O final de ano, para muitos significa o tão desejado repouso depois de meses de esforço, mas para outros, novembro e dezembro são meses de trabalho forçado, incrementado com as mais degradantes práticas de assédio moral dos patrões sedentos pelo lucro máximo. É o caso dos comerciários que, a reboque do consumismo exacerbado característico do final de ano, são superexplorados, chegando a trabalhar 12 horas por dia.
Na época das festas de fim de ano, a maioria dos comerciários não tem o que comemorar. O período para a categoria é de humilhantes condições de trabalho que, segundo a diretora administrativa do Departamento de Saúde do Trabalhador de Juiz de Fora, Ivony Garcia da Silva, podem causar sérios danos à saúde física e mental do trabalhador.
— Devido às metas diferenciadas, rapidez no atendimento e pressão maior dos patrões, o trabalho excessivo no comércio no final de ano pode causar estresse, depressão, pânico e ansiedade, resultando em doenças psíquicas. Os profissionais que lidam diretamente com o público e recebem por comissão são os mais vulneráveis. Com o tempo, pode ser provocado um distúrbio de sofrimento. Trabalho ligado ao consumo imediato e em que a pessoa fica muito tempo em pé facilitam o agravamento dos problemas de saúde. É comum ouvir relatos de profissionais relacionando problemas de saúde com os horários de final de ano — alerta a especialista, completando que as ocorrências de assédio moral originárias do comércio no final do ano, representam 30% do total queixas, ocupando a primeira posição dentre todos os setores.
A estudante de Direito Aparecida Alves dos Santos tem 24 anos e trabalhou cinco no comércio, tendo passado por vários situações humilhantes e presenciado diversas falcatruas de patrões ambiciosos e desumanos.
— No meu último emprego de comerciária, meu horário na teoria era de seis horas de trabalho diárias, de segunda a domingo, com uma folga na semana. Mas a chefe sempre dizia que nós tínhamos que apresentar números e isso nos exigia ficar mais tempo trabalhando. Além disso, haviam corridas que estimulavam um clima de competição entre as próprias vendedoras. O medo de ser demitida era constante, porque as que ficavam atrás no ranking de vendas acabavam correndo esse risco. O sapato de salto alto era obrigatório, não podíamos nos sentar, nem nos encostar. Tínhamos que ficar em pé, sobre um salto, seis horas por dia, ou mais — explica a jovem, inteirando que todo esse trabalho, além de tudo, não é devidamente pago pelos patrões e muitos trabalhadores são forçados a abrir mão de sua vida social.
— Eu perdia grande parte do dinheiro do salário com alimentação. Tínhamos quinze minutos para comer e, como muitas pessoas, eu não tinha como trazer comida de casa. Por isso, acabava comendo no shopping, onde a comida é muito cara. Nós éramos obrigadas a comprar o uniforme da loja. Por isso, antes de começar a trabalhar nós já tínhamos dívida com o patrão. Nenhum comerciário ganha por hora extra. Só ganha por comissão. Se você quiser ficar na loja da hora que abrir até a hora de fechar, você pode. Mas se você não vender nada, por azar, também não vai ganhar nada pela tentativa. Mesmo que o funcionário queira se submeter a isso, o patrão não pode deixar. Isso também é assédio moral. Quem trabalha no comércio não tem vida social. Não evolui. Não pode se aprofundar nos estudos ou profissionalmente. Minha mãe tem 42 anos e teve que abrir mão disso. Eu, quando comecei a trabalhar no comércio, achei que ia conseguir estudar, mas não. A pressão da gerência, o assédio, fazia com que eu acabasse ficando na loja e deixando de estudar — lamenta a estudante, completando que a discriminação, desde o processo de seleção, exclui a participação de negros, obesos e muitas outras pessoas.
— Antes de arranjar o emprego, eu fui reprovada em uma série de seleções porque eles exigiram que eu alisasse meu cabelo e eu não quis. Reprovam meninas negras, obesas e muitas outras — denuncia.
No final de ano, com o crescimento desproporcional do consumo, para lucrar o máximo, patrões apertam ainda mais o cerco de superexploração contra os comerciários.
— Final de ano, a maioria dos comerciários é obrigada a trabalhar, no mínimo, oito horas. O que é contra a lei, visto que trabalhamos todos os dias, praticamente. Isso dá um total de 52 horas semanais, em média. É desumano. Eu era caixa e não tinha comissão, então no final de ano, eles me pagavam 200 reais das horas extras, mas a questão é que eu não tinha a opção de não aceitar cumprir essas horas. Eu era obrigada. No ano passado eu trabalhei todos os dias de dezembro, de domingo a domingo, abrindo e fechando a loja todo dia e ganhei só 200 reais por isso. Vale a pena? E ainda por cima, todos os desfalques no caixa eram descontados do meu trabalho — conta Aparecida.
— No final do ano, comerciário vira escravo, não tem vida. Trabalha de 9 às 10h da noite, chega em casa, come e dorme. Minha mãe é comerciária há 24 anos e eu, quando mais nova, me acostumei com a ausência dela, não só nas festas, mas em todo o mês de dezembro. Nos finais de semana do fim de ano, a empresa é obrigada a pagar a refeição do comerciário. Mas a lei não prevê quais os nutrientes que devem ter nessa refeição, mas sim quantas calorias. Em uma loja que eu trabalhei eles compravam um lanche do Bob’s. E ainda por cima, não tinha como todas comerem ao mesmo tempo. Uma menina comprava vários lanches e, de quinze em quinze minutos, alguém parava de trabalhar para comer. A última a comer passava mal, porque quando parava de trabalhar, o sanduíche já estava frio — afirma a jovem, acrescentando que não é apenas explorando os trabalhadores, que os patrões do setor do comércio lucram rios de dinheiro no final de ano.
— Como eu fui caixa, acabei sabendo de todas as maracutaias dos donos da loja, que eu não vou citar o nome, mas digo que é uma loja grande. Em todas as lojas existem dois caixas. Um para a mercadoria vendida com nota fiscal, que é composto somente pelos pagamentos no cartão, e outro para a mercadoria vendida sem nota, formado pelas vendas em cheque e dinheiro. O preço que as pessoas pagam, tem embutido esse imposto, mas eles sonegam e pegam a grana para eles. Inclusive eu trabalhei em uma loja que dava bônus para o comerciário se ele fizesse mais vendas no cheque ou em dinheiro. E eles não roubam só daí não — denuncia.
— Roubam também do dinheiro que nos pagam. Eles anotam na carteira de trabalho e nos contracheques só o salário fixo, no meu caso, 465 reais. Mas eu ganhava 600 reais e na hora de me pagarem os direitos previstos após a rescisão, queriam me pagar só o referente aos 465 reais. Eles me disseram que era a "lei do comércio". Eu bati o pé e eles acabaram me pagando um pouco mais, mas não o integral. Sem contar com o dinheiro que os chefes davam para a polícia na loja de rua em que eu trabalhei, para descarregar caminhões em fila dupla e por segurança privilegiada — afirma a estudante.