O povo islandês não se dobrou aos ditames dos que se acham donos do mundo
Era de se esperar que o capital agravasse o arrocho das massas trabalhadoras no momento em que padece na atual — sim, atual, ao contrário do que a contra-propaganda burguesa quer fazer crer — e profunda crise geral de superprodução relativa. Prova disso é que, desde o início desta crise, a chantagem patronal e as patranhas das gerências fantoches do imperialismo e das classes dominantes semicoloniais foram levadas ao extremo, com a requisição de uns e justificativas de outros para uma tal “necessidade” de reduzir salários, navalhar direitos e demitir em massa. Tudo para socorrer os monopólios e os capitalistas em geral, mas tudo levado a cabo em nome do bem-estar dos maiores prejudicados não com a crise propriamente dita — porque este tem sido um momento de revigorado ânimo revolucionário — mas com toda esta pretendida precarização: os trabalhadores.
Pois vem das massas trabalhadoras de um longínquo país insular um belo exemplo de rechaço às políticas desta estirpe, ora acentuadas em razão da crise capitalista, exatamente onde o capital financeiro em bancarrota quis levar a rapina de hábito e de costume ao limite da patifaria.
Primeiro, o histórico da patifaria: Em outubro de 2008, quando a agonia sistêmica do capitalismo já era uma realidade, o banco islandês Icesave foi à bancarrota, entrando para os anais da história como a primeira grande instituição financeira da Europa a sucumbir ao buraco aberto pela crise corrente, fazendo com que bilhões de dólares evaporassem no ar. A quebra do banco, que afinal de ” save ” nada tinha, pegou de calça curta muitos “investidores privados” da Grã-Bretanha e da Holanda, que se meteram a fazer aplicações no Icesave a fim de multiplicar dinheiro com o esforço de poucos cliques no mouse do computador.
Os governos da Grã-Bretanha e da Holanda saíram em socorro dos credores do banco falido, repassando-lhes, ao todo, o equivalente a US$ 5,3 bilhões, a título de ressarcir seus prejuízos. Depois disso, os chefes de Londres e Amsterdam requisitaram junto à gerência da Islândia o “reembolso” desta nada módica quantia. Requisição feita pela ilha maior, requisição atendida pelas classes dominantes lambe-botas da ilha menor: em dezembro, o governo islandês assinou um acordo se comprometendo a atender à exigência, que veio sobretudo do imperialismo britânico.
Mas o povo extorquido não aceitou, demonstrou grande repulsa e se mobilizou para barrar a manobra com a qual se pretendia usar as riquezas produzidas pelos trabalhadores de um país para cobrir os prejuízos tomados por pequenos e médios “investidores” de uma outra nação, encorajados e autorizados pelo promotores do capital financeiro a assumirem toda e qualquer espécie de risco em nome das oportunidades para ganhar dinheiro fácil.
Até ‘lei antiterrorismo’ incrementou a chantagem
As massas organizaram uma campanha de recolha de assinaturas para uma petição a fim de forçar a gerência títere local a submeter o acordo selado com a Grã-Bretanha e a Holanda ao opróbrio popular. Cerca de 23% da população da Islândia subscreveu o documento. O governo foi então obrigado por lei a convocar um referendo e, apesar de toda a contra-propaganda oficialesca a favor do “esquema de reembolso”, 93% dos que foram votar, no sábado dia 6 de março, disseram um sonoro “não” ao inescrupuloso arranjo feito entre os poderosos. Gordon Brown espumou, e as classes dirigentes da Islândia, que antes de a crise estourar se vangloriavam de estar no “primeiro país do mundo gerido como um fundo de alto risco”, tiveram que colocar o rabo entre as pernas.
A vitória do povo da pequena Islândia sobre uma grande potência da Europa é digna de admiração por parte de quem não se dobra aos ditames dos que se acham os donos do mundo. Ainda mais quando se observa o fato de que a Grã-Bretanha recorreu a uma forte campanha de intimidação, chegando a usar “leis antiterroristas” para bloquear dinheiro islandês, e plantando ameaças no monopólio da mídia de que um “não” na Islândia significaria um fim de linha para a pretensão do país de entrar para a União Européia, além de um impedimento para a tomada de um empréstimo junto ao Fundo Monetário Internacional. Pois o povo da Islândia não só rechaçou o “esquema de reembolso”, como também mostrou que se lixa para a Europa do capital e para o FMI!
Em uma entrevista dada à revista alemã Der Spiegel antes da realização do referendo, uma das lideranças da vitoriosa iniciativa contra o “esquema de reembolso” explicou a situação para o jornalista reacionário que o entrevistava, usando a única linguagem que ele talvez fosse capaz de compreender:
— As melhores estimativas são de que, uma vez que se considere ativos que poderiam ser vendidos, a Islândia teria que pagar algo em torno de € 2,5 bilhões. Se dividir este número por 75 mil, que é o número de famílias que vivem na Islândia, acabará que cada família ficará devendo algo como € 33.500. Eles supõem que pagaremos isto até 2018, o que significa que cada família pagaria € 347 por mês durante oito anos, com base numa frágil afirmação de que eu, como cidadão da Islândia, deveria pagar pela falência de um banco privado que estava fazendo negócios em outro país. Ora, por favor!
É claro que esta vitória “econômica”, por assim dizer, do povo da Islândia contra uma potência imperialista está longe de ter um caráter eminentemente revolucionário, até porque foi planejada e alcançada por meio dos instrumentos previstos na legalidade burguesa, o que, na prática, significa que o processo de rechaço do “esquema de reembolso” foi uma iniciativa desde o início cercada de limitações. O próprio referendo, instrumento altamente susceptível de sofrer a influência viciosa das classes dominantes, poderia muito bem ter se transformado em um teatro farsesco. Esta constatação, entretanto, não invalida o fato de que da fria Islândia nos chegou a notícia de mais uma conquista popular alcançada com alguns dos conhecidos reagentes da centelha revolucionária: indignação, insubmissão e disposição para enfrentar os opressores.