“Deslocalização agrícola” é crime contra os povos

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“Deslocalização agrícola” é crime contra os povos

Só nos últimos dois anos cerca de 20 milhões de hectares de terras cultiváveis em países semicoloniais e semifeudais da Ásia e da África foram sorrateiramente "negociados" com países como China e Arábia Saudita.

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Chineses, sauditas e outros vêm comprando ou alugando pedaços imensos de territórios alheios, para prejuízo dos verdadeiros donos de todo este chão: os camponeses pobres, que assim são expostos pelos gerentes do entreguismo à formação de mega-latifúndios neocoloniais. O fenômeno não é novo, mas vem se acelerando por meio de arranjos espúrios entre os exportadores de capital em ascensão e as elites locais mais sanguessugas, que andam salivando ante as enormes perspectivas de corrupção advindas deste renovado interesse pelo patrimônio ora controlado pelos Estados carcomidos que estão sob seu comando. Trata-se da chamada "deslocalização agrícola", em um eufemismo para "rapinagem" que deve constranger até mesmo os profissionais da mentira que escrevem os discursos hipócritas dos demagogos de plantão, de Luiz Inácio a Obama.

O processo de acirramento desta corrida pelas terras aráveis de países como Sudão, Etiópia, Congo e Paquistão vem se desenvolvendo coincidentemente com a escalada dos preços dos produtos agrícolas, o que se observa também nos últimos dois anos, e em meio a alertas de cientistas e ONGs de que o mundo atravessa uma "crise alimentar" que pode ficar muito pior em um futuro bem próximo.

Com pirotecnias de números e projeções, desenham um cenário catastrófico para o futuro, como se hoje, no presente, e desde sempre no modo de produção capitalista, à divisão internacional do trabalho não correspondesse um abismo infame entre quem come demais e quem come de menos, com estimativas recentes dando conta de que atualmente um bilhão de pessoas vivem em estado permanente de fome, sendo a maioria delas constituída de camponeses. O que os apavora, na verdade, é a perspectiva de que o avanço cada vez mais predatório das monoculturas e a intensificação do processo de supressão da agricultura familiar (que geram esgotamento do solo e declínio da produção) resultem em que os alimentos comecem a faltar nas mesas acostumadas à fartura.

Os alertas desse tipo, por sua vez, vêm sendo emitidos com maior frequência paralelamente ao desenvolvimento da crise capitalista, valorizando as terras aráveis como um ativo estratégico para o capital financeiro semi-órfão dos lucros fáceis nos mercados de derivativos, o que reforça a tendência de especulação agrofinanceira por parte de agentes privados. Mas o que impressiona mesmo atualmente é a magnitude das ofensivas de "deslocalização agrícola" empreendidas diretamente (mas não sem a participação das empresas) por Estados antipopulares mais ou menos poderosos, porém de qualquer maneira mais fortes e mais ricos do que aqueles onde agora redobram o esmero para fincar no campo os seus dentes de vampiro.

Em um relatório intitulado "Desapropriados", publicado em outubro do ano passado, a organização espanhola Grain diz que os dois principais atores desta ofensiva, China e as monarquias petroleiras opressoras do Golfo Pérsico, encabeçam esta vertente da corrida neocolonial por razões distintas. Na China, o desenvolvimento industrial sobre bases capitalistas resultou em progressivo desaparecimento de terras agrícolas e agravou o problema do abastecimento de água. Face a isso, a opção dos dirigentes revisionistas de Pequim foi a de dar largada a um amplo processo de "deslocalização" da produção de arroz e outros produtos caros ao seu consumo interno, já prevendo o esgotamento da sua castigada terra no longo prazo.

Neocolonialismo chinês

Segundo o relatório, nos últimos anos a China fechou por volta de 30 acordos de "cooperação agrícola" para que empresas chinesas ganhassem acesso a imensos pedaços de terras aráveis de "nações amigas" da Ásia e da África. Em países como Filipinas, Cazaquistão e Moçambique, essas empresas adquirem ou formam vastos latifúndios por meio de negociatas feitas sob névoa com as elites vende-pátrias, passando a cultivar em terras de soberania roubada, além de arroz, soja, milho e cana-de-açúcar, com o objetivo de utilizar esta última cultura para fazer biocombustível. O arroz que cresce nessas terras é cultivado a partir de sementes de origem chinesa, por agricultores chineses e por gente da população local treinada para plantar e colher o grão da "maneira chinesa". Não obstante, no seio dos trabalhadores rurais vem crescendo a revolta com o fato de que as suas terras férteis vêm sendo repassadas à exploração estrangeira, e com os produtos do campo indo direto para fora das fronteiras dos seus países, sem matar a fome do seu povo.

