No dia 19 de março a coligação de forças imperialistas composta pelo USA, França, Grã-Bretanha, Itália e Canadá atacou a Líbia. Depois um período de grandes ensaios que escondiam as negociações entre as potências imperialistas sobre o quinhão de cada um no butim da Líbia, encenou-se na ONU, o grande balcão de negócios do imperialismo, a votação pela intervenção militar.
Bombardeios contra território líbio: potências em contenda pelo butim
A França, primeiro Estado a reconhecer a “oposição” a Kadafi como governo líbio, lançou o primeiro ataque. De passagem pelo Brasil, Obama falava de paz, democracia, igualdade entre grandes e pequenos para uma plateia de bajuladores, enquanto ordenava a suas tropas que desencadeassem também seus bombardeios.
É a maior operação militar conjunta das potências transatlânticas e de nações gerenciadas por seus títeres desde as invasões do Iraque e do Afeganistão. Os covardes bombardeios massivos sobre o território líbio são parte de suas manobras na tentativa de cavalgar as justas rebeliões dos últimos meses no norte da África e no Oriente Médio contra a opressão, a corrupção e a precarização generalizada das condições de vida e por uma democracia popular no chamado mundo árabe.
O fato dessas rebeliões carecerem de uma direção revolucionária consequente tem sido aproveitado por forças manejadas pela batuta do USA e da União Europeia que, servindo-se das velhas concertações, frustram seus objetivos, conduzindo o processo para mera reestruturação dos velhos Estados desses países. Tal é o caso da Tunísia e do Egito, como noticiamos na edição 75 de AND.
O primeiro míssil da operação “Odisséia no Horizonte” — nome com o qual a coalização imperialista batizou a invasão da Líbia, e que soa como continuação da operação “Tempestade no Deserto”, a da invasão do Iraque, que acaba de completar oito anos — foi disparado por um avião de guerra da França. Este primeiro ataque às forças de Muammar Kadafi, numa ofensiva abre-alas, contou com 20 caças Rafale e abrangeu uma área de 15 mil quilômetros quadrados em torno de Benghazi, a segunda maior cidade da Líbia e a maior da parte leste do país, onde estão instalados os maiores interesses petrolíferos imperialistas na Líbia.
Os primeiros bombardeios mataram mais de 40 pessoas, entre homens e mulheres, velhos e crianças, além de destruir a sede do governo em Trípoli. No dia 24 de março, um bairro residencial do leste de Trípoli foi atingido, deixando grande destruição e um número não divulgado de mortos e feridos. Outros ataques atingiram equipes de resgate que socorriam as vítimas de bombardeios anteriores. Cidades distantes de Trípoli também relataram ter sofrido bombardeios que provocaram importantes danos em alvos militares e civis. As próprias agências do monopólio internacional da comunicação noticiam que é incessante o barulho das sirenes de ambulâncias em Trípoli.
Veículo militar bombardeado por avião de guerra francês
O início dos bombardeios à Líbia foi o ápice de um rápido processo desencadeado pelo USA e pela União Europeia no âmbito da ONU para uma intervenção de emergência naquela nação, a fim de socorrer as forças retrógradas com as quais o imperialismo já havia se acertado para levar a cabo a salvação do capitalismo burocrático local que lhes serve, já que o regime de Kadafi havia sido sacudido pelo povo. Naquele momento, estas forças se encontravam na iminência de ser derrotadas pelo exército de Kadafi.
No rastro das revoltas árabes
Engana-se quem acredita que o levantamento popular na Líbia foi desde o início manejado pelo imperialismo. Assim como no Egito, Tunísia, Iêmen, etc, os líbios foram às ruas protestar contra o pioramento das condições de vida, o desemprego, a corrupção e particularmente contra a opressão do regime de Kadafi. Os protestos ocorreram não somente em Benghazi, mas também em Trípoli, onde foram mais facilmente aplastados pelo reacionário governo de Kadafi.
Alguns grupos revisionistas e trotskistas insistem em caracterizar os levantamentos como desde o início diretamente dirigidos pelo imperialismo, ou então que os rebeldes são monarquistas. Isso se deve a que algumas bandeiras com as cores da monarquia de Idris I foram alçadas nas manifestações. Mas ignoram que foram inúmeras as declarações populares de conteúdo antiimperialista, do tipo “Nem USA/sionismo nem Kadafi”. Nutrem ainda grande ilusão num falso caráter antiimperialista de seu governo.
Apostando em continuar nas boas graças do imperialismo, Kadafi passou a denunciar os levantamentos como coisa da Al Qaeda, a espera de declarações de apoio, principalmente dos ianques, devido aos serviços prestados no passado. Essa expectativa era justificada pela posição assumida há anos por Kadafi, de peão no tabuleiro de xadrez do imperialismo, como a disposição de ajudar na “guerra ao terror” de Bush, na expulsão de 30 mil palestinos em 1995 e na permissão de que transnacionais petroleiras como a francesa Total, a britânica British Petroleum e a ianque ExxonMobile explorem o principal recurso natural do país.
