1. Brasil e Argentina
A propaganda oficial repete, sem cessar, que a economia brasileira avançou muito em 2004. Mas, ao olhar a escalada da pobreza e da violência à nossa volta percebemos a realidade que não aparece na TV e nas cifras manipuladas pelos arautos do sistema de poder. Um exame aprofundado dos próprios dados oficiais mostra que o Brasil, como um todo, e os assalariados, em especial, continuam tendo seus patrimônios liquidados e os meios de sobrevivência solapados.
Ao mesmo tempo, movida pelos bastiões da concentração financeira, de Nova York, Londres e outras praças, a mídia mundial e local faz sórdida campanha contra a Argentina, onde Kirchner tenta renegociar a dívida pública, cujo exemplo temem seja seguido no Brasil. Diminuir a extorsão de que se é vítima não constitui "calote", a palavra usada como slogan da campanha.
O governo argentino gera superavit primário para pagar juros, mas ele o faz de modo menos submisso aos banqueiros do que no Brasil. Os modestos recursos na infra-estrutura e na recuperação parcial de perdas salariais, que os governos federal e provinciais da Argentina têm empregado, são heresias para os porta-vozes da agiotagem.
Kirchner não fez muito, mas comparado ao zero absoluto do PT, o exemplo argentino é uma réstia de sol a espraiar luz sobre as trevas da malvadeza. Para os gerentes petistas, o País e seu povo não passam de abstrações, das quais não tomam o menor conhecimento. Tanto é assim, que, em 2004, o governo federal arrecadou tributos no valor de 27% do PIB (produto interno bruto) e investiu risíveis 0,2% do PIB, incluído o avião "aerolula". Destruir o País suscita profusos elogios dos centros financeiros mundiais.
2.1 Desemprego
Aqui, a suspeita taxa oficial de desemprego teve, em 2004, média igual à de 2002: variação igual a zero, típica de um governo zero, que discursa, enquanto se esmaga o povo. Na Argentina o desemprego diminuiu 36% (de 22% em 2002 para 14% em 2004), com a criação líquida de 2 milhões de empregos. Como a proporção das populações é 1 para 5, isso equivale a 10 milhões de empregos no Brasil. O que conseguiram aqui foi piorar a situação, embora isso parecesse impossível após 10 anos de deterioração. Segundo a otimista Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, o número de desempregados quase dobrou: de 4,4 milhões em 1993 para 8,5 milhões em 2003: mais 4,1 milhões de pessoas desempregadas. Não há dados da PNAD para 2004, mas outros indicadores mostram que o flagelo continua agravando-se.
As 12,7 milhões de vagas criadas entre 1993 e 2003 foram insuficientes para absorver a mão-de-obra. Dessas, só 5,5 milhões foram de assalariados com carteira assinada. 7,2 milhões foram contratados a título precário, sem direitos trabalhistas. Se ainda é pequena a desgraça, há mais: de cada dez novos postos de trabalho, só um paga acima de três salários mínimos (R$ 780).
2.2 A manipulação estatística
O Ministério do Trabalho anunciou novos 645 mil empregos formais líquidos em 2003, e 1,52 milhão em 2004, o que perfaz 2,17 milhões. Entretanto, 4 milhões, no mínimo, entraram na "população economicamente ativa" (PEA). Desses, portanto, os empregos com carteira assinada só absorveram pouco mais da metade.
Segundo a mesma fonte, de janeiro de 2003 a setembro de 2004, foram registrados, em ações de fiscalização, 1,06 milhões de trabalhadores que estavam na informalidade. Portanto, para que o desemprego não tivesse aumentado, teriam de ter sido criados quase três milhões de empregos informais líquidos (1,83 milhões, mais os 1,06 milhões de empregos informais substituídos por empregos com carteira assinada). Ora, a média de criação líquida de empregos informais de 1993 a 2003 foi de 520 mil por ano, sendo que 2003 ficou muito abaixo dessa média. Que mágica explica a taxa de desemprego do IBGE, que segundo este, teria diminuído em 2004? Com os dados oficiais tenta-se, mas não se consegue, encobrir a calamidade que é o desemprego no País.
