Rateada a conta, ainda na mesa, Felipe anunciou um último relato naquela noite, entre tantos outros, sobre sua rápida passagem pela Europa.
Felipe pôs-se a falar do Berliner Ensemble, o sagrado teatro de Brecht, em Berlim, onde, por volta de 1972, assistira à estréia de uma peça chinesa, especialmente produzida para estrangeiros. Tratava-se de uma impressionante narrativa quase sem texto e abundante em recursos cênicos, mas que o trabalho dos atores conseguiu, muito claramente, traduzir a um público constituído por diversas nacionalidades o melhor da expressão humana, essa linguagem universal da luta pela vida. A obra descrevia uma história do tempo em que na China era permitido substituir um animal de tração pelo homem em veículos denominados riquixás, destinados a conduzir passageiros.
Foi mais ou menos o que contou Felipe:
Em Pekim vivia um certo cule* que enviuvara há pouco. O trabalhador tinha um filho, de uns dez anos, que freqüentava o único tipo de escola então existente, privilégio apenas concedido aos que podiam usar trajes nobres. Ludibriando as atenções de todos, o pobre chinês havia introduzido seu filho no estabelecimento, o que lhe sobrecarregara de despesas ainda mais pesadas. Por esse motivo, à custa de esforços sobrehumanos, aquele homem trabalhava mais dos que os outros da profissão, fato que lhe trouxera a irremediável atrofia de alguns músculos. Buscando evitar dores ainda mais atrozes, sempre que caminhava sem o apoio dos braços do riquixá ele tinha que se contorcer terrivelmente, a cada passo.
Transmitido um endereço, o cule simplesmente memorizava o local onde deveria deixar o passageiro e, seguindo o caminho traçado, ele próprio se transferia em sonhos para a escola. Via o menino, assim, protegido como os outros estudantes, preparando-se para um futuro repleto de felicidades, longe da miséria que oprimia sua gente no mundo real. Como combinaram certa vez pai e filho, pelas tardes o homem aparecia na escola, onde se fazia passar por um serviçal especialmente contratado para transportar aquele aluno de poucas conversas. Ao se despedir dos colegas, o menino não cumprimentava o pai. Com gestos nobres, acomodava-se no veículo e o silêncio de ambos apenas era rompido a meio caminho do bairro em que moravam. Era o instante em que trajes, comportamento e a própria fisionomia do jovem se transformavam como num passe de mágica.
Repetia-se a cena em que chegando em casa o chinês abraçava demoradamente o filho. Depois, sempre mais atento e surpreso, ouvia relatos do estudante enquanto se dedicava ao restante dos afazeres.
Aconteceu que numa certa manhã, em frente à universidade, dois homens subiram ao veículo. Às gargalhadas, lembravam-se dos detalhes de um novo plano econômico de que eram mentores. Prestes a ser executado pelo governo, o plano multiplicaria a fortuna de uma insignificante parcela da sociedade e tornaria ainda mais terrível a vida do povo. Nunca, em toda a vida, o prestimoso cule admitiu ouvir uma conversa entre passageiros. Mas, naquele exato momento, libertando-se do riquixá, o trabalhador lançou os dois velhacos para trás. O corpo aleijado, entre gemidos curtos e incontroláveis, percorreu várias ruas até alcançar o portão da escola. Desesperado, o chinês invadiu a sala de aula e retirou dali, nos braços e para sempre, o seu querido e único filho.
*cule – nome que os colonizadores ingleses davam aos trabalhadores humildes da China e da Índia. Na ortografia apor-tuguesada, se estabeleceu também a forma cúli. Há bem pouco, usava-se apenas coolie, no inglês.