"A arte raramente se dá bem com uma causa". Assim, um respeitado crítico de cinema de um renomado jornal europeu sintetizou sua impressão sobre o filme A Caminho de Guantánamo, do diretor Michael Winter-bottom.
Realizado ao estilo do "docudrama" televisivo inglês — gênero cinematográfico que intercala depoimentos, imagens de arquivo e reconstituição dramatizada de fatos reais — o filme de Winter-bottom conta a história dos "três de Tipton": três jovens muçulmanos de nacionalidade inglesa que são confundidos com integrantes da Al Qaeda e acabam aprisionados na base militar ianque de Guantánamo. Durante dois anos os três rapazes sofrem toda espécie de torturas e humilhações nas mãos de soldados, oficiais e agentes da CIA1, especializados em interrogatórios tão desumanos quanto ilegais.
A narração da história dos jovens britânicos confundidos com guerrilheiros montanheses sofre as mesmas limitações que os protestos contra a pena de morte sob o argumento de que injeções letais matam inocentes. Ainda assim, a crítica cinematográfica pequeno-burguesa, os "políticos de bem" e os articulistas decentes que trabalham nos monopólios da imprensa, minimizaram, quase que em uníssono, as denúncias reafirmadas em A Caminho de Guantánamo: "Não passa de um panfleto".
O mesmo respeitado crítico que afirma a incompatibilidade entre arte e política escreveu que o júri do Festival de Berlim fez bem ao assistir o filme, tomar nota, e não se deixar comover.
Entre essas e outras, a elite bem pensante européia minimizou A Caminho de Guantánamo, da mesma forma que vem tentando atenuar as denúncias, investigações e evidências sobre as prisões clandestinas mantidas pelo USA em solo europeu, e sobre os vôos secretos feitos pela CIA, a caminho de Guantánamo, com escalas em alguns dos principais aeroportos da Europa2.
Em janeiro de 2006, após uma reportagem do Washington Post que revelava a existência do programa de prisões clandestinas — e depois de muitas denúncias de ONGs e de partidos que se encontram na oposição em diversos países — o Parlamento Europeu criou uma comissão temporária de inquérito sobre a "suposta utilização pela CIA de países europeus para transporte e detenção ilegal de pessoas".
A criação da comissão foi, ao mesmo tempo, uma resposta às pressões por uma atitude diferente do simples encobrimento e uma tentativa de frear as investigações: uma comissão temporária, como a que foi criada, tem poderes muito reduzidos frente a uma comissão de investigação, inviabilizada pela grande maioria dos eurodeputados, cúmplices dos crimes ianques sistematicamente praticados em todos os continentes.
Em julho, apesar das limitações deliberadamente impostas, a comissão produziu um relatório apresentando provas documentais de 1080 vôos da CIA que fizeram escala em aeroportos da Europa, entre 11 de setembro de 2001 e final de 2005.
Além da abertura dos aeroportos à criminalidade de Estado praticada pelo USA, a comissão apresentou indícios de que alguns países europeus autorizaram a manutenção de prisões clandestinas com bandeira ianque dentro de suas fronteiras.
Pior, muitos governos não apenas silenciaram-se, mas também colaboraram com até 50 casos de extraordinary rendition ("detenções extraordinárias") na Europa, ou seja, de sequestros de pessoas praticados em território europeu pelas forças especiais de espionagem e tortura do USA.
Como disse um dos membros da comissão, o deputado comunista italiano Giulieto Chiesa: "Sem que seus cidadãos soubessem, vários governos europeus agiram como colônias norte-americanas, ou como Estados-satélites".
1. Servilismo institucional
Após as justificativas criadas no 11 de setembro (não o do Chile, no golpe terrorista das classes reacionárias, que utilizou a quadrilha de Pinochet, sob o comando da CIA, em 1973, mas a farsa assassina de 2001, em Nova York e Washington), o governo ianque inventou novas categorias jurídicas — como "inimigos combatentes" (expressão de autoria do imperialismo ianque) — para negar aos prisioneiros da chamada "guerra contra o terror" (expressão também cunhada pelo imperialismo ianque), os direitos garantidos pelas convenções internacionais.
O falcão (fração das classes mais reacionárias do USA, produto do aparato militar industrial, que preconiza abertamente a matança de revolucionários e democratas) Bush- o falcão-galinha, como é conhecido pela oposição, por ter corrido da guerra no Vietnã — instituiu ainda os Tribunais Militares Extraordinários, onde a acusação não precisa ser sustentada com provas, é dispensada a presença de um advogado de defesa, os processos são secretos, se aceitam confissões sob tortura, e condena-se à morte sem direito a recurso.
