“El problema agrario en América Latina “, gravura de Alberto Beltrán
8 Se a aposentadoria rural equiparada ao salário mínimo surgiu de um anseio elementar de justiça, seus efeitos se projetam muito além. Os R$ 1.760 que ela garante hoje a um casal de idosos no campo, além de ser a contrapartida pelo trabalho deles durante a vida, têm um efeito econômico de subsídio agrícola, impedindo que eles sejam obrigados a abandonar a terra. A renda previdenciária é muito importante na sustentação da agricultura camponesa, poupando os filhos do ônus financeiro do sustento dos pais idosos e deixando-lhes recursos livres para ter uma vida um pouco menos sacrificada e até para investir no aprimoramento de sua atividade agrícola. Neste quadro, a disputa em torno da Previdência rural expressa a contradição entre o campesinato e o latifúndio financeirizado ou agronegócio. Mas não só.
9 O sistema previdenciário é um fator essencial a um relativo equilíbrio campo-cidade. A industrialização brasileira – hoje em avançado estágio de reversão – foi financiada com recursos subtraídos à agricultura. Não aos latifundiários, muito menos aos monopólios agroindustriais, mas à pequena agricultura. Dizem que a extensão da Previdência ao campo é deficitária, que a receita rural não cobre a despesa. Por um lado, é ótimo que seja assim. Porque os proventos previdenciários dos camponeses são o primeiro mecanismo de transferência de recursos da cidade para o campo criado no Brasil após décadas de sangria. E os únicos que beneficiam quem, no campo, merece ser beneficiado. Depois se criaram outras coisas, como as isenções aos exportadores, mas essas só favorecem o latifúndio.
9 O sistema previdenciário é também um fator de equilíbrio regional e de fortalecimento do mercado interno e da atividade econômica em geral. A grande maioria dos municípios brasileiros não sobreviveria só com receitas próprias. Vivem de repasses federais. Pois bem: a Anfip faz anualmente um estudo que avalia as fontes dessas transferências e em mais de 2/3 dos municípios, o dinheiro federal que entra via folha de pagamento do INSS supera os repasses via Fundo de Participação dos Municípios (FPM) – sem contar que as aposentadorias vão direto para o bolso dos trabalhadores, enquanto a verba do FPM vai para a prefeitura e as oligarquias municipais decidem como gastar. Reverter a expansão da Previdência ao campo ocorrida no bojo da atual Constituição é quebrar esses municípios e até estados inteiros. No Maranhão, 65% dos benefícios previdenciários são rurais. Na Bahia, mais de 40%. Dos 30 milhões de benefícios pagos pelo INSS, 10 milhões (um terço) são de camponeses.
10 Mas quem e por que quer destruir isso? Para responder a essa pergunta, siga o dinheiro. O maior e mais direto inimigo dos direitos previdenciários é o sistema financeiro. Por que? Por dois motivos principais: a arrecadação e o gasto.
11 O governo federal arrecada R$ 300 a 400 bilhões por ano de contribuições previdenciárias. Se a Previdência pública deixasse de existir ou tivesse sua atuação reduzida, boa parte dos trabalhadores passaria a contribuir para fundos privados geridos por bancos e corretoras, que iam abocanhar esse dinheiro.
12 Além disso, as aposentadorias e outros benefícios previdenciários representam 21% do que o governo federal gastou em 2014, são a segunda maior despesa: a primeira é a dívida pública, com 45%. O sistema financeiro quer reduzir o gasto previdenciário para aumentar ainda mais o que recebe via dívida pública atrelada à taxa Selic. E tenta também resolver às custas dos aposentados sua contradição secundária com outros setores do bloco patronal (indústria, comércio) propondo liberar dinheiro da Previdência para incentivos, obras, etc., sem tocar nos 45% do orçamento que o sistema da dívida engole.
13 Secundariamente, frações do latifúndio (tradicional ou moderno) gostariam de avançar sobre a terra dos camponeses, e a Previdência atrapalha porque os ajuda a se manter nela. A relação do latifúndio com os direitos previdenciários dos camponeses, porém, é mais ambígua que a dos banqueiros. Nem sempre há um antagonismo frontal. Há os que gostariam de expulsar os pequenos agricultores para se apossar de suas terras ou de mantê-los numa dependência eterna, mas há também os que veem essa garantia de renda previdenciária ao trabalhador do campo como um fator de estabilidade social.
14 As oligarquias políticas municipais – muitas vezes, meras extensões do latifúndio, em outras algo mais que isso – também têm uma relação ambígua com os direitos previdenciários dos trabalhadores do campo. Os membros delas, muitas vezes, se colocam como intermediários entre os camponeses e esses direitos. Como o INSS tem uma burocracia infernal, os donos do poder nas pequenas localidades do interior, seus parentes e apaniguados dão rédea solta ao clientelismo e inclusive ganham dinheiro com isso como dirigentes de sindicatos rurais, advogados, procuradores previdenciários. Mas, apesar disso, muitos desses pequenos poderosos de cidades do interior não gostam de um sistema que dá ao camponês certa autonomia social (pelo menos depois que ele passa a receber a aposentadoria) e direitos exigíveis contra o Estado e talvez prefiram, em vez dele, outro completamente arbitrário, como o bolsa-família, que se baseia num cadastro de miseráveis do qual as prefeituras tiram e põem quem querem, quando querem.
15 Aí começa o que todos já ouviram. Primeiro, dizem que a Previdência rural é deficitária, que o trabalhador do campo quebra a Previdência porque não contribui e que por isso a aposentadoria dele nem seria uma aposentadoria de verdade, seria um benefício assistencial disfarçado e, portanto, deveria ser menor que o salário mínimo, ou deveriam separar a contabilidade rural e a urbana do INSS. Nada disso tem o menor sentido na lógica interna do sistema de Seguridade Social delineado na Constituição.
16 A Constituição separou claramente esses dois segmentos da Seguridade Social. A Previdência Social visa amparar os trabalhadores; a Assistência, os necessitados. Por maior que seja a penúria em que alguém se encontre e por mais importante que a renda de uma aposentadoria possa ser para salvá-lo da ruína, o direito a se aposentar decorre do trabalho, não da necessidade. Inversamente, por mais que um destinatário do bolsa-família possa ter trabalhado e inclusive pago o INSS, o benefício que ele recebe não se origina dessa circunstância, mas da situação de pobreza.