Míssil destroi edifício dentro de complexo de Kadafi em Trípoli
Tal situação se deve a que o governo Kadafi, nascido de uma revolução, se degenerou rapidamente numa tirania com o objetivo de impulsionar um capitalismo atrasado de tipo burocrático, atado e subjugado ao imperialismo, ao contrário de toda sua propaganda de socialista e de governo popular que até hoje seduz muita gente que acredita em uma frente com seu governo para derrotar o imperialismo.
Porém, o regime de Kadafi se enfraqueceu face aos levantes e começou a se despedaçar. Setores das classes dominantes que até então o apoiavam, temendo cair junto com ele, entraram em acordo com agentes imperialistas, principalmente franceses, e se declararam a liderança dos “rebeldes” sediados em Benghazi, se habilitando para o reconhecimento do imperialismo.
Potências não abrem mão do petróleo barato líbio
Nos dias anteriores à invasão estrangeira, Kadafi havia retomado várias cidades controladas pelas facções locais armadas e financiadas pelas potências, até as encurralar em Benghazi, cidade saudada pela contrapropaganda do monopólio internacional da comunicação como “bastião rebelde”. Esta expressão, imprecisa, foi adotada em meio aos esforços para escamotear o fato de que, após os justos protestos de fevereiro contra as precárias condições de vida das massas sob o regime autoritário e reacionário de Kadafi — o que é fruto da degeneração da revolução democrática de 1969 na Líbia (ver box) — o povo passou a ser usado pela liderança “rebelde” como bucha de canhão contra o “ditador”.
As potências decidiram desencadear a invasão da Líbia mesmo após o recuo estratégico do exército de Kadafi, que declarou cessar-fogo imediato na sequência da aprovação no dia 17 de março pelo Conselho de Segurança da ONU de uma resolução avalizando o ataque e estabelecendo uma zona de exclusão aérea sobre o território líbio a fim de socorrer as facções sitiadas, provendo-as de mais suprimentos e armas.
As razões para o ataque à Líbia foram falseadas por Obama, como é de praxe a liturgia do cargo. O chefe ianque, que estava passando em revista a semicolônia Brasil, quando ordenou que os primeiros mísseis fossem lançados sobre Trípoli e Benghazi, resumiu assim a versão atual da patranha de sempre usada para justificar as invasões imperialistas: “não podemos ficar parados quando um tirano diz ao seu povo que não haverá misericórdia”.
O próprio berreiro imperialista pela “ajuda humanitária” para “proteger a população civil” se desmente quando se observa mais de perto as articulações para a autorização ao ataque. A França, mais articulada com a dissidência do regime Kadafi, joga peso pela intervenção para derrubar Kadafi e colocar títeres no poder. O USA hesita, temendo perder o investimento passado para transformar Kadafi em seu peão, mas, vendo seu enfraquecimento, apoia a proposta, para não ficar fora da partilha da Líbia. O empenho pela aprovação da proposta de intervenção na ONU e participar dos ataques deve-se a que o USA precisa acumular posição na disputa para exigir parte maior do butim. Mas também nada que o impeça de mudar de posição e propor uma saída negociada com Kadafi, usando-o a seu favor para o mesmo fim.
Entretanto, não se pode subestimar a habilidade política de Kadafi, uma velha raposa que percebe bem as contradições interimperialistas e fará o jogo que lhe parecer melhor. Por isso, propõe sucessivamente negociações com os “rebeldes” (apoiados pela França, principalmente), se oferecendo como representante das outras potências (principalmente USA e Itália). Publicamente fará discurso antiimperialista, utilizando-se do argumento de defensor de um país agredido por forças estrangeiras, enquanto faz também acenos para a Rússia e China, como as declarações feitas de que doravante estes seriam os clientes preferenciais de seu petróleo. Para ele, a questão é isolar a França e para isso recorrerá a todo tipo de acordos secretos com o USA e a Itália.
Rufam os tambores da guerra
Antes da invasão, a França, potência à qual coube as “honras” dos primeiros bombardeios à Líbia, já havia feito acordos com as facções locais mais reacionárias que correram para se apresentar como as “lideranças rebeldes” do país, buscando se gabaritar para negociar com os monopólios. No dia 10 de março, a administração Nicolas Sarkozy adiantou-se para fazer da França a primeira potência a reconhecer o Conselho Nacional de Transição Interino (CNTR) como o governo legítimo da Líbia.
O reconhecimento de Paris foi conseguido por representantes da CNTR que estiveram na Europa desde o início de março tentando fechar acordos com o imperialismo europeu enquanto o povo líbio sofria nas ruas, e na pele, a brutalidade da repressão desencadeada por Kadafi. O “presidente” da CNTR é o ex-ministro da justiça Mustafá Abdel Jalil, que pulou do barco de Kadafi diretamente no barco da canalha que ora se oferece para gerenciar a reestruturação do velho Estado líbio. Poucos dias antes a “oposição” líbia que se apresentou como líder dos protestos nas ruas havia anunciado a criação de um conselho militar em Benghazi. A própria composição do que se chama de “oposição” líbia denota o fundo das contradições naquele país. A dissenção ocorreu principalmente entre as classes dominantes que dão a essência ao Estado e os primeiros protestos populares foram a senha para que setores insatisfeitos rompessem a unidade com Kadafi.