Ao lado da China, também protagonizam as ofensivas de "deslocalização agrícola" a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e outras "petromonarquias". Com a maior parte dos seus respectivos territórios constituída de desertos, vão-se apropriando de terras agrícolas no exterior para darem conta de alimentar a imensa mão-de-obra estrangeira que trabalha nos seus megalomaníacos projetos imobiliários (nos Emirados Árabes, 80% da população é de trabalhadores imigrantes). Coréia do Sul, Japão e Egito são outros que cada vez mais lançam mão da grilagem internacional avalizada pelas semicolônias.

Sofrem com isso os povos do Sudão, Paquistão, Indonésia, Camboja, Laos, Tailândia, Vietnã, Etiópia e Uganda, onde um acerto entre o governo local e o governo egípcio colocou à disposição da estratégia agrícola do Cairo uma imensa área de 850 mil hectares, ou nada menos do que 2% do território ugandense. O Sudão se encontra particularmente retalhado em razão desta nova grande ofensiva sobre as terras do continente africano: 690 mil hectares de solo do povo pertencem agora à Coréia do Sul e outros 800 mil hectares estão repartidos entre os Emirados Árabes e o Egito. Se faltar comida no país produtor, paciência, porque o que for produzido sob este regime será impiedosamente exportado para de onde veio o dinheiro para plantar.

Em Camarões, os trabalhadores das fazendas compradas pela China recebem salários do equivalente a mais ou menos 100 reais por mês. A única coisa que estes trabalhadores recebem "em troca" é o direito de comprar arroz a um preço inferior ao cobrado no mercado. Foi a vantagem — chantagem, melhor dizendo – que os capatazes chineses decidiram oferecer em um país que sofre escassez de grãos apesar da boa qualidade da sua terra. A ofensiva chinesa de "deslocalização agrícola" chega aos países lesados sob um discurso mentiroso que prega mais ou menos o seguinte, com o vocabulário caro tanto às políticas de fome e morte quanto à lenga-lenga que lhe abre alas: "a exploração das oportunidades de investimentos no setor pode significar a capacidade e a experiência necessárias para desenvolver e estabilizar a situação alimentar".

Luiz Inácio foi à Arábia vender a pátria

Foi mais ou menos isso o que disse o diretor-executivo do Fundo de Desenvolvimento China-África (batizado com a mesma lógica do embuste que baliza as políticas que financia) quando sua delegação chegou à Libéria em abril do ano passado anunciando a intenção de investir bilhões de dólares na compra de terras e na agricultura extensiva no continente africano pelos próximos 50 anos. Como quem anuncia boas-novas: é assim que o entreguismo e o neocolonialismo comunicam às massas os contratos anti-povo que assinam entre si, para regozijo de ambos os lados das falcatruas dessa estirpe.

No Paquistão, o governo vende-pátria de Asif Ali Zardari está em negociações com "investidores estrangeiros" de pelo menos três países do Golfo Pérsico, com a China e com a Alemanha para o arrendamento de terras que pertencem ao patrimônio do povo paquistanês. Os dirigentes vêm tentando convencer o povo desnutrido de que todos vão ganhar com a abertura das porteiras à chamada "agricultura corporativa", como se a chegada de capital andarilho pudesse satisfazer as necessidades alimentares da população, e como se a rapinagem anfitriã e a forasteira não estivessem, na verdade, atrás dos espólios do entreguismo e de lucros fáceis, respectivamente. Com os planos indo adiante, os trabalhadores do Paquistão ficarão espremidos como refugiados entre a terra arrasada pelos bombardeios do imperialismo e a terra ocupada pelas monoculturas da "deslocalização agrícola".

Segundo informações do Fórum dos Agricultores Paquistaneses, até 25 mil aldeias serão removidas para dar passagem ao cultivo em massa de produtos como soja e sementes híbridas de girassol. A agricultura do Paquistão é centrada no trigo, mas apesar de o país produzir excedentes, o povo tem dificuldades de acesso ao produto em razão das estratégias de mercado dos latifundiários. Esta contradição foi um dos motes da campanha eleitoreira de Zardari, que vociferou contra seu antecessor, Pervez Musharraf, acusando-o de responsabilidade pela escassez de trigo no país. Vitoriosa na farsa eleitoral de março de 2008, a gerência Zardari vem acelerando o processo de concentração de terras, agora com especial ênfase na "deslocalização agrícola" e expulsão dos camponeses pobres do chão que lhes pertence.

