No dia 12 de junho aconteceu algo que entrou para a história da resistência internacional às manobras dos grandes monopólios. Em referendo, o povo irlandês votou contra a implementação do famigerado Tratado de Lisboa, dizendo um sonoro "não!" às pretensões das elites européias de impor aos trabalhadores do continente um documento constitucional unificado e redigido pelos patrões.
Como dizem os portugueses, que viram o tratado ser assinado na capital de seu país sob um forte esquema de segurança montado para fazer frente à fúria do povo, os irlandeses "chumbaram" a tentativa de renovação do aparato legal burguês, que serviria apenas para agravar a situação das massas européias.
E mais: honraram os trabalhadores de todos os outros países que compõem a União Européia, e que, no que tange ao Tratado de Lisboa, foram acintosamente trapaceados por seus governos a serviço do grande capital.
Acovardados pelo "não!", que o projeto anterior de constituição européia recebeu em 2005, nos referendos então realizados em outros dois países, estes lacaios decidiram solapar o direito dos diferentes povos europeus de decidirem eles próprios sobre matéria de tal envergadura. Sabendo que as massas rejeitariam novamente o documento constitucional que há anos vêm preparando com tanto esmero, repassaram o poder de avalizar ou vetar o texto aos seus parlamentos nacionais — casas sempre solícitas às demandas do patronato.
A Irlanda, por imperativos constitucionais internos defendidos aguerridamente pelo seu povo — de forma que se tornaram incontornáveis para as elites irlandesas — foi o único dos 27 países-membros da União Européia que submeteu o Tratado de Lisboa ao voto popular. A população dos outros 26 foi vítima da punhalada pelas costas.
E desde que se confirmou a necessidade de o tratado passar pela prova dos nove na Irlanda, as classes dominantes européias se valeram de toda sorte de pressões e intimidações dirigidas aos trabalhadores da ilha. O patronato, afinal, sabia da sinuca de bico em que se encontrava: depois de décadas planejando botar a cereja no bolo da hegemonia dos monopólios sobre a Europa, as classes dirigentes do continente viram seu projeto de dominação cair nas mãos da classe trabalhadora.
E não deu outra: o povo irlandês decidiu que o destino da papelada redigida na surdina, apresentada com pompa e assinada na base da traição não poderia ser outro, senão a lata do lixo.
Já se prepara o contra-golpe burguês
E os trabalhadores da Irlanda derrotaram o Tratado de Lisboa com ampla margem de sucesso do "não!", que acabou vencendo em 33 dos 43 distritos eleitorais do país, totalizando 53,4% dos votos. Assim foi derrotada a cópia mal feita da Constituição Européia que em 2005 já havia sido rejeitada em votações na França e na Holanda.
O bastante para arrefecer os ímpetos dos poderosos do continente? Não. Sua ânsia para criar as condições ideais de reprodução do capital predatório e da exploração das classes populares parece não ter fim. E os sinais de uma nova ofensiva do capital já podem ser observados nos movimentos realizados após o referendo da Irlanda e nas reações truculentas dos dirigentes de cada nação européia, meros gerentes dos interesses das burguesias de seus países.
Logo no dia seguinte ao "não!" irlandês, o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, e a chanceler alemã, Angela Merkel, emitiram uma declaração conjunta exortando os países que ainda não submeteram o Tratado de Lisboa à aprovação de seus parlamentos para que o façam logo. O próprio Reino Unido, menos de uma semana depois do referendo na Irlanda, faz passar o documento constitucional em sua Câmara dos Lordes.
Isto demonstra que a tão festejada Europa pretensamente construída em alicerces democráticos não passa de fachada para a imposição dos interesses dos monopólios do continente. Não fosse assim, os distintos presidentes, chanceleres e primeiros-ministros europeus não teriam deixado o discurso polido de lado para dar sinais de que irão simplesmente passar por cima do veto irlandês.
Sim, o Tratado de Lisboa deveria estar enterrado com o resultado do referendo na Irlanda. Mas até mesmo o presidente da Comissão Européia, quem teoricamente — e muito teoricamente — deveria ser o maior defensor do respeito aos processos e instituições supra-nacionais do continente, já avisou que o tratado "não está morto". Foi o que disse o português José Manuel Durão Barroso, deixando claro que o compromisso da União Européia não é com a vontade do povo trabalhador europeu, mas sim com seus antagonistas: a burguesia do continente, verdadeira beneficiária do Tratado de Lisboa.
Neste sentido, a maior afronta à vontade das massas vem do próprio primeiro-ministro da Irlanda, Brian Cowen, que se esmerou na campanha pelo "sim" ao tratado, foi derrotado pelo voto popular e no mesmo dia virou as costas para o seu povo, indo pedir desculpas aos poderosos do continente e prometendo trabalhar duro para que não se respeite a decisão do povo de seu próprio país.
A derrota do tratado enfureceu particularmente o presidente francês, Nicolas Sarkozy, uma vez que desde o dia 1° de julho a França exerce a presidência rotativa da União Européia, e Sarkozy esperava aproveitar este tempo para consolidar o documento constitucional e a si próprio como o novo grande líder da direita européia desde Margareth Thatcher, reforçando as engrenagens do fascismo que assombra o povo europeu de braços dados com o grande capital.
Mas os bravos europeus, os verdadeiros, continuam a postos para conter tanto um quanto outro, e um dia derrotá-los de vez.