Foi o enfraquecimento ante as forças de Kadafi destas “lideranças rebeldes” dispostas a negociar com as potências da “comunidade internacional” que fez o imperialismo levar a cabo o ataque à Líbia pela coalização formada inicialmente pelo USA, França, Grã-Bretanha, Canadá e Itália. Poucas horas depois dos primeiros bombardeios por caças franceses, o Pentágono anunciou que já havia disparado mais de 110 mísseis contra o território líbio. Os Emirados Árabes Unidos e o Catar, enclaves ianques no Oriente Médio, foram chamados a contribuir com aviões de combate.
Kadafi prometeu uma guerra e disse que vai armar um milhão de pessoas contra as potências imperialistas. Mas a tendência aponta para negociações e Kadafi jogará certamente com as contradições entre as potências que lutam pelo controle do petróleo e da posição estratégica da Líbia no Mediterrâneo e na cabeça da África. Para o imperialismo Kadafi não é o problema, trata-se no final das contas, sim, de liquidar qualquer possibilidade de que uma força rebelde revolucionária assuma o poder na Líbia ou em parte dela e de resolver com quem ficará a parte do leão no butim do petróleo líbio. Por sua vez, Kadafi usará o discurso antiimperialista de combater a agressão estrangeira para disputar com as facções dissidentes as massas rebeladas e para tentar recuperar sua imagem diante das nações e povos oprimidos do mundo. No objetivo único, claro, de estar na mesa de negociação do imperialismo.
No domingo, 20 de março, a Rússia e a Liga Árabe acusaram a coalizão agressora de matar civis na Líbia. Rufam os tambores de um conflito de grandes proporções.
Cenários possíveis
Por tudo isso, vê-se que a situação na Líbia não é tão simples como os revisionistas e trotskistas querem fazer crer. Fazer uma aliança com Kadafi para derrotar a agressão imperialista para só então deslindar com ele é pura ingenuidade e seria terrivelmente desastroso para as massas que estão sob o fogo cruzado na Líbia.
A realização de uma frente entre as forças revolucionárias e Kadafi, contra o imperialismo, depende de condições que a atual situação na Líbia não reúne. Primeiro, porque o regime de Kadafi não é nenhum regime burguês-democrático ou popular, e sim mais uma peça no tabuleiro de xadrez do imperialismo. Não fosse assim, ele se disporia a fazer uma guerra de libertação. Porém, sua promessa de “armar um milhão de pessoas” para uma guerra contra o imperialismo até agora não foi colocada em prática, e provavelmente não será.
Situação bem diferente era a do Iraque sob Saddam Hussein, que era também um governo reacionário, que sempre golpeou impiedosamente seus opositores e que também durante longo tempo fez o jogo dos ianques. Mas depois que entrou em contradição com o USA e na medida em que a situação se agravava, Saddam tentou unir ao máximo a população com o discurso antiianque, apesar de ainda perseguir os opositores. Quando a segunda agressão ao Iraque se tornou iminente, conclamou à unidade nacional, libertou os presos políticos, abriu os depósitos de armas para a população e a convocou para uma guerra prolongada contra o invasor.
Já Kadafi dificilmente faria isso, uma vez que está enrascado com muitos compromissos com o imperialismo, não tem mais a base de massas que tinha antes e nem a que Saddam soube conformar. Seu discurso antiimperialista será extremamente limitado e incapaz de sensibilizar as massas, mesmo com toda tradição de luta do povo líbio contra invasores.
Resta então a Kadafi se apoiar na força armada que ainda é leal a ele para se sentar na mesa de negociação, posando de defensor da soberania do país, porém como um peão da partilha imperialista, principalmente a serviço do USA, ou secundariamente da Rússia e da China, que ainda não mostraram disposição neste conflito de ir além das intrigas.
Nessas condições, uma negociação, que interromperia os ataques imperialistas, favorecerá Kadafi e enfraquecerá a oposição, uma vez que lhe dá tempo para se posicionar como parte na disputa interimperialista, jogando contra a França, claro.
Nessa complexa situação os revolucionários devem seguir denunciando e repelindo o imperialismo, combatendo Kadafi e desmascarando os dirigentes da oposição como agentes do imperialismo, principalmente francês. Qualquer tática de aliança interna só poderá ser considerada a partir dos desdobramentos das negociações (se ocorrerem e resultarem em decisões e acordos).
De qualquer forma, a tendência principal é a saída negociada de Kadafi e a formação de um novo governo de composição entre as forças em disputa. Há ainda a possibilidade de, nessa negociação, ocorrer a balcanização — divisão — da Líbia, mas esse é o cenário menos provável. O primeiro desfecho levará à retomada da revolução democrática de novo tipo, rumo ao socialismo. O segundo a uma guerra de libertação e pela reunificação do país sob uma nova democracia, rumo ao socialismo.