Pobre estância do abandono

Pobre estância do abandono

O Rio Grande do Sul foi ponto de partida de muitas das lutas nacionais e populares travadas no Brasil no século XX. Da Coluna Prestes (1925) ao movimento armado pela posse do presidente João Goulart (1961); das primeiras tentativas de guerrilha contra o regime de 64 (1965-66) à retomada da luta pela terra (1978-85); da nacionalização da telefonia e eletricidade (1958-61) à resistência contra a reversão colonial da economia brasileira (1989-99), o país contou com a ação desassombrada dos melhores filhos do solo gaúcho.

Diante desse histórico, parece inacreditável que o estado farroupilha encontre-se, hoje, entregue aos desmandos de uma administração como a de Yeda Crusius — versão mais corrupta e truculenta da de Antonio Britto (1995-98), hoje transformado em cadáver político.

As gestões Britto e Yeda têm em comum a adesão sem peias à perspectiva da dissolução da economia e da formação social gaúchas num mercado global dominado por monopólios transnacionais. Enquanto Britto foi o responsável pelo desmanche da infra-estrutura econômica do estado, com a privatização e desnacionalização da empresa estadual de telefonia (CRT) e do serviço de eletricidade (entregue aos monopólios ianques AES e RGE em dois terços do estado), Yeda conduz o esfacelamento da superestrutura administrativa. Tradicionalmente os melhores do país, os serviços públicos gaúchos de educação, saúde, justiça, etc. encontram-se, hoje, em estado de penúria. Algumas escolas estaduais chegam ao cúmulo de, por medida de economia, ter turmas compostas por alunos de duas ou três séries diferentes — isso não obstante a irrisória remuneração dos docentes (um professor com licenciatura plena e regime de 20 horas não chega a ganhar R$ 600).

Truculência

O sucateamento da rede escolar estadual e a preocupação em conter gastos não impediram, contudo, que a administração estadual fechasse as escolas mantidas por camponeses em suas ocupações e assentamentos. Em conluio com um Ministério Público estadual majoritariamente fascista, a gerência estadual determinou a transferência dos alunos dessas escolas para as suas próprias.

A truculência no trato da questão agrário-camponesa, todavia, não se detém aí. Em agosto deste ano, o camponês Elton Brum foi assassinado pelas costas por um alto oficial da Brigada Militar após a desocupação de uma área reivindicada contra o latifúndio Southall, em São Gabriel, no sul do estado. Em maio de 2008, repercutiu em todo o país a repressão a integrantes do Movimento de Mulheres Camponesas e da Via Campesina que haviam atacado uma fazenda-laboratório da Aracruz, empresa monopolista do setor de papel e celulose.

Crise estrutural

A estrutura agrária do Rio Grande do Sul é a fonte tanto das diferenças que historicamente existiram — para melhor — entre o estado e o restante do país quanto da crise estrutural que ora acomete a economia gaúcha.

Desde o final do século XIX, a "policultura camponesa de subsistência" deu origem a uma "produção artesanal, manufatureira e industrial (…) endógena de pequenas e médias empresas" direcionada ao mercado interno, nas palavras do historiador Mário Maestri. Esses fatores impulsionaram o progresso econômico e social do Rio Grande do Sul.

A convivência entre a agricultura camponesa (base desse progresso) e o latifúndio exportador — tradicionalmente muito poderoso no estado — foi, contudo, sempre problemática. A partir dos anos 20, a saturação da metade norte do estado pela impossibilidade de divisão das pequenas propriedades entre os filhos dos camponeses levou à emigração em massa. Ao mesmo tempo, a metade sul do RS, ocupada pela pecuária extensiva, transformava-se em pasto vazio.

A sangria de braços e divisas poderia ter sido estancada pela solução óbvia que, a partir dos anos 50, foi defendida por todas as pessoas dotadas de alguma lucidez: a expropriação do latifúndio e o aproveitamento de suas áreas para assentar os filhos dos agricultores das zonas saturadas. Posta em marcha pelo governo de Leonel Brizola (1958-61), essa política foi, porém, interditada antes mesmo do golpe de 64.

Sangria desatada

Em lugar dela, o regime instaurado naquele ano apostou na perspectiva que a administração Yeda — após frustradas tentativas de reversão nos períodos Olívio Dutra (1999-2002) e, talvez, Germano Rigotto (2003-06) — aprofunda até o paroxismo: dissociação entre produção e consumo, desindustrialização nas áreas urbanas e submersão da economia camponesa na cadeia produtiva da agroindústria transnacional. Na região de Santa Cruz, a Souza Cruz e a Phillip Morris descobriram que pagar preços irrisórios aos produtores de fumo é mais barato que assalariá-los — mesmo porque evita qualquer responsabilização pelo uso de trabalho infantil e de agrotóxicos que levam à loucura e ao suicídio. Na metade sul, os latifundiários confirmam sua vocação rentista e parasitária ao arrendar suas terras vazias para transnacionais dedicadas à monocultura do eucalipto, como Aracruz e Stora Enso.

Sangradas pela conjugação entre essas práticas, os juros altos e a baixa capacidade de consumo interno, as áreas camponesas convertem-se em fornecedoras de braços para todo o país, exceto para o próprio estado — onde, no máximo, abastecem a reserva de mão-de-obra que grassa na região de Porto Alegre. A avassaladora desindustrialização sofrida pela capital na última década e meia, com a falência de toda sua indústria naval e a quase desativação do porto, transformou-a num bolsão de submoradia e subemprego. Embora cidades da região metropolitana — como Canoas, Cachoeirinha e São Leopoldo — contem ainda com uma expressiva indústria de pequeno porte, predominam hoje, em Porto Alegre, duas classes sociais: a pequena burguesia e o lúmpen. Com parte da primeira em acelerado processo de pauperização, a linha que as separa é cada vez mais tênue.

Mesmo prejudicada por esse sistema, a pequena e média burguesia teme a mudança estrutural e a mobilização popular, deixando-se seduzir por migalhas. Enquanto isso, o que resta dos extratos superiores do empresariado local aposta firmemente na compradorização. Grupos como Gerdau e RBS buscam um lugar ao sol como intermediários do capital monopolista estrangeiro. Têm tido relativo sucesso, ao contrário de muitos de seus pares: nos últimos 15 anos, empresas-símbolo da economia gaúcha (Ipiranga, Varig, SLC, Frangosul, Trevo) faliram ou tiveram seu controle transferido para mãos estrangeiras.

A oposição a esse descalabro parte, sobretudo, do campesinato organizado, com o apoio da parcela mais esclarecida de extratos médios, como servidores públicos e estudantes. Porém, a hegemonia do oportunismo na direção desses setores empurra suas ações para uma oposição eleitoreira. Além disso, a propaganda reacionária disseminada pelo monopólio RBS (entre outras atividades, é repetidora da rede Globo) tem impedido que a exasperação geral com a gerência Yeda desague na formação de uma frente capaz de contrapor-se eficazmente ao atual estado de coisas. Se isso não mudar, e usando novamente palavras de Maestri, "o Rio Grande do Sul de Yeda não será mais o Rio Grande do Sul".

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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