Tem sempre tudo no trem que sai lá da Central
baralho, sorvete de coco, corda pro seu varal
tem canivete, benjamim
tem cotonete, amendoimSonho de Valsa e biscoito integral
tem sempre tudo no trem que sai lá da central
chiclete, picolé do China, guaraná natural
tem agulheiro, paliteiro
desodorante, brigadeiro
e um bom calmante quando a gente passa mal
e quem quiser pode comprar
o shop móvel é isso aí
é promoção desde a central a Japeri
e quem quiser pode comprar
um bom pedaço de cuscuz
e mastigar desde a Central a Santa Cruz
CD pirata de Frank Sinatra a Zeca Pagodinho
e até aquele veneno pra rato chamado chumbinho
bala de coco, pirulito
suco de frutas no palito
cuscuz, cocada, pasteizinhos de palmito
despertador, rádio de pilha
ventilador e sapatilha
até peruca é possível se encontrar
o pagamento é no cartão
vale transporte ou refeição
qualquer pessoa jamais fica sem comprar
Esses versos da música Shopping Móvel, de Luizinho e Claudinho do Cavaco, na voz de Zeca Pagodinho, até poderiam ser engraçados se não escondessem por trás de si o desemprego que está assolando o país. A ironia ferina da letra denuncia a situação de uma grande massa de profissionais arrastada constantemente ao desemprego. Profissionais que se tornaram, no vocabulário eunuco dos tecnocratas, “trabalhadores informais”, desamparados de todas as garantias trabalhistas, mas assegurados do direito de serem perseguidos pela repressão dos ladrões oficiais, e de receberem a qualificação de bandidos por parte da guarda municipal, com o aval do executivo e do judiciário.
Esse é o sistema massacrante, que chega a obrigar uma pessoa a se afastar da família para conseguir sobreviver
Pedro Lumumba
Pedro Lumumba, 44 anos, separado, pai de seis filhos, é um desses. Depois de trabalhar durante muitos anos com carteira assinada e baixos salários, seu desemprego foi consagrado e hoje vende refrigerantes, alicate de unha, pilhas e todo tipo de objetos úteis nos trens da Central do Brasil, no Rio de Janeiro. “Trabalho de domingo a domingo para poder sustentar a mim e meus filhos. Com o que ganho dá para sobreviver, que para viver mesmo não dá. Enquanto existir esse sistema imperialista norte-americano mandando no mundo — e isso continua a todo vapor com o governo do PT, que tem obedecido à cartilha do FMI — o povo continuará na miséria, e uma pessoa de boa índole, que não consegue colocar uma arma na mão e sair roubando, é forçada a virar camelô”, diz.
Vendedor no trem
Segundo ele, para poder trabalhar no trem, o ambulante, geralmente entra com a mercadoria escondida numa bolsa e só começa anunciá-la depois que o trem sai da estação. “Na rua tem os guardas municipais ou ‘rapas’ — como, há décadas, são conhecidos entre os camelôs, e no trem tem os fiscais — tentando nos impedir de ganhar a vida honestamente. Quando as mercadorias são apreendidas, entramos em contato com a Federação dos Vendedores Ambulantes do Estado do Rio de Janeiro e vamos ao depósito da prefeitura para tentar reavê-las. Uma coisa importante e que muitos camelôs não sabem, é que nós temos que pedir o auto de apreensão na hora em que ela ocorre, para que possamos reaver as mercadorias depois. Como muitos não pedem, elas são desviadas, e não são encontradas no depósito”, explica.
Trabalhei de carteira assinada, mas a firma faliu e me deixou desempregado
Alessandro Gomes da Silva
Pedro mora no bairro da Saúde, região portuária do Rio, com cinco dos seus seis filhos: 18, 16, 14, 11, 8 e 6 anos de idade; somente a filha mais velha mora com a mãe, em Niterói. Apesar do aperto, conseguiu dividir sua casa em duas partes: numa ele mora, na outra residem as mercadorias de companheiros de trabalho que vivem na periferia do Rio e cidades dormitórios. “Duas colegas camelôs que guardam suas mercadorias comigo, por exemplo, moram na baixada fluminense e não têm dinheiro para retornarem para suas casas diariamente. Elas recorrem ao hotel popular, com diária de um real, no Centro. Ambas têm filhos e não podem estar com eles. Esse é o sistema massacrante, que chega a obrigar uma pessoa a se afastar da família para conseguir sobreviver”, constata Pedro.