Tony Blair há muito já demonstrou ter grandes afinidades com a máquina de guerra ianque. Mas a população européia agora toma conhecimento de que quase a totalidade de seus governos vem compactuando com as medidas de exceção impostas pelo USA para além de suas fronteiras.
Menos noticiado do que as hipócritas e escassas explicações que os governos europeus vêm apresentando é o fato de que esses mesmos governos simplesmente autorizaram por escrito o que vêm tentando negar e esconder.
Em Janeiro de 2003, em Atenas, aconteceu uma reunião conjunta do Conselho de Ministros da Justiça e de Assuntos Internos da União Européia, por um lado, e de representantes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Nesta reunião foi assinado um documento no qual os europeus autorizam o aumento das facilidades de tráfego para transporte de criminosos e "estrangeiros".
É a cumplicidade européia levando a cabo a idéia de um famoso editorial do jornal francês Le Monde, publicado logo após o ataque ao World Trade Center, cujo título anunciava Somos todos americanos (!?).
A conivência da Europa com o policiamento do mundo empreendido pelo USA é, por um lado, uma mistura de covardia, oportunismo e servilismo voluntário, de bom grado, sem a necessidade de intimidações ou amarrações jurídicas; por outro, é subserviência institucionalizada pelas obrigações européias no âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte OTAN (ou NATO) — obrigações renovadas, reafirmadas e re-assinadas com louvor nas comemorações do aniversário de 50 anos da OTAN , em Washington, no ano de 1999.
Entre os deveres europeus estão as autorizações de "sobrevôo para aviões militares ianques e países aliados operando contra o terrorismo" e a permissão "ao USA e seus aliados de aceder aos portos e aeroportos dos países da OTAN para operações de luta contra o terrorismo".
Obviamente, os acordos assinados à luz do dia não poderiam permitir que essas aterrissagens e decolagens levassem e trouxessem prisioneiros de maneira clandestina, sequestrados, à margem das leis internacionais, transitando entre uma e outra base militar onde a violação da dignidade humana é regra e rotina.
Mas violações de tratados e de pessoas parecem ser meros detalhes tanto para o USA quanto para os governos europeus.
O documento assinado em Atenas, em 2003, é uma prova documental da natureza antidemocrática desses governos, ainda que os meios de desinformação tentem convencer as pessoas de que se trata do exato contrário: as atitudes, providências e estratégias militares públicas ou secretas, dizem, estão aí para garantir a liberdade de um suposto mundo democrático.
São muitos os casos e inúmeras as comissões de investigação em diferentes países europeus, com variações de investigados e investigadores e de acordo com a cena politico-partidária do momento.
Antes do episódio do linchamento do presidente Saddam e de milhares de outras vítimas dos genocidas imperialistas durante toda a sua ação contra o Iraque, talvez o mais espetacular episódio de conivência entre a CIA e os serviços secretos europeus parece vir da Itália, onde o egípcio Abu Omar foi sequestrado no centro da cidade de Milão com a ajuda da "agência de inteligência" italiana, a SISMI3.
O caso foi investigado pelos procuradores italianos Armando Spataro e Ferdinando Enrico Pomaridi, que identificaram 13 agentes ianques envolvidos no sequestro de Omar. A CIA realocou esses agentes em missões fora do continente europeu e negou ceder qualquer tipo de informação para a procuradoria. O governo da Itália disse que se tratava de arroubos individuais e se apressou em prender dois agentes secretos dos seus quadros, "suspeitos de ajudar a CIA", jogando a responsabilidade no colo de homens bem treinados para sustentar a versão oficial, seja ela qual for.
Nos casos de prisões clandestinas, um dos países onde mais se acumulam evidências de acolhimento e acobertamento é a Polônia4.
