“Lutar por um pedaço de terra é crime?”

“Lutar por um pedaço de terra é crime?”

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O caso do ativista camponês Wenderson Francisco dos Santos, mais conhecido como "Ruço", foi acompanhado pelos leitores de A Nova Democracia, desde a sua prisão até a absolvição no Júri Popular em abril deste ano. Milhares de democratas, intelectuais, dirigentes sindicais, ativistas do movimento popular do Brasil e de vários outros países mobilizaram-se em uma grande campanha contra a criminalização do movimento camponês combativo e pela libertação de Wenderson.

Ele foi alvo de abjetas acusações, torturas e ameaças de morte, em processo político. Apoiado pelos seus companheiros, familiares e contando com uma ampla campanha de solidariedade, foi absolvido e solto.

Após a sua libertação, Ruço fez uma breve e marcante passagem pelo Rio de Janeiro. Nesta ocasião, participou de um debate com professores e estudantes na Universidade Federal Fluminense, mas antes de retornar à sua terra, tivemos a grande satisfação de o recebermos em nossa redação, quando pudemos conhecê-lo pessoalmente e recolher este seu vivo depoimento.

AND – Como foi morar em Rondônia?

— Nasci em Governador Valadares, Minas Gerais, em 1980. Lá a gente estava passando muita necessidade. Eu tinha 10 anos quando meu pai vendeu tudo o que tinha e achou que o melhor era ir para o campo. Naquela época, a propaganda do governo prometia um mundo novo em Rondônia, pensávamos que conseguiríamos um pedaço de chão um pouco maior. Mas o nosso dinheiro mal deu para chegar até lá com a família.

AND – Como se estabeleceram?

— Trabalhamos de meia nas terras de um latifundiário, pecuarista. Depois fomos morar na terra de um sitiante, 42 hectares, plantando de meia. Fomos mais tarde para Colina Verde, linha 659, 4 alqueires de café na meia, arroz, feijão, milho, melancia, amendoim… Quando a gente terminava de colher, tinha que dividir tudo com o sitiante. Restava muito pouco, então completávamos o trabalho com diárias a 6 cruzeiros por dia, isto em 1990.

Fomos cuidar de outra terra, de um outro sitiante. Mas dava para plantar só para nós, tirar o leite e empreitada: roçando e cuidando do gado, na mesma linha 659. Mas a lavoura não tinha bom preço e quem quisesse plantar tinha que pagar para ajudar a colher. Resultado: para nós, ficavam as despesas e o resto do trabalho investido na terra dos outros.

AND – O que fez para sobreviver?

— Saí de casa. Fui trabalhar de vaqueiro. Ganhava na época, 40 reais por mês. Tirava 100 litros de leite pela manhã, roçava e ainda tinha que olhar o gado dos outros. Nas raras folgas, eu ia para casa, visitar minha mãe, que chorava muito na minha ausência.

Também fui trabalhar na linha 605 onde tirava 250 litros de leite e ganhava um salário mínimo. Depois, na fazenda de um vereador na região de Jaru, onde pagavam dois salários mínimos para retirar 280 litros de leite diariamente.

Ruço recorda que certo dia foi visitar o pai, que já morava na linha 659, trabalhando de diária na Colina Verde. Ele havia conhecido umas pessoas que sabiam de uma terra que estava sendo distribuída. Era no Município de Ouro Preto.

— Ele foi para lá e pediu para que eu ficasse em casa. Eu disse que ficaria mais 8 meses onde estava e mandaria dinheiro para lá, até que eu pudesse sair e viesse para junto deles. Depois de 8 meses fui embora para casa, cuidar do café e das outras plantações e mais diária e meia para manter a família. Nisso minha irmã e meus irmãos caçulas me ajudavam na roça e nas empreitadas. A busca de meu pai por um pedaço de terra não teve sucesso. Ele voltou muito abatido, achando que nunca ia conseguir um pedaço de terra para criar a família com dignidade…

Solidão na mata

Ruço lembra que surgiu na região de Teobroma um assentamento com o nome de Primavera. Seu pai foi convidado por um amigo para entrar na terra. Lá ele ficou um ano e nove meses, debaixo de lona.

— Às vezes — recorda — minha mãe ia lá visitá-lo, outras, ele vinha em casa. Com muita dificuldade conseguiu 10 alqueires em Teobroma, que o INCRA cortou e entregou umas notas dos marcos fundiários e da frente. Ele roçou imediatamente 4 alqueires e a gente fez um barraco e fomos para lá, todos, felizes por ter conseguido um pedaço de terra.

