Nota da Redação de AND: publicamos a terceira parte do artigo produzido com base nas discussões do ciclo de debates Questão agrária: 21 anos da heroica resistência de Corumbiara. O autor conclui aqui sua exposição – cujas partes I e II estão publicadas nas edições 178 e 179 de AND.
17 Esclarecer a distinção entre Previdência e Assistência e o fato de que os proventos dos camponeses são previdenciários, e não assistenciais, não é um problema teórico. É algo muito mais sério. O art. 201, § 2º da Constituição diz que “nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo”. Como isso se aplica apenas à Previdência, os interessados no desmantelamento da Seguridade Social adotam a seguinte estratégia, entre outras: deixa-se o art. 201, § 2º intacto, mas cria-se um consenso – começando, talvez, pelo meio acadêmico – de que os benefícios dos trabalhadores do campo são assistenciais, o que os excluiria do âmbito de incidência do dispositivo em questão e permitiria sua desequiparação do salário mínimo por lei ordinária, com maioria simples, sem precisar de emenda constitucional, cuja aprovação exige 3/5 da Câmara e mais 3/5 do Senado.
18 Dizer que as aposentadorias, pensões e auxílios dos camponeses são assistenciais é, então, um disparate e um insulto. Quando um trabalhador rural ou alguém de sua família solicita aposentadoria, pensão ou auxílio, não se pergunta quantos filhos tem, qual sua renda ou se está desempregado. A única coisa que se exige é a comprovação do trabalho. Como se exige comprovação do trabalho e não da contribuição, vêm com a história de que o camponês não contribui. É mentira, ele contribui sim, com um percentual do que ganha vendendo sua produção. Só que o responsável pela arrecadação e recolhimento disso é o comprador, em geral empresa. Por isso, o camponês não tem que provar a contribuição, só o fato gerador dela, que é o trabalho. A mesma coisa acontece com alguém que trabalhou como empregado e o patrão não repassou ao INSS a contribuição descontada do salário: a responsabilidade é do patrão, e nem por isso se questiona o cunho previdenciário das aposentadorias dos empregados urbanos.
19 Dizem também que os benefícios pagos no campo são pagos pelas “contribuições urbanas” ou “pelo governo”. Supor que os direitos previdenciários decorrentes do trabalho rural devam ser integralmente custeados por contribuições arrecadadas no campo contraria a ideia de pacto de gerações, alicerce dos sistemas previdenciários de repartição, pela qual os trabalhadores de hoje pagam os benefícios daqueles de quem, definitiva ou temporariamente, não se pode mais exigir trabalho.
E contraria a história do Brasil, que é de migração em massa. No censo de 1940, 80% da população brasileira vivia no campo e 20% na cidade; no de 1980, era o inverso. Não existe, hoje, camponês idoso que não tenha filhos trabalhando e contribuindo em áreas urbanas.
Além do mais, essa separação das receitas e despesas entre urbanas e rurais tem tanto cabimento quanto separar a arrecadação e a despesa previdenciárias entre homens e mulheres, ou entre casados e solteiros. As contribuições de pessoas solteiras e sem filhos custeiam benefícios como pensão por morte e salário-família; as contribuições dos homens ajudam a pagar o salário-maternidade, etc. E é correto que assim seja, pois o sistema previdenciário se baseia na solidariedade. Então, não há porque imaginar que contribuições arrecadadas na cidade não deveriam pagar proventos no campo. Essa é uma tese perniciosa porque tenta dar ao trabalhador urbano a impressão de que o camponês é o culpado pela miséria que o INSS paga a ele, trabalhador urbano. E não é.
20 O hiato entre a despesa previdenciária no campo e a arrecadação não pode ser encarado como um problema da contabilidade do INSS, sem que se leve em conta a realidade geral da economia. Ele é, antes de tudo, resultado da superexploração que vitima o camponês. Se os jovens são obrigados a migrar para a cidade, não haverá no campo braços que produzam o suficiente para custear as aposentadorias e pensões dos velhos que ficam. Se os preços dos produtos agrícolas, pagos ao pequeno produtor (que não têm nada a ver com o preço que se paga pela comida no supermercado, há aí toda uma cadeia de atravessadores) são irrisórios, irrisória será a arrecadação sobre sua venda – do mesmo modo, aliás, que, na cidade, a redução do emprego diminui a arrecadação sobre a folha de salários.
21 Mas o que fazer, então, com o déficit da Previdência? Pelo déficit em si, nem creio que seja preciso fazer nada. O sistema previdenciário – assim como o de educação, saúde, segurança ou cultura – não precisa ser superavitário, nem mesmo equilibrado. É um serviço público essencial e funcionará bem se cumprir sua finalidade de amparar os trabalhadores na velhice, viuvez, doença, maternidade, etc. E o déficit nem mesmo existe se contabilizadas corretamente as receitas e despesas da Seguridade Social. Há vários estudos consistentes que apontam isso, como os da Anfip e da professora Denise Gentil, da UFRJ. Não vou entrar em detalhes sobre isso porque discordo da própria premissa de que a Previdência deveria ter superávit.
22 É preciso, antes de tudo, falar do que não fazer. Obrigar o trabalhador do campo a contribuir nos moldes da cidade é inviável e absurdo. O assalariamento é modalidade de exploração do trabalho majoritária na cidade e minoritária no campo; a moderna agroindústria, que mais eliminar postos de trabalho do que gera, não mudou isso. O trabalhador em regime familiar e mesmo o safrista têm dinheiro na colheita, e só. Não dá pra obrigá-los a pagar carnê todo mês; aliás, mesmo na cidade, isso é discutível, imaginem no campo: 57% da população rural ocupada está na economia familiar; 21% são empregados permanentes (metade com registro, metade sem); 18% são empregados temporários (boias frias), quase todos sem carteira; os restantes 4% são empregadores. Teoricamente, os empregadores (4%) pagam carnê, os empregados com carteira (12%) têm desconto no contracheque. O resto ficaria fora, sem cobertura alguma.
23 O que deveria ser feito – e não por causa de um déficit previdenciário que não existe, mas de uma questão de equidade tributária – é adaptar as formas de arrecadação previdenciária à realidade da economia rural. Nós temos, hoje, uma situação em que os exportadores (monopólios agroindustriais e mesmo os latifundiários à moda antiga) – que não empregam quase ninguém, destroem o meio ambiente e lucram em dólar – não pagam ICMS nem IPI nem Cofins nem contribuição ao INSS sobre o faturamento (substitutiva da folha). E ainda têm drawback para insumos (vg, agrotóxicos) destinados à fabricação de exportáveis: se o sujeito vai exportar, não paga nada sobre o que importa para produzir o exportável.