Sobre esta questão, o governo dos irmãos Kaczynski tem sido questionado principalmente pelo deputado Mateusz Piskorski, que vem denunciando o papel polonês de "Cavalo de Tróia" do USA na Europa. Segundo Piskorski, o governo interpreta como politicamente incorreto na Polônia criticar intervenções militares ianques e a participação do país na ocupação do Iraque e do Afeganistão:
— O debate sobre os vôos da CIA precisa fazer com que os europeus tomem consciência de alguns perigos. A CIA não pode utilizar o território europeu para operações que violam os direitos humanos e a lei internacional. Infelizmente as autoridades de Varsóvia, bem ao estilo dos social-democratas, conduzem uma política externa não européia, sempre falando em "parceria estratégica com os Estados Unidos". Fala-se muito que estas relações com os Estados Unidos devem ser mais próximas do que as relações com nossos vizinhos europeus. O que é um absurdo! A guerra movida contra o Iraque começou quando o presidente Saddam Hussein lançou a idéia de criar um mercado de estoque de petróleo operando em Euro, a moeda comum européia. Se o dólar fosse substituído pelo Euro, os fundamentos da economia americana seriam profundamente debilitados. Penso que este foi um dos fatores decisivos para que Bush atacasse o Iraque. Por isso, alguns países europeus como França e Alemanha, opuseram-se a esta agressão. É preciso fazer parar essas intervenções e agressões em nome da hegemonia do dólar.
Em setembro, logo após uma solicitação ianque à OTAN, o governo polonês anunciou o envio de 100 jovens soldados do país para o Afeganistão, para reforçar o que as agências de notícias ainda insistem em chamar de "forças de paz", reproduzindo o vocabulário do marketing bélico imperialista.
Convenção de Genebra
A surpresa dos governos europeus com as revelações sobre os vôos da CIA subindo e descendo de seus aeroportos é tão falsa quanto a surpresa relativa às torturas e humilhações impostas aos passageiros transportados e reduz a Convenção de Genebra a 'um clichê vagamente lembrado dos filmes de guerra'.
Michael Manning foi interrogador no 142º Batalhão de Inteligência Militar da Guarda Nacional do exército ianque. Em 2004, as imagens de tortura de prisioneiros iraquianos em Abu Ghraib percorreram as televisões do mundo. Após a repercussão, Manning publicou no jornal El País, da Espanha, um artigo revelando que os abusos na prisão iraquiana estavam em perfeito acordo com uma política de manejo de prisioneiros praticada e ensinada já nas escolas militares ianques.
Segundo ele, essa é uma política baseada na ambiguidade, que fomenta a disseminação, no corpo do exército, da prática de abusos e humilhações, sem a necessidade de ordens diretas em casos específicos. Uma estratégia para isentar políticos e altos oficiais das responsabilidades pelas torturas, transferindo o ônus "para os soldados, que são menos poderosos, mais prescindíveis".
Para exemplificar o que chamou de política da ambiguidade, Michael Manning contou um pouco sobre a didática do curso básico de interrogatório do exército do USA:
— Era ensinado que um interrogatório devia começar com perguntas corteses e diretas. Podíamos oferecer recompensas em caso de cooperação, desde cigarros a asilo político. Mas, além disso, diziam que podíamos 'aplicar pressão', o que nunca foi definido formalmente, mas não era difícil decifrar o que significava. Para quem se beneficia da política da ambiguidade, o direito internacional é um apoio indispensável. Em seus recentes discursos no senado dos Estados Unidos, Rumsfeld (Donald Rumsfeld, secretário de Defesa) alegou que os militares de Abu Ghraib tinham instruções para respeitar a Convenção de Genebra. Ao longo do meu treinamento como interrogador, a advertência para cumprir a Convenção de Genebra acompanhava quase todas as discussões sobre 'aplicar pressão'. Mas, da mesma forma que não se definia o que era 'aplicar pressão', também não se definia o que é Convenção de Genebra. Nunca a estudamos. Não nos deram um exemplar para ler, e muito menos tivemos que passar por algum exame sobre seu conteúdo. Para muitos de nós — adolescentes, ou pouco mais — a Convenção de Genebra era, na melhor das hipóteses, um clichê vagamente lembrado dos filmes de guerra.
Conexão Guantánamo-Açores
Dos 1080 vôos clandestinos da CIA que receberam guarida em aeroportos europeus, 131 passaram por Portugal. Já foram confirmados pelo menos quatro que desceram e subiram do aeroporto de Santa Maria, no arquipélago dos Açores, segundo informações de membros da comissão temporária do Parlamento Europeu. Mas a conexão Guantánamo-Açores não passa de uma empresa de fachada e delação na calada da noite.
O semanário português Expresso, do dia 9 de setembro, trouxe uma entrevista com Abdurahman Khadir, 22 anos, filho de um fundador da Al Qaeda, morto um mês depois dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, durante a invasão do Afeganistão. Educado a contragosto para lutar ao lado do pai, Khadir foi capturado pelo exército ianque na mesma época, no mesmo lugar. Foi torturado na base aérea de Bagram, em Cabul, e depois em Guantánamo.
