“Para o exército todos são bandidos”

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“Para o exército todos são bandidos”

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Entrevista: Lúcia Skromov

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Cité Soleil, formada a partir de uma  vila operária junto a um polo industrial,
tem hoje mais de dois milhões de habitantes

A professora Lúcia Skromov é membro do Comitê Pró-Haiti Brasil. Militante comunista desde sua juventude em Marília-SP, participou da resistência ao regime militar durante o qual foi presa e torturada ficando com seqüelas até os dias de hoje. Ela perdeu uma das vistas e mesmo tendo realizado duas cirurgias corretivas nas pernas, tem grande dificuldade de se locomover. Nada disso, porém, é impedimento para que ela desenvolva suas atividades de solidariedade ao povo do Haiti. Por sete vezes ela esteve naquele país, após o início da intervenção imperialista através da ONU utilizando os exércitos de cerca de 40 países, aos quais o Brasil tem a incumbência de liderar, colocando a maior quantidade de tropas.

Para melhor compreender a situação do povo haitiano e captar melhor suas ansiedades e sua cultura, Lúcia aprendeu o Kreyól, uma das línguas oficiais do Haiti, a mais falada pelo povo, secundada pelo francês.

A reportagem de AND esteve em sua casa no bairro da Lapa em São Paulo onde teve a oportunidade de ouvir a sua visão sobre a agressão imperialista, a luta de resistência e as perspectivas daquele povo que tantas lições tem dado aos povos da América Latina, a começar pela sua independência, ainda no século 18.

AND – Como você analisa o artigo do Coronel Magno Filho sobre o que ele chama de "pacificação" do Haiti*?

Lúcia Skromov – o artigo ele usa os adjetivos aguerrido e ardiloso para qualificar o chefe da gang Ti Haiti (Haitizinho em Kreyól), Blade Mason e aí o coloca em alto nível como se fosse, por exemplo um Pablo Escobar ou um Marcola. Tudo isso para falar de si mesmo. Apresentando o episódio como um grande feito e assim justificar as barbaridades praticadas contra o povo haitiano. É claro que como qualquer um líder do tráfico ele tinha suas espertezas, mas não nas cores como foi pintado. Com isso o Coronel quis passar a seguinte idéia: "Nos somos tão bons que prendemos o aguerrido e ardiloso Blade Mason".

AND – Como é a Cité Soleil que você conhece?

Lúcia – Veja bem, a grande Porto Príncipe, onde está incluída a Cité Soleil, tem cerca de dois milhões de habitantes. A favela mais populosa do Haiti é, realmente Cité Soleil. Ela não nasceu como favela, mas como uma cidade dormitório pois, no tempo do Papa Doc (François Duvalier), durante a sua ditadura que durou cerca de 28 anos entre o Pai e o Filho Jean Claude (Baby Doc), eles desenvolveram um parque industrial bastante incipiente, mas que era estimulado pelo USA que mantinham a ditadura pois interessava tê-la como um anteparo em relação a Cuba. Os operários das indústrias ali instaladas moravam em Cité Simone, nome anterior de Cité Soleil em homenagem à esposa de Duvalier. Com a morte do "papai doutor", Papa Doc, como queria ser chamado, levas e mais levas de camponeses famintos vieram para a capital e se concentraram em Cité Soleil que assim tomou o vulto de uma grande favela. Ela é assim como uma Paraisópolis, menor um pouco, com ruas serpenteadas, esgotos a céu aberto, chiqueiros de porco, etc.

AND – O exército diz que prendeu ou eliminou 800 bandidos, o que você diz disso?

Lúcia – As pessoas que por força da miséria se transformam em traficantes nasceram ali e são conhecidas de todos e, assim, vivem e mantém uma relação de amizade com os demais moradores que inclui reciprocidade em termos de favores. A expectativa de vida no Haiti é de 51 anos e muitas pessoas que conseguem sobreviver se lembram daquele molequinho que viu nascer e lhe dão cobertura. E o moleque, por sua vez, quando consegue alguma coisa, distribui com eles. Ora, onde não tem nada o que comer e, literalmente, lá não tem nada o que comer, uma migalha de pão vai ter grande significado. Para o exército todos são bandidos.

