Após o cerco à Previdência promovido durante o primeiro semestre, o setor financeiro e seus sócios parecem ter sido forçados a recuar. A repulsa às diretrizes-mestras do projeto de reforma defendido por eles (imposição de idade mínima para aposentadoria, desatrelamento do piso previdenciário ao salário mínimo, fim da aposentadoria rural, etc.) foi tão forte entre a população que impediu qualquer acordo em torno delas no âmbito do Fórum Nacional de Previdência Social.
Esse recuo, entretanto, vem acompanhado de medidas destinadas a servir de base a avanços posteriores. A primeira delas é a Proposta de Emenda Constitucional 50. Esta proposta vem recebendo grande destaque da imprensa monopolista pelo fato de prorrogar a CPMF até o fim de 2011. Este, porém, é seu aspecto secundário.
Muito mais importante é a prorrogação, por igual período, da chamada Desvinculação de Receitas da União (DRU), também prevista na PEC 50. Criada em 1993 com o nome de Fundo Social de Emergência e rebatizada Fundo de Estabilização Fiscal em 1995, a DRU passou a ser chamada por este nome em 1999. Este mecanismo altera o Artigo 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, permitindo a livre disposição, pelo governo, de 20% da arrecadação dos tributos vinculados, isto é, aqueles cuja existência se justifica por uma finalidade específica, como financiar a Seguridade Social (casos da Cofins, CSLL e CPMF). A DRU legaliza o desvio de um quinto da arrecadação desses tributos — usada, em regra, para pagar juros da dívida pública. Em 2005, o montante subtraído da Seguridade Social por meio deste instrumento atingiu 32 bilhões de reais. Na exposição de motivos da PEC 50, os ministérios da Fazenda e Planejamento chamam isto de "imprescindível enquanto instrumento de racionalização da gestão orçamentária".
Preparando o terreno
Nos argumentos usados para defender a prorrogação da DRU, o governo confessa o propósito de seguir desviando recursos da Seguridade. Esta é uma das maneiras de custear o PAC — destinado a atender a burguesia burocrática — sem tocar nos ganhos do sistema financeiro e dos rentistas.
Na exposição da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2008, enviada ao Congresso em abril deste ano, os ministérios da Fazenda e Planejamento garantiam que "o aumento do investimento público será feito sem prejuízo da responsabilidade fiscal". A vinculação das contribuições sociais ao custeio da Seguridade — escrevem os mesmos ministérios, na exposição de motivos da PEC 50 — "reduz significativamente o volume de recursos livres do orçamento, os quais são essenciais para a consecução dos projetos prioritários do governo, como obras de infra-estrutura, e para a constituição da poupança necessária à redução da dívida pública".
As justificativas apresentadas pelos ministérios da área econômica revelam também a intenção de substituir os direitos previdenciários conquistados em décadas de luta pela caridade precária e aviltante dos programas focalizados defendidos pelo Banco Mundial. Embora a DRU atinja em cheio as contribuições destinadas à Seguridade Social, a exposição de motivos da PEC 50 não diz uma palavra a respeito delas. No entanto, diz ser "importante ressaltar que a existência da DRU não tem impedido a expansão de programas sociais prioritários, a exemplo do bolsa-família."
Correlação alterada
Em setembro foi enviada ao Congresso a PEC 58, aumentando os repasses da União ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM) — medida, em si, meritória. É necessário olhar mais de perto, no entanto, os encaixes das engrenagens.
Existem dois grandes mecanismos de transferências de recursos da União às administrações municipais: o FPM e a Seguridade Social, especialmente a dos trabalhadores rurais. Sucessivos levantamentos feitos pela Anfip (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social) desde a década de 90 indicam que, em mais de dois terços dos municípios brasileiros, os repasses via pagamento de benefícios previdenciários e assistenciais do INSS são maiores que os do FPM. Esses dados são publicados anualmente no estudo A Previdência Social e a Economia dos Municípios.
Em outras palavras, são os benefícios da Seguridade Social que sustentam a economia dessas cidades e, se eles sofrerem alguma redução drástica, elas quebram — motivo pelo qual os comerciantes e chefes políticos do interior são, em geral, contrários a propostas que toquem em conquistas como a aposentadoria rural de um salário mínimo.
Para dobrar essa resistência, o setor financeiro acena com o aumento das transferências via FPM de modo a diminuir a dependência dos municípios do interior face às aposentadorias e pensões.
O que o setor financeiro está fazendo é inverter as condições econômicas que colocam as lideranças políticas e econômicas do interior momentaneamente ao lado da população trabalhadora nessa questão. Na exposição de motivos da PEC 58, seu signatário — o ministro do Fazenda, Guido Mantega — condiciona a viabilização do aumento dos repasses do FPM à prorrogação da DRU. Isto é: tenta quebrar a coesão de interesses entre os trabalhadores e esses segmentos, atraindo-os para sua esfera de influência — que é, aliás, onde eles via de regra situam-se em relação a outros assuntos.
Aposentadoria rural restringida
No dia 9 de outubro, foi promulgada a Medida Provisória 397. Por força do disposto em seu artigo 1º, "Fica revogada a Medida Provisória no 385, de 22 de agosto de 2007".
Esta, que não chegou a durar dois meses, limitava a dois anos o prazo dentro do qual os trabalhadores rurais autônomos que prestam serviço de natureza eventual sem relação de emprego com o produtor (volantes, safristas, bóias-frias) poderiam requerer a aposentadoria rural por idade comprovando apenas o trabalho no campo, sem necessidade de pagamento mensal em carnê. A revogação foi justificada pelo ministro da Previdência, Luiz Marinho, pelo fato de a MP 385 estar trancando a pauta da Câmara e supostamente impedindo a votação da CPMF e da DRU.