Era muita dificuldade, observa Ruço, destacando, porém:

— Mesmo assim, via a felicidade de meu pai diante da possibilidade de viver honestamente. Não tinha estrada, se perdesse um ônibus, só andando no leiteiro ou carona com o madeireiro. Conseguiram estrada, uma agrovila, associação, recursos para fazer uma casa, financiamento (obrigatório) de café, cacau, cupuaçu e mal deu para pagar mudas, equipamentos etc.

Acrescenta então:

— Nunca tivemos condições de estudar. Saímos muito cedo da escola para ajudar meu pai. Os mais velhos tem a 6ª Série. Ele sempre dizia que o melhor é sempre trabalhar e não dever nada para ninguém, ter dignidade. Começou a reclamar de dores no coração, mas não tinha condições de se tratar. Começou a ficar muito doente, tomando muito remédio, nem deixava transparecer a dor que sentia. Trabalhava muito.

Recorda que surgiu um novo acampamento na região de Cujubim, chamado Sol Nascente.

AND – Aproveitaram a oportunidade?

— Chegamos à conclusão de que ele podia vender a terra para se tratar que eu ia lutar no Cujubim, por outro pedaço de terra.

Fui para o acampamento e conseguimos demarcar 20 alqueires para mim e eu rocei 6 alqueires: eu, meu pai, minha família e mais uns companheiros que estavam trabalhando de diária por lá. Pegamos mais 3 alqueires da área para derrubar e roçar para um senhor chamado Coutinho, que estava de malária e teve de empreitar. Nós então roçamos para ele.

Falsa acusação

Ruço conta que, nessa ocasião, seu pai ficou muito doente de malária e pediu-lhe para encontrar Coutinho, receber o dinheiro e pagar os companheiros que tinham roçado com eles, levando-lhe o restante, pois estava internado na região de Theobroma:

— Quando desci em Ji-paraná, peguei o dinheiro e trouxe para ele. Minha mãe estava ajeitando as coisas para mudar. Voltei para Jaru, numa hospedaria de camponeses, com os meus registros, minhas fotos, porque eu iria fazer a carteira de identidade na delegacia do Jaru. O dinheiro que eu peguei não era o total. Ficou um restante que ele iria me pagar depois.

Ruço recorda que, quando voltou para pegar o restante em Ji-paraná, os policiais tinham invadido a hospedaria:

— Tinham levado todos os meus documentos sem que eu soubesse o que estava acontecendo, além de dinheiro e documentos de outros camponeses. Quando ia descendo na rua, tinha um pessoal se manifestando pelas pessoas que tinham prendido, acusando eles de terem matado um jagunço. Eu passei para ver. A polícia me chamou para "acompanhar" eles até a delegacia. Lá me disseram que eu estava sendo acusado de um homicídio. Respondi que nunca tinha matado ninguém, nem tinha roubado nada de ninguém. Meu pai tinha me ensinado a trabalhar e ganhar a vida sem dever a ninguém. O policial dizia nomes que eu nunca ouvi na minha vida e que se eu reconhecesse alguns nomes, eu poderia ir embora. Mas como eu nem sabia de nada, era acampado como qualquer um outro que luta para ter um pedaço de terra, eles me levaram para a cadeia de Jaru. Ali fiquei dois anos preso, com consciência limpa e tudo.

Ruço jamais esquecerá a reação do povo:

— Quem me conhecia, não achou justa a minha prisão e foram para frente do presídio pedindo que me soltassem, que minha mãe necessitava de mim, meu pai estava muito doente. Transferiram-me para Ouro Preto, sendo que a juíza dizia que os manifestantes iriam invadir a cadeia para me soltar.

AND – O que aconteceu após esse movimento?

— Fiquei ali cinco dias e fui novamente levado para a cadeia. Nesse tempo, um monte de jagunço foi preso e não ficaram nem dois meses na cadeia. Eles me ameaçavam todos os dias. Meu pai foi lá duas vezes.

Então tive a notícia de que ele havia falecido. Só pude ir ao enterro cercado por muitos policiais e só pude ficar lá por 15 minutos. Fiquei sujeito a toda sorte de perseguição em Jaru, por parte dos latifundiários e essa burguesia ("empresários") nojenta que existe lá.