Em 2000, já havia 44% do total de idosos do País respondendo por mais da metade do orçamento de suas famílias, pois tal é a deterioração do mercado de trabalho, que os mais jovens, em sua esmagadora maioria, não conseguem emprego ou o obtêm com paga insuficiente para sobreviver. As conseqüências são terríveis e não apenas as sociais. Com efeito, que futuro tem a economia de um país onde os jovens não se estão qualificando pela prática de uma profissão e onde, à medida que os idosos se aposentam ou morrem, se deteriora a qualidade dos recursos humanos?
3. Salários abaixo do chão
O rendimento médio dos salários correspondeu em 2004 à metade do seu valor em 1998, em preços constantes, atualizados pelo IGP-DI (índice geral de preços, disponibilidade interna, da Fundação Getúlio Vargas). Mesmo usando como corretor dos preços o IPCA (índice de preços ao consumidor, ampliado, do IBGE), a erosão da média salarial foi superior a 30%.
Mais: a participação dos salários no PIB afundou para 29,4% em 2004, acelerando seu declínio nos dois anos do PT. Ela vinha caindo há decênios, tendo-se reduzido para 45,4% em 1990 e para 36,1% em 2002.
Logo, o alardeado avanço do PIB, em 2004, de nada serviu aos assalariados. Ele decorre das elevações dos juros e dos tributos sobre bens e serviços, itens contados no PIB. (Vejam como é bruto mesmo esse indicador!) Provém também de lucros de bancos e grandes empresas e, ainda, do crescimento das exportações, favorecidas pela demanda no exterior e por preços menos ruins.
4. Índices de preços
Tentam justificar os horrores praticados contra a economia e a produção no país, dizendo serem as altas taxas de juros e o arrocho da política fiscal necessários para deter a inflação. Ora, os juros foram altíssimos em 2003 e 2004, e a inflação recrudesceu, com o IGP-DI subindo para 12,14% (7,7% em 2003). No modelo regido pelo FMI, o Brasil é permanentemente triturado, a pretexto de reduzir a inflação, e ela sempre volta a subir. O IPCA subiu 7,6% em 2004 e 9,3% em 2003. Há índices de reajustes de preços que favorecem as empresas poderosas, e há outros índices para os salários (os de "preços ao consumidor"). Pior: nem mesmo estes são aplicados à remuneração dos trabalhadores. Compare-se a variação acumulada do IGP-DI e do IPCA. Para o índice 100 em 1994, o primeiro atingiu 356,2 em 2004, enquanto o segundo ficou em 299.
O Índice de Preços por Atacado, que prenuncia elevações nos outros índices, elevou-se em 14,67% em 2004 (havia subido 6,26% em 2003). Esse índice tem peso importante no IGP -M, também da FGV, o qual é aplicado na correção de financiamento imobiliário, de serviços e tarifas públicas e privadas. O IGP-M subiu 12,41% em 2004.
Os Planos Cruzado, Collor, Real e outros foram impingidos ao Povo com a desculpa de que a desindexação era indispensável para evitar a crescente alta de preços. Esse foi o golpe que, a pretexto de desindexar a economia, só atingiu os salários. Estes perderam a pouca proteção de antes. Ao contrário, por meio de contratos do "governo" com as concessionárias foram indexadas as tarifas públicas dos serviços públicos indecentemente privatizados. Ademais, os preços dos bens e serviços dominados pelas grandes empresas sempre foram majorados à vontade, mediante o simples exercício do poder que elas têm sobre o mercado.
5. PIB, juros, investimento público
O suposto crescimento do PIB em 2004 é calculado em relação a um fundo de poço atingido em 2003, ano em que houve queda de 1,3%, em relação a 2002, a preços corrigidos pelo IPCA, e uma degringolada de 8,2%, a preços corrigidos pelo IGP-DI. Sem exportações, os declínios foram de 2,4% e 9,2%, respectivamente.
Ademais de superestimar o propalado êxito de 2004, O governo federal havia ocultado o desastre de 2003. Além disso, em 2004, o PIB é 4,7% menor que o de 2002, cujo índice já era baixo. Excluindo-se as exportações (e assim considerando só os bens produzidos para uso ou consumo no País) a queda foi de quase 8% (7,74%).