Roda da fortuna
O setor financeiro obteve, ainda, uma compensação adicional pela frustração de suas pretensões de desmanchar o Regime Geral de Previdência Social. No dia 06/09, foi remetido ao Congresso o projeto de lei 1992, que regulamenta a reforma previdenciária de 2003 — dirigida ao regime de aposentadorias e pensões dos servidores públicos estatutários.
O PL 1992 faz com o regime dos servidores — de forma menos maligna, por não tocar em garantias como o salário mínimo, mas nociva para os atingidos e também para os cofres do Estado — o que as entidades de classe do setor financeiro querem estender à esfera do INSS. O valor das aposentadorias pagas pelo Estado a seus funcionários — e, consequentemente, o valor do que estes descontam para o Estado — é restringido ao teto do INSS.
Para supostamente garantir o pagamento da diferença entre este e o salário do servidor ativo (ou, na verdade, para recolher a contribuição incidente sobre esta diferença), é criado um fundo de capitalização gerido por uma entidade denominada Funpresp (Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal). A ela, caberia a centralização dos recolhimentos e seu repasse a fundos e corretoras que atuam na bolsa de valores. Nos termos do artigo 15 do projeto, "a administração dos recursos garantidores, provisões e fundos dos planos de benefícios, resultantes das receitas previstas no art. 10 desta Lei deverá ser realizada mediante a contratação de instituições autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários — CVM para o exercício da administração de carteira de valores mobiliários" e a aplicação desses recursos "será feita exclusivamente por meio de fundos de investimento atrelados a índices de referência de mercado". Em outras palavras, o governo usará o dinheiro das contribuições dos servidores para capitalizar empresas com ações em bolsa, não sem antes transferí-lo a corretoras que receberão por isso polpudas comissões de intermediação.
Este é o propósito confessado do projeto. Em sua exposição de motivos, os ministros Guido Mantega, da Fazenda; Paulo Bernardo, do Planejamento; e Luiz Marinho, da Previdência, afirmam que "o porte e o elevado potencial de acumulação de recursos deste novo investidor institucional poderá estimular a demanda por ativos no mercado financeiro e de capitais, viabilizando o fortalecimento do mercado secundário de títulos e promovendo maior liquidez, requisito essencial para o desenvolvimento desses mercados."
Sem justiça
Simultaneamente, busca-se fechar à população trabalhadora uma das poucas portas de que ela dispunha para, bem ou mal, fazer frente aos desmandos do INSS: as ações judiciais. O Diário Oficial da União do dia 16/10 publicou o texto do "Acordo de Cooperação Técnica" celebrado entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho da Justiça Federal (CJF), a Advocacia Geral da União (AGU), o INSS e o Ministério da Previdência.
Trata-se de algo sem precedentes: um acordo entre a cúpula do Poder Judiciário e seu maior réu. O texto do convênio compõe-se de generalidades, algumas das quais perigosas, como pode-se entrever da passagem que se fala na "padronização" dos procedimentos judiciais relativos a assuntos previdenciários. O significado disto não é outro senão o de atar os juízes e tribunais ao posicionamento dos órgãos superiores. Isto fica mais patente quando se lê uma das atribuições assumidas pelo CNJ no acordo: "expedir orientações e recomendações aos diversos Órgãos do Poder Judiciário, visando a alcançar as metas traçadas pelo grupo técnico de que trata a Cláusula Segunda deste Acordo".
O pior aspecto do acordo, porém, talvez não esteja em seu texto. No mesmo dia 16, o jornal O Estado de São Paulo publicou a informação de que uma das medidas adotadas no âmbito do convênio seria proibir o trabalhador (ativo ou aposentado) de processar o INSS sem antes passar por todas as suas instâncias internas de deliberação.
É necessário ter cautela com informações publicadas pela imprensa monopolista, principalmente quando o assunto (Previdência) é o que mobiliza os maiores esforços dos interesses que ela representa. A notícia, no entanto, é digna de alarme. Se o Judiciário é lento e muitas vezes ineficaz, o conselho e as juntas de recursos da Previdência são muito mais vagarosos e ainda mais infensos a rever as decisões do INSS. Esta exigência teria o efeito de acrescentar pelo menos mais três ou quatro anos de duração (provavelmente mais) aos litígios entre os trabalhadores e a Previdência, que, na justiça federal, já não duram, quase nunca, menos de cinco anos.
Legislação trabalhista
Os ataques aos direitos dos trabalhadores transbordam o âmbito previdenciário e dirigem-se agora também à legislação trabalhista em sentido estrito. No dia 18 de outubro, o presidente da Abrat (Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas), Luiz Salvador, denunciou o teor do projeto de lei 1987/2007.
Este projeto, de autoria do deputado Candido Vacccarezza (PT-SP), inserese no contexto da proposta de consolidação de todas as leis brasileiras, tarefa para a qual a Câmara instalou, no dia 9 de outubro, um grupo de trabalho específico. No entanto, segundo Salvador, o que o PL 1.987 faz é simplesmente revogar toda a legislação trabalhista existente, substituindo-a por um "Código do Trabalho flexibilizado. A essência do projeto é a eliminação das garantias legais com que conta o trabalhador e a remissão do estabelecimento das condições de trabalho à "livre" negociação entre patrões e empregados.
O advogado denuncia ainda o prazo exíguo aberto pela Câmara para a manifestação dos setores sociais atingidos (30 dias), agravado pelo fato de que, por tratar-se, alegadamente, de consolidação de leis, não existir sequer a possibilidade de virem a ser apresentadas emendas ao projeto.