AND – E como funcionava a resistência em Cité Soleil e no Haiti, em geral?

Lúcia – Como funcionava e como funciona, ainda hoje. Lá era o reino dos votos do Jean Bertrand Aristides. Assim, todas as pessoas que dependiam de uma maneira ou de outra do banditismo institucionalizado do Aristides – sim, porque não há como negar que ele é um bandido como o Alan Garcia o é – estas pessoas foram a base para que vários tipos de organização como igrejas, ONGs e outros grupos montassem células de resistência contra a presença do exército. Eu mesma estive lá em 2007 e fui convidada para um encontro destas organizações dentro de Cité Soleil e percebi que eles ainda tem uma grande esperança do retorno do Aristides. Os Chimers (vem de quimera) são um movimento armado e que provavelmente tem ligação com o tráfico, pois compõem o setor mais leal ao Aristides. Eles, como organização secreta, devem ter travado os maiores combates com as tropas de ocupação.

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Haitiano desafia as tropas de repressão

Existe hoje também uma forte organização de desabrigados. Outra coisa que me deixou muito animada foi ver uma ação combinada de moradores do campo e da cidade que resolveram tomar as terras da região onde aconteceram as primeiras batalhas no século 18, pela libertação. Eles dividiram a terra e estão produzindo e vai ser mito difícil tirá-los de lá. Em tudo eles pintam as cores de sua bandeira pois eles têm um grande orgulho de seu passado.

Por outro lado, existem outras organizações que vem na luta há mais tempo, como é o caso de uma organização camponesa maoísta, denominada Tete Coller, (cabeça colada) que significa pensar igual. Eles têm uma posição muito coerente numa perspectiva revolucionária. Criticam as ONGs, se demarcam dos chimers e não participam de eleições, diferente de vários grupos e partidos oportunistas como os que tem aqui no Brasil e no mundo.

AND – Estes movimentos sofrem que tipo de repressão ?

Lúcia Skromov – A PNH (Polícia Nacional do Haiti) realiza suas ações, na calada da noite, de cara tapada e usam veículos da ONU para realizar seqüestros e aniquilamentos seletivos. Eu mesma presenciei em uma noite, quando voltava de uma reunião, um veículo com a inscrição UN (United Nations / Nações Unidas) com um monte de policiais encapuzados levando uma pessoa e não era de favela não, era de um bairro de classe média. E não acontece nenhuma denúncia porque a imprensa está toda na mão da direita.

AND – E quanto a Preval ?

Lúcia – A maioria votou no Preval porque teve o aval do Aristides nesta história e também porque dentre todos os que disputaram ele foi o que representou a esperança de uma democratização do país e da retirada do exército. O que acabou não acontecendo, porque Preval, tão logo se elegeu, solicitou a manutenção da intervenção imperialista, através da presença das tropas de ocupação. Talvez para agradecer ao Amorim, ministro das relações exteriores do Brasil, que no impasse da contagem de votos , apresentou uma fórmula salvadora que deu a vitória a Preval. Ele visitou Cuba, Brasil e Chile. Ele se diz socialista, mas na verdade é dessa esquerda do tipo Bachelet, a esquerda que o imperialismo pediu a Deus. Com ele, na verdade, nada mudou: continua a fome , a miséria, o desemprego e a falta de perspectiva. É um país que vive da corrupção, o povo é pobre mas as classes dominantes têm o dinheiro do Estado.

AND – O que o Coronel Magno Filho quer dizer quando afirma que pacificou Cité Soleil?