Enquanto isso, na Argentina, o crescimento acumulado nos dois anos foi 17,9%. Diante dos 4,7% negativos no Brasil, a diferença é de 22,6 pontos percentuais.
Atualizando o PIB de 2003, pelo IGP-DI, trimestre a trimestre, em comparação com os preços de 2004, o PIB desse ano cresceu menos de 4% em relação ao fundo de poço que foi 2003. Esses resultados são lastimáveis, mesmo acolhendo as embelezadas cifras de 2004, quando, ainda por cima, a economia foi irrigada de dinheiro pela campanha eleitoral e ajudada pela conjuntura externa favorável.
5.1 PIB uma coisa; produção e consumo, outra
Tudo que se refere à economia é objeto de enorme mistificação. Uma das maiores é a que se faz sobre o PIB. Associa-se, pela repetição, uma variação positiva do PIB a, por exemplo, crescimento da economia, crescimento do País etc. Mas o PIB não passa de um "agregado" de contas, que inclui não só os bens e serviços efetivamente produzidos, mas rendas artificiais, como que de proxenetas, obtidas por meio de abuso de poder e/ou fraude.
Entre outras, estão os juros e os impostos incidentes sobre produtos e serviços. Além disso, devem ser incluídos nessa categoria os lucros decorrentes de oligopólio e de otras posições de poder sobre os mercados. Esses ganhos, acrescidos ao patrimônio de empresas concentradoras e depois transferidos para o exterior, representam mais de 30% do PIB.
5.2 Impostos
Grande parte do "crescimento" da economia desaparece quando se verifica a elevação da carga tributária. Segundo a Receita Federal, o tributo de maior arrecadação, a saber, a COFINS, teve, a partir de maio de 2004, crescimento real da ordem de 40% em relação aos meses respectivos de 2003. De fato, a supressão da cumulatividade não foi, nem de longe, suficiente para compensar a elevação da alíquota de 3% para 7,6%. Outros tributos cujas arrecadações tiveram vultosos incrementos em 2004 são o Imposto de Importação e do IPI vinculado à importação.
A perversidade do sistema, agravada por FHC, e agora por Lula, é ilustrada pela contínua tendência de aumento da receita tributária, concomitante com o declínio da produção e da renda dos cidadãos. Com efeito, a arrecadação de tributos federais, além de injusta socialmente, não cessa de crescer, tendo, em 10 anos, subido de 16,8% para 27% do PIB (1993 a 2004). Não decresceu sequer em 2003, apesar do agudo declínio do PIB nesse ano.
5.3.1 Juros e o debilitamento da economia
Os juros pagos pelo setor público, em 2004, estão sendo estimados em R$ 182 bilhões, soma que excede a de 2003 (R$ 145 bilhões) em R$ 37 bilhões. Essa diferença, igual a 2,1% do PIB, ou seja, mais de 10 vezes o investimento federal, deve ser deduzida dos supostos 4% de crescimento do PIB em 2004 ou de seus 2%, descontadas as exportações.
Além disso, há os juros pagos pelo setor privado, tendo o presidente da FIESP, Sr. Skaf, lembrado que as pessoas físicas e jurídicas pagam R$ 120 bilhões ao ano em taxas de juros. Desse total, R$ 73 bilhões referem-se a spread bancário — diferença entre as taxas de captação e as dos juros cobrados nos empréstimos. Diz ele: "Se o spread brasileiro fosse igual à média dos países latino-americanos, nós pagaríamos R$ 16 bilhões e teríamos uma economia de R$ 57 bilhões, ou 3,5% do PIB. Esses recursos poderiam ser direcionados para investimentos e consumo".
Somando-se R$ 182 bilhões do setor público aos R$ 120 bilhões do privado, resultam R$ 302 bilhões de juros, i.e., 17% do PIB.
Em resumo, que resta do "crescimento do PIB", abatidos os crescimentos de: 1) juros excessivos; 2) impostos sobre bens e serviços; 3) exportações; 4) rendas abusivas?
5.3.2 Juros extorsivos: recorde mundial
Não satisfeito com tanta desgraça, o Executivo Federal, comandado pelo executivo do Banco do Boston, à frente do Banco Central, tem decretado sucessivos aumentos da taxa básica de juros, a da SELIC, aplicada aos títulos da dívida mobiliária interna.
