido. Já no dia 9 de novembro último, o governo federal, através da Seap, publicou edital licitatório para conceder o direito de uso das águas dos rios, lagos e reservatórios pertencentes à União para fins de aquicultura — criação de pescado em cativeiro. Em dezembro, no Palácio do Planalto, foi apresentado numa reunião ordinária da Conape (Conselho Nacional de Pesca) um estudo setorial chamado Aquicultura no Brasil — o Desafio é Crescer, elaborado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e pela Seap. O documento mapeia o "imenso potencial" do Brasil para o desenvolvimento do setor e fala que "a aquicultura pode se tornar uma das atividades mais importantes do setor primário da economia nacional, com impactos na geração de alimento, emprego e renda". Esse tipo de projeto tem sido imposto por governos subservientes em várias partes do mundo, com protestos generalizados dos pescadores e demais trabalhadores do mar.

Essa política está bem documentada numa declaração do cientista Fabio Lang da Silveira, gestor do Ocean Biogeographic Information System — OBIS no Brasil. Ele informa que o órgão é "um banco de dados dos censos que têm linhas de trabalho da geração e da recuperação de conhecimento em diferentes áreas, desde águas bem rasas até o mar profundo". Na entrevista o professor diz que "o direito internacional dos oceanos é do século XIX, o que é um problema, que exige um aperfeiçoamento jurídico de direito internacional pelo qual precisaremos passar. Existe um grupo muito forte crente de que a solução é privatizar todos os oceanos e eles não estarão mais sujeitos a interesses de nações, mas diretamente ligados com empreendimentos do homem com objetivos de exploração organizada". Certamente é este "grupo muito forte" que determina os passos e as "idéias" dessa gente que comanda a Seap e outros órgãos do governo federal. Para eles, a privatização das águas brasileiras seria feita com uma simples canetada de Luiz Inácio. Não fosse a força do povo organizado.

O peixe
O beijupirá é comum nas águas pernambucanas, muito apreciado no exterior, e sua ova, boa para produzir caviar. Seu nome é de origem tupi e significa peixe beiju, indicando que sua carne era muito apreciada pelos povos litorâneos. O peixe não nada em cardume; vai solitário, poucas vezes em dupla e também infiltrado entre outras espécies. Em relação ao tamanho e peso, fala-se que pode alcançar até seis quilos em um prazo de 8 a 12 meses, tempo considerado curto por especialistas.

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