Tramitando desde março do ano passado na Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 233 (reforma tributária) teve sua aprovação elencada na nova versão do Plano Diretor do Mercado de Capitais (PDMC 2008) como uma das cinco prioridades de seu comitê executivo.
É fácil entender por que. Embora o documento recomende "alguns aperfeiçoamentos" na PEC 233, ela realiza as duas grandes aspirações dos segmentos — notadamente o financeiro — econômicos representados no PDMC: amplia os privilégios fiscais da especulação e da usura e mina os alicerces do já precário sistema brasileiro de Seguridade Social.
Legalizando o roubo
A PEC 233 começa por legalizar um roubo que já existe. A previsão constitucional — na prática, jamais respeitada — de que a Saúde, a Previdência e a Assistência Social tenham um orçamento próprio deixa de existir. As contribuições hoje pagas pelas empresas sobre o faturamento (Cofins) e lucro líquido (CSLL), hoje fontes de recursos desse orçamento hipotético, são extintas.
Ao mesmo tempo, a desvinculação (eufemismo para desvio) de recursos destinados à Seguridade Social tem seu teto constitucional alterado dos atuais 20% para 36%.
A maior ameaça à Seguridade Social, no entanto, não está nessas medidas, mas nas alterações que a PEC 233 introduz na correlação de forças hoje existente na questão previdenciária.
Tarefa pendente
Das medidas prescritas pelo capital transnacional monopolista ao Brasil a partir de 1994, apenas uma não se efetivou: o desmanche e privatização da Previdência. Dos países latino-americanos assolados pelo saque dos monopólios transnacionais na década de 90, apenas um não entregou completamente sua previdência: o Brasil.
Embora tenha jogado na penúria — mediante sucessivas medidas de precarização de sua cobertura nos períodos FHC e Lula — aqueles que ela deveria amparar, o sistema financeiro internacional não conseguiu destruir suas linhas mestras (como a equiparação do piso ao salário mínimo) nem assumir diretamente a gestão de seus recursos. De maneira surpreendente, o Congresso rejeitou seguidas vezes essa pretensão.
Por que?
A galinha dos ovos de ouro
Parte da explicação reside no medo da ira popular. A Seguridade Social foi o âmbito no qual se deram as únicas conquistas populares efetivas da Constituição de 88 e a população que tão arduamente lutara por elas durante décadas não estava disposta a perdê-las no preciso momento em que ela se tornava mais vital por força dos processos de precarização do trabalho que passavam a ser praticados em larga escala, aumentando o número de desempregados e doentes.
Esse, porém, não foi o único fator que impediu a oligarquia financeira de se apossar da Previdência.
A economia brasileira — principalmente nos pequenos municípios e nas áreas rurais — é tão dependente dos aposentados e pensionistas que unidades da federação e setores econômicos inteiros quebrariam se sua renda sofresse uma redução drástica. Levantamentos da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) mostram que os pagamentos do INSS são a principal fonte de recursos federais em dois terços dos municípios brasileiros.
Para prefeituras, governos estaduais e para toda a indústria e o comércio voltados ao mercado interno (o que abrange expressivos segmentos da burguesia burocrática), portanto, a Previdência é uma galinha dos ovos de ouro que não interessa matar. E assim como ocorre para a população trabalhadora, a importância do dinheiro do INSS para esse comércio e essa indústria é também substancialmente ampliada em momentos de crise: se aumenta o número de desempregados e subempregados, o comércio passa a depender ainda mais dos aposentados e pensionistas e de sua renda — parca, mas certa e comprovável — para poder vender a crédito, por exemplo.
A quem interessa
O desmanche da Previdência, em resumo, só interessa a bancos, corretoras e fundos de pensão — exatamente os segmentos que lideram o PDMC. E, sozinhos, os dirigentes e lobistas do setor financeiro sabem que não têm força para impô-lo.
Por isso, adotam como estratégia jogar todo o custo da Previdência nos ombros dos trabalhadores e dos segmentos econômicos recalcitrantes a sua destruição (indústria e comércio voltados ao mercado interno), visando torná-la desproporcionalmente onerosa e, por consequência, pouco interessante para quem hoje a sustenta politicamente.
Esse é o aspecto mais perverso da PEC 233: além de deixar a Seguridade Social quase sem fontes próprias de recursos, ela vincula seu custeio a repasses de arrecadação de impostos sobre renda, produtos industrializados e operações com mercadorias e serviços. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, diz, na exposição de motivos da proposta, que não faz diferença financiar a Seguridade Social via CSLL ou via Imposto de Renda. Para as empresas que pagam ambos os tributos, talvez não faça mesmo. O que Mantega omite é que bolsas de valores e de mercadorias, fundos de pensão e associações de poupança e empréstimo — entidades hoje sujeitas à CSLL — são isentas de IR.
Transferindo a conta
Em boa parte, o preço desse favor seria pago pelo comércio e pela indústria voltados ao mercado interno, através do IPI e do imposto sobre operações com bens e serviços que a PEC 233 institui. O setor financeiro conseguiria, com isso, desonerar-se da CSLL e impor a industriais e comerciantes suas pretensões de desmontar a Previdência, cujo custo a tornaria desinteressante para eles.
No que se refere aos estados e municípios, adota-se a mesma estratégia para transformá-los de aliados em adversários da Seguridade Social: ao atrelar seu custeio à arrecadação do IPI (que destina-se também a esses entes federativos), a PEC 233 deduz o que for gasto com ela da base de cálculo dos repasses governos e prefeituras. Assim, entes federativos que hoje dependem dos pagamentos do INSS passariam a depender de sua redução.
Mas a conta seria paga, sobretudo, pela população trabalhadora. Vinculando-se o financiamento da Previdência ao IR, os trabalhadores com carteira assinada sujeitos a ele (ou seja, todos os que ganham mais de R$ 1.434,58 por mês) passariam a contribuir para a Seguridade Social duas vezes sobre a mesma base (os rendimentos de seu trabalho), uma vez que já descontam mensalmente para o INSS. No caso dos autônomos, a incidência seria tripla: além do IR e da contribuição ao INSS, eles teriam que pagar também o imposto sobre prestação de serviços.