Desde setembro de 2004, quando estava em 16% aa., essa taxa foi majorada em cinco ocasiões, chegando a 18,25% a.a., em janeiro de 2005. Antes da subida mais recente, de mais 0,5 pontos, a taxa básica de juros, descontada da inflação presumida para os 12 meses subseqüentes, já havia suplantado a da Turquia. Por obra de um governo dito de trabalhadores, o Brasil ocupa o 1º lugar mundial em matéria de taxa real de juros, ou, melhor, na agiotagem oficialmente patrocinada.
No modelo esposado por FHC/ Lula, a única coisa que melhora sempre é a pecúnia que o governo dá aos bancos. Os juros líquidos pagos pela União cresceram (juros nominais entre parêntesis) de R$ 86,1 bilhões em 2001 (105,6), para R$ 113,2 bilhões em 2002 (190,6), para R$ 145,2 bilhões em 2003, e a conta esperada para 2004 é da ordem de R$ 182 bilhões.
Ao mesmo tempo, o superavit primário teve a seguinte escalada em bilhões de reais. 2001: 43,7; 2002: 52,4; 2003: 66,2 e em 2004, de janeiro a setembro, chegou a R$ 78,9 bilhões.
A diferença entre os juros e o superavit nominal equivale ao deficit orçamentário (nominal). Ou seja: o Brasil poupa para pagar juros (superavit primário) e faz dívida para pagar juros, pois se trata de uma dívida decorrente do financiamento do deficit provocado pela conta dos juros.
5.4 Investimentos federais
Para uma idéia da total falta de compromisso do governo do Sr. Lula com o País e seu Povo, a União fez, em 2003, investimentos equivalentes a 0,4% do PIB, a cifra mais baixa de toda a História, abaixo mesmo da do pior ano da administração anterior (1999), quando fora de 0,7% do PIB. O governo do PT preferiu agradar o FMI com um superávit primário maior do que o já absurdo a que se comprometera com essa instituição procuradora dos banqueiros. Foram então destinados a investimentos só 16% dos pífios 2,5% do PIB, votados no Orçamento.
Essa foi uma contribuição significativa para o desastroso desempenho da economia em 2003. Já a suposta melhora em 2004, se existiu, não se deveu a qualquer ação do governo federal, uma vez que este investiu, de janeiro a novembro, o equivalente a 0,2% do PIB, ou seja, a metade da proporção de 2003. No 1º semestre de 2004 investiu 0,09% do PIB, i.e., 5,57% da previsão orçamentária de R$ 12,544 bilhões, igual a cerca de míseros 0,7% do PIB.
6. Dívida pública federal
A dívida mobiliária interna chegou, em novembro de 2004, a R$ 784,9 bilhões. Essa quantia, em termos reais, supera em 5,5% a de dezembro de 2002, a saber, R$ 747,8 bilhões, a preços de 2004, pelo IGP-DI (R$ 623,2 bilhões, a preços correntes). É 82,6% maior que a de dezembro de 1996, corrigida para R$ 432,1 bilhões (R$ 176,2 bilhões a preços correntes).
Em 2004 os números foram favorecidos pela apreciação do real em relação ao dólar. Mesmo assim, a dívida interna de novembro de 2004 supera, em termos reais, a de dezembro de 2002. Na comparação 2003/2004, a redução é quase nula (2,6%). Ademais, revertida a atual tendência do câmbio, haverá substancial aumento do valor em reais, tanto da dívida externa, como da interna.
As dívidas continuam crescendo, embora "reduzir as dívidas" seja a desculpa esfarrapada e repetida, há mais de 20 anos, segundo a qual os tributos têm de ser aumentados para pagar juros e amortizações. Mas as "autoridades" que fizeram os tributos chegar a quase 40% do PIB, são as mesmas que determinam os juros exorbitantes que o Brasil paga na dívida pública, sob outro falso e desgastado argumento, o de conter a inflação.
Em artigo subseqüente, tratarei do setor externo da economia.
Adriano Benayon, Doutor em Economia pela Universidae de Hamburgo, Alemanha. Autor de Globalização versus Desenvolvimento.
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