“Para mim, não será um partido como o PT, PDT, que resolverá o problema, porque estão todos comprometidos com o imperialismo, mas a mudança do sistema. Sou a favor de uma sociedade socialista, onde todos tenham oportunidades de trabalhar e viver. Acredito que para isso teremos que lutar de forma bem organizada”, acrescenta.
Alessandro Gomes da Silva, 24 anos, solteiro, morador de Jacarepaguá, bairro do Rio, é outro exemplo. Para vencer a fome causada pelo desemprego, há dois anos vende balas em ônibus da cidade. “Trabalhei de carteira assinada, mas a firma faliu e me deixou desempregado. A vida de camelô de ônibus é dura, corremos menos risco de perder as mercadorias, porque não é conveniente para rapas nos atacar ali. Também os fiscais preferem deixar passar, mas muitos motoristas não abrem as portas para nós. É um massacre”, desabafa.
Paulo Gomes também é um desempregado que ganha a vida como camelô. Pernambucano, morando em Madureira, subúrbio do Rio, separado e pai de três filhos, vende todo tipo de objeto, como tesoura de unha, pilhas, brinquedos, utensílios de cozinha e roupas, em uma calçada da Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio: “trabalhei de carteira assinada por dezesseis anos, mas o dinheiro não dava para sustentar minha família e quando saía do trabalho, às 5 da tarde, tinha que trabalhar como camelô até às 11 da noite. Depois fui mandado embora e virei camelô de vez. Já vendi muito bem, mas atualmente, com a quantidade de pessoas desempregadas que se torna camelô, aumentou a concorrência e as vendas caíram.”
Com a quantidade de pessoas desempregadas que se torna camelô, aumentou a concorrência e as vendas caíram
Paulo Gomes
Márcia Souza, separada, e seus dois filhos, sobrevivem com uma pensão mensal de 100 reais, que o ex-marido dá para os filhos e com o que ganha vendendo cafezinho, café com leite, chocolate quente e bolos — tudo feito por ela — na Central do Brasil. Morando em Piabetá, bairro de Magé, cidade dormitório do Rio, ela chega na Central por volta das 4:40 da madrugada e trabalha até as 11 da manhã, depois vai para casa cuidar que seus filhos e enviá-los para a escola.
“Trabalhei por sete anos como operadora de máquina em indústrias de plástico. Também trabalhei como empregada doméstica por cinco anos. Depois fiquei desemprega e a única opção foi a de vir para cá, ser camelô, e isso já vai para seis anos. O grande problema que tenho aqui é com o ‘rapa’, tendo muitas vezes que correr para não ficar sem a minha mercadoria. Inclusive, quando conseguem nos alcançar, além de roubar a nossa mercadoria, em alguns casos, nos espancam”, declara.
Ex-atriz vende refrigerantes para sobreviver
Entre os camelôs da região do Campo de Santana, centro do Rio, está Ellen de Jesus, ex-vedete e atriz de teatro, que hoje ganha a vida vendendo refrigerantes. Separada e mãe de dois filhos adolescentes, Hellen mora em Parada Angélica, Caxias. “Comecei minha carreira aos 18 anos de idade no Teatro Carlos Gomes, no centro do Rio, dançando ao lado de Nilsa Magalhães e Silva Filho. Cantava, dançava e contracenava. Depois fui para o Teatro Rival e trabalhei ao lado de Américo Leal e Álvaro Masulo. Por último trabalhei no Teatro Madureira. Em 1972, fui eleita Rainha da Folia do Carnaval do Rio, pela Secretaria de Turismo da cidade. Em 1973 viajei para Angola e lá fiquei por três anos, dançando e cantando, com uma companhia chamada Fantasia Brasileira. Voltei para o Brasil e fui trabalhar na boate Fugitivo, em Santos, SP, ao lado da ex-chacrete Rita Cadilac. Me casei com um grego que conheci em Santos, separei e depois fui morar com um paraense lá no Pará. Tive meus dois filhos, e como a relação não deu certo, voltei novamente para o Rio e não consegui mais trabalho. Foi quando percebi que não havia estudado e sendo assim, só me restou ganhar a vida como camelô”, relata Ellen.