No dia 6 de novembro de 2003, Khadir foi embarcado em Guantánamo num vôo que pousou em Santa Maria, na madrugada do dia seguinte. Duas horas depois de descer nos Açores, o avião da empresa Ritchmor Aviation — segundo a comissão, uma empresa de fachada — decolou rumo à Bósnia, onde Khadir se infiltraria numa comunidade muçulmana em Sarajevo para identificar um integrante local da obscura Al Qaeda.
Depois de dois anos preso e torturado, a CIA o "convenceu" a se tornar um delator em troca da "liberdade".
No dia 6 de setembro, Bush anunciou a transferência para Guantánamo de 14 presos que estavam confinados em prisões secretas espalhadas pelo mundo. "Nunca foram torturados", disse, referindo-se aos que costuma chamar marqueteiramente de bad guys (maus garotos). As transferências foram anunciadas no instante em que se reconhecia publicamente a existência de prisões secretas em diversos países, obviamente sem dar nome aos bois.
As "boas novas" trazidas pelo governo ianque chegam a poucos meses das eleições legislativas no USA e logo depois que a Suprema Corte desse país considerou ilegais os Tribunais Militares Extraordinários criados por Bush.
O fato é que, até agora, ninguém exigiu saber de onde vão partir os vôos com as 14 transferências de prisioneiros, nem tampouco se vão fazer escala nos Açores ou em outros aeroportos europeus. Prova apenas que investigações, decisões judiciais e vésperas eleitorais determinam apenas pontuais rearranjos nas idas e vindas das rotinas de sequestros, violações, torturas e dobradinhas internacionais em nome do imperialismo sem limites.
Notas da Redação:
1. CIA — Central Intelligence Agency (Agência Central de Informação) do USA, organizada em 1947, durante a onda de pânico lançada pela burguesia ianque. Desde sua fundação a CIA habilitou-se como a maior e mais perigosa organização terrorista do mundo. Seus serviços se dirigem principalmente contra os partidos comunistas e democráticos, organizações econômicas do proletariado, do campesinato pobre, contra os governos progressistas e revolucionários, em que país estiverem. A CIA é responsável por centenas de golpes de Estado, assassinatos de presidentes, ministros, de quadros revolucionários etc. Hoje, a CIA dirige as corporações monopolistas da imprensa burguesa de uma maneira geral, exercendo a contra propaganda e a desinformação massiva. Ela se infiltra no aparelho de Estado (a começar pelo exército e a polícia) e ocupa postos chaves no sistema de governo, nas federações (patronais e laborais), grandes empresas privadas, universidades, órgãos públicos etc., onde executa provocações diversas, entre sabotagens, torturas, assassinatos e toda a sorte de terror — nos mais diferentes países Juntamente com outra organização terrorista ianque, o Federal Bureau of Investigation (FBI), órgão do Ministério de Justiça do USA, a CIA mantém escritórios secretos nas colônias e semicolônais, dentre elas, o Brasil. Ambas organizações terroristas aliciam jovens e profissionais diversos, empresários e elementos da aristocracia operária, preparando-os no crime a seu serviço, de forma direta ou terceirizada. 2.Essas ações terroristas perpetradas pela CIA são de pleno conhecimento e cumplicidade dos principais governos dos países imperialistas da Europa, em nome da relação de vassalagem mantida entre eles e o imperialismo ianque, o qual se atribui cada vez mais o direito de ser o seu "estados unidos" de todo o Continente Americano… 3. SISMI — Servizio per le Informazioni e la Sicurezza Militare, é o serviço secreto militar italiano, ligado ao Departamento de Defesa da Itália, fundado em 1953 e reformulado na década de 70. Seu diretor atual é o general Niccolò Pollari, desde 2001. O SISMI se viu envolvido com o escândalo Telecon, de escuta telefônica, desde 1997 e que só veio à tona em 2005. 4. O sindicato contra-revolucionário e clerical Solidariedade, desde sua fundação tinha a incumbência de assumir o governo, tão logo retornasse o capitalismo no país, restauração promovida pelo revisionismo. O primeiro preposto no sistema de governo foi o megapelego Lech Walessa, uma espécie de Luiz Inácio polonês — desde janeiro de 1990. Walessa assume a Presidência em dezembro do mesmo ano. E a Polônia passou a ser governada pelo Vaticano.