Segundo informações presentes no relatório da Grain, o Banco Mundial e o Banco Europeu para Pesquisa e Desenvolvimento, entre outras instituições-modelo das políticas neocoloniais, estão ativamente assessorando governos títeres para que mudem suas leis, políticas e práticas de propriedade fundiária de maneira que os "investidores estrangeiros" encontrem maior facilidade e rentabilidade na hora de comprar ou alugar terras nas semicolônias.

Ainda de acordo com o relatório, funcionários do Banco Mundial disseram textualmente que mudar as leis sobre a propriedade da terra é um objetivo central do programa de 1,2 bilhão de dólares que o Bird inventou para "gerenciar a crise alimentar na África". Na verdade, trata-se de um programa de facilitação para a atuação do capital agrofinanceiro. O Banco Europeu para Pesquisa e Desenvolvimento, por sua vez, está mexendo os pauzinhos em seu quintal, com especial atenção para os países onde enxergam potenciais grandes exportadores de grãos, como Ucrânia, Romênia, Bulgária e Cazaquistão.

Quando esteve na Arábia Saudita, em maio, Luiz Inácio iniciou conversas diretamente com a monarquia para incluir o Brasil na chamada "Iniciativa do Rei Abdullah para o Investimento na Agricultura no Exterior". Mais de 4 milhões de hectares do solo da nossa pátria já foram repassados para pessoas ou empresas estrangeiras em troca de nada para o povo brasileiro. A gerência do PT tende a fazer com que cada vez mais pisemos aqui em terra estrangeira.

Desenha-se uma feroz concorrência

Em trechos do relatório "Desapropriados", da ONG internacional Grain [www.grain.org], se pode observar que além da especulação agrofinanceira e do plantio de monoculturas estrangeiras nas semicolônias, os países que se aventuram nesta nuance da corrida neocolonial por vezes avançam uns sobre os outros, como no caso do Japão se apoderando de grandes pedaços de terras na China. No fim, um exemplo de como os estrangeiros se apropriam de terras em nosso país.

"Cinco conglomerados empresariais dominam o mercado de alimentos e o agronegócio no Japão: Mitsubishi, Itochu, Mitsui, Marubeni y Sumitomo. Participam da compra, processamento, embarque, comercialização e vendas no varejo. Visam principalmente satisfazer as demandas do mercado interno japonês, mas como este mercado está envelhecendo e diminuindo, esses grupos buscam agora encontrar o crescimento almejado em outros lugares.

As empresas japonesas do setor alimentício estão se transportando para o exterior (a fim de agarrar novos mercados) e buscando atuar também na base do processo de produção. Marubeni e Mitsui, e em menor escala a Mitsubishi, querem se juntar aos principais comerciantes de grãos do mundo, objetivando chegar à altura da ADM [companhia do USA] e da [multinacional européia] Bunge. (Quanto à também estadunidense Cargill, eles reconhecem que ela está muito à frente). Estão comprando e construindo instalações e desenvolvendo enormes operações na Europa, no USA e na América Latina. Recentemente a Marubeni comprou oito silos de grãos e dois armazéns no USA por um valor de US$ 48 milhões. Dessa forma, ela pode passar à frente do resto do mercado e comprar a soja e o milho diretamente de produtores estadunidenses. Penetrar na China, onde a ADM, a Bunge e a Cargill não são tão fortes, é agora uma verdadeira prioridade estratégica para estas empresas.

Mas para as grandes companhias alimentícias do Japão já não é suficiente mexer apenas com depósitos e contêineres; atuar nas fases iniciais do processo produtivo é algo que passou a fazer parte de suas agendas. Segundo várias fontes, há empresas japonesas que já possuem 12 milhões de hectares de terras agrícolas no exterior para a produção de alimentos e de culturas forrageiras. Parte destas terras estão na China, onde em 2006 a Asahi, a Itochu e a Sumitomo começaram a alugar centenas de hectares de terras agrícolas para a produção de comida orgânica para os mercados chinês e coreano. Em 2007, a Asahi expandiu seu projeto inicial e criou o primeiro estabelecimento leiteiro do Japão na China. Um ano mais tarde, em setembro de 2008, a Asahi aproveitou a tragédia da melanina que alguns produtores acrescentaram ao leite para lançar seu primeiro produto deste tipo a um preço 50% superior.

As empresas japonesas também estão presentes no Brasil. No final de 2007, a Mitsui comprou 100 mil hectares de terras brasileiras — o equivalente a 2% da superfície japonesa cultivada — para a produção de soja através de sua participação na Multigrain S.A., empresa brasileira 40% da qual está agora nas mãos dos japoneses".

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