Mas nem sempre é a falta de estudo que leva alguém a ser camelô e Manoel dos Santos é prova disso. Geólogo, formado pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) em 1973, com um currículo extenso e imponente, aos 54 anos de idade ganha seu sustento e de sua família vendendo pilhas, bananas, guarda-chuvas e outras coisas, nas calçadas de Copacabana.
Divorciado e pai de três filhos, Manoel passou por importantes empresas públicas e privadas, viajando a trabalho pelo mundo e aprendendo três idiomas, além do português: inglês, francês e espanhol. “Comecei minha vida profissional na Nucleobrás (Empresas Nucleares Brasileiras), onde fazia sondagens submarinas para construção de plataformas. Depois, trabalhando na empresa Geotécnica do Brasil, fui para Moçambique, na África, fazer barragens para lavoura”, lembra.
Mais tarde foi contratado pela empresa Sandel Mineração, deslocado para Serra Leoa, África, a fim de fazer pesquisas de diamantes. De volta ao Brasil, em meados da década de 80, pela mesma empresa foi pesquisar diamantes na Bahia e em Diamantina, MG. Nesta mesma época, conta que montou, em parceria com a Sandel, uma pequena empresa de pesquisa de diamantes. Em 1990, também pela Sandel, foi para Perth, Austrália, fazer pesquisa de ouro.
De geólogo a camelô
Em 1994 voltou para Diamantina e acabou não resistindo às consequências que o Plano Real causou na pequena empresa faliu. “Em 1996 voltei para o Rio e passei a fazer alguns trabalhos e projetos por conta própria. Em 1997/98, fui para o sertão pernambucano, pela Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), fazer barragens subterrâneas para captação de águas. Mas perdi o emprego e o projeto simplesmente foi jogado fora quando mudou o governador”, conta.
Como geólogo, vejo que não existem chances para mim, porque o mercado está em decadência há vinte anos e o governo não investe em pesquisa mineral
Manoel dos Santos
Aborrecido e decepcionado com o sistema, principalmente, pelo fato de não terem aproveitado, simplesmente por questões políticas, um trabalho minucioso que começou. Há cinco anos Manoel voltou para o Rio e, sem emprego, passou a trabalhar como camelô. O geólogo desempregado afirma que o grande problema do camelô é realmente com a guarda municipal e que sua perspectiva para o futuro como profissional especializado é zero. “O ‘rapa’ não tem horário para atacar, é a verdadeira repressão contra os camelôs. Como geólogo, vejo que não existem chances para mim, porque o mercado está em decadência há vinte anos e o governo não investe em pesquisa mineral. Hoje nós vemos que muitas pessoas estão optando por fazer mestrado, com o benefício de alguma bolsa, simplesmente por não encontrarem emprego”, desabafa.
O desemprego
O desemprego atinge toda uma família e a obriga optar pelo mercado informal. Robson e Lúcia Corrêa são exemplos disso. O casal trabalha como camelô nas barracas oficiais da Central do Brasil, que foram oferecidas pela prefeitura, segundo os barraqueiros, por 400 reais, e gozam de algumas regalias; entre elas a de neutralizar os ataques do rapa. “A nossa é alugada, porque não temos condição de comprar. Hoje, aqueles que já compraram o direito só vendem por três ou quatro mil reais, e não existem novas ofertas da prefeitura”, diz Lúcia acrescentando que paga 60 reais por semana para o dono da barraca, 1,50 por dia para o vigia do dia e 10 reais por semana para o vigia da noite, e mais 10 reais para a Associação dos Barraqueiros da Central.
Lúcia já trabalhou, de carteira assinada em indústria, em loja de confecção, consultório dentário e comércio, enquanto Robson já foi açougueiro e pedreiro. Quando se conheceram, os dois estavam desempregados e ele trabalhava como camelô. Logo, a convidou para trabalhem juntos e a parceria deu certo. Ela vende bijuterias e ele conserta e vende relógios. “O que ganhamos dá para sobreviver. Não temos filhos e isso ajuda. Tenho a vantagem de conseguir pagar a minha contribuição de autônoma para um dia poder me aposentar, mas sei que muitos não estão conseguindo nem fazer isso”, conta.