Ruço faz questão de ressaltar que na região de Jaru existe muita gente trabalhadora e honesta, pela qual tem muita admiração e gratidão por tê-lo apoiado e ajudado: "cidadãos de bem, democratas, que lutam por um país justo". Recorda então:

— Nesse tempo, os camponeses fizeram outra manifestação. Como estava preso, eu nada sabia. Os policiais, então, me pegaram na cadeia de Jaru e me levaram para Urso Branco, sem que minha família nem ninguém soubessem onde eu estava. No Urso Branco tem muita gente boa, que tem coração — pessoas que se tivessem um pedaço de terra não estariam naquela vida, mas sustentando a sua família — , apesar das barbaridades que diretores e agentes faziam com os presos e que provocavam muitos motins — os presos se revoltavam por ficar sem visita, a comida não valia nada, nem para porco se deve dar, muitas vezes sobrevivemos com carne de gato e até folha de mato. Aquele é um dos piores presídios de que já ouvi falar. Eles largavam a gente à própria sorte na quadra, debaixo de sol e chuva.Se desse um trabalho para que o preso tirasse o sustento da sua família, capacitasse um pouco cada um, mesmo os que não eram inocentes teriam se recuperado.

Ruço condena a injustiça do pagamento, lembrando que 360 reais, "nem paga água ou luz, imagina pagar aluguel e ver seu filho necessitando de comida, te pedindo algo e você não ter nada para dar."

— Sabemos que esse nosso Brasil é muito rico, mas a riqueza só fica nas mãos dos poderosos. Com tanta gente passando fome e necessidade, e se você lutar por um pedaço de terra acaba preso ou morto por jagunço ou por essa polícia. Lutar por um pedaço de terra para trabalhar, e que todo o brasileiro tem direito, é crime? Todo brasileiro tem o direito de um pedaço de terra para sustentar a sua família. Porque nascemos aqui e nos criamos no chão brasileiro. Ele é nosso, e não de quem não trabalha.

AND – Qual foi a repercussão do caso?

— Apesar de tudo pessoas de todos os países se solidarizaram com minha situação. Por isso hoje estou vivo, é graças a todas essas pessoas que me ajudaram, todos os de bem, que lutam por um país justo, com democracia, todos os advogados, todos os que combatem cada um na sua profissão pelo nosso país; um país de fome e miséria. Se cada um tivesse no mínimo 5 alqueires e a justiça não fosse tão porca, muita gente ia viver com dignidade e tirar seu sustento para sua família.

Revoltado, Ruço lembra que, "nesses jornais mentirosos mantidos pelos latifundiários, disseram após o julgamento em Jaru, que ‘haviam sido absolvidos dois jagunços’. Só que foram absolvidos dois camponeses trabalhadores que lutam para tirar o sustento de sua família, que nunca matam ninguém para isso e preservam até a vida do próximo com o seu trabalho.

— Um camponês honrado não vai deixar de trabalhar. Eu nunca vou deixar de trabalhar para me sustentar, sustentar a minha família e o povo brasileiro, porque é meu dever, o dever de todo brasileiro é lutar no campo, na cidade, por um país justo.

AND – Como se comportou a sua família?

— Minha família sempre me apoiou. Minha mãe, às vezes, nem tinha dinheiro para me visitar na cadeia, passava a maior humilhação, tendo que tirar a roupa nas revistas e sofria muito com a minha ausência e o medo de me perder ou de acontecer alguma atrocidade comigo, porque ela sabia, pagavam para me matar. Ela só podia pedir pela minha proteção e cobrar à justiça para me soltar. Mas nada disso era feito. Adiaram o meu julgamento várias vezes, com minha mãe passando necessidade e abandonada à sua sorte. Minha mãe fez empréstimos. Acabou com tudo o que tinha. Só ficou com a casa onde mora hoje e com a aposentadoria que ela conseguiu com muita dificuldade depois que o meu pai morreu e ainda descontando todos os empréstimos que ela fez, pagando até hoje.

AND – Que outros apoios você recebeu?

— Eu agradeço ao povo, a todas as entidades brasileiras que lutam contra a injustiça de nosso país, a todas elas, porque lutam por um país justo. Todos os estudantes, agradeço todo o apoio que me deram. Se estou vivo, agradeço a todos que me apoiaram, todos os intelectuais. Também não deixaria de falar das vítimas do massacre de Corumbiara que as pessoas foram largadas a sua sorte. Até hoje tem gente aleijada, que precisa ser indenizada para sobreviver e chão para trabalhar. Esses também, mesmo vivendo essas necessidades, me apoiaram. Quero agradecer a eles todos.

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