Lúcia – Aí eu pergunto: pacificaram o que ou quem? Não sei. Matar traficantes quando ao mesmo tempo matam a população civil, eu não vejo nenhum mérito nisso. Os métodos empregados pelo exército brasileiro ferem a soberania e a dignidade do povo haitiano. Porque é o Exército brasileiro que tem que fazer papel de polícia no Haiti. Eles é que tem que se organizar e resolver os seus problemas internos. Mas, tem uma coisa: todas as vezes que o povo se organiza, pode esperar que vai acontecer alguma coisa dentro do Haiti. Aí o discurso golpista usa a argumentação de que o país está à beira de uma guerra civil. Este foi o argumento para a intervenção e o país não estava à beira de uma guerra civil. O imperialismo teme qualquer processo de organização do povo haitiano porque ele conhece a sua história, sabe que é um povo de luta. Veja só, quando houve o aumento dos preços dos alimentos no mundo inteiro, o povo do Haiti foi o que primeiro que se levantou, foi um levante espontâneo, mas eles sabem cobrar à unha. Foram até às portas do Palácio presidencial e o Preval teve que cortar a cabeça do Primeiro Ministro. Foi preciso uma mobilização urgente de todas as nações que têm interesses dentro do Haiti para o envio imediato de comida, e assim, tentarem amenizar a fome e a ira do povo. É o medo desse tipo de levante o motivo da permanência do Exército brasileiro no Haiti. A marcha pela paz que eles fizerem foi totalmente produzida, nada espontâneo do povo, assim como os locais que eles dizem ter recuperado são coisas pontuais para servir como propaganda a ser divulgada pela imprensa brasileira que vai para lá nos aviões do próprio exército e sem saber falar o francês ou o kreyól, não entendem nada e reproduzem tudo que o exército fala. O Coronel não fala na revista e nenhuma imprensa brasileira mencionou, até agora, que o prédio da Faculdade de Medicina foi tomado, requisitado como nos tempos do nazismo, para montar o Quartel General do Exército brasileiro, isso eles não contam.

AND – E como tem sido a solidariedade com o povo haitiano?

Lúcia – Olha, eu tiro o chapéu para os médicos cubanos, eles vão a todos os lugares com equipamentos médicos e odontológicos e têm feito um trabalho fabuloso.

Também existe um programa de alfabetização e outro de incentivo à indústria pesqueira, apoiado pela Venezuela, já que o Chávez se dispôs a retribuir o apoio que no passado o Haiti deu a Simon Bolívar.

Um outro movimento chamado Raquipar que faz um enfrentamento no campo da produção de arroz, já que sua produção é desestimulada para que o povo adquira o arroz importado do USA. Eles trabalham num esquema de cooperativa e conseguem empréstimo de organizações de esquerda no exterior.

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Mais um haitiano assassinado nas ruas

Nosso Comitê Pró-Haiti recebe artesanato e obras de arte para fazer exposições e venda destes produtos para o resultado reverter em função de uma cooperativa que estimule a produção nas áreas de campo. Estamos fazendo isso com os Tete Coller.

Suas terras foram aniquiladas por 500 anos de produção de cana, estão imprestáveis. Em alguns lugares ainda se consegue produzir café, cana, amendoim, caju, milho e mandioca. Muita erosão, são menos de dois por cento de mata virgem. Cada furacão deixa um estrago tremendo.

É muito importante a solidariedade com o povo haitiano pois eles vivem uma situação de fome crônica, as crianças olham para você e já não falam, apenas batem com a mão na barriga, para mostrar sua fome. Quem pode come biscoito de barro. Sim biscoito de barro temperado, feito artesanalmente. Comem barro para matar a fome. Eu vi, depois de um furação, no campo da região nordeste, uma família se alimentar de uma batata por semana: partia um pedaço da batata e colocava para ferver com tempero e mato e todos bebiam aquela sopa.

Uma forma de solidariedade é a assinatura de duas cartas que, inclusive estão no nosso sítio www.prohaitibrasil.org. A primeira reivindica da França que devolva o ouro, calculado hoje em 22 bilhões de Dólares, que ela cobrou para reconhecer a independência do Haiti. E a outra pede que a ONU repasse o dinheiro que ela pegou de alguns países, cerca de um milhão e trezentos mil dólares, para a reconstrução das áreas atingidas pelos furacões. A ONU diz que não manda o dinheiro porque ele pode ser mal aplicado. Ora, para aumentar a desgraça e a miséria do povo a ONU sabe mandar as tropas com engenheiros, técnicos e assessores, porque não fazem o mesmo para a reconstrução de áreas devastadas? Para realizar as eleições souberam gastar cerca de 100 milhões de dólares americanos. E agora, com a crise, o imperialismo socorre os banqueiros, especuladores, a indústria automobilística e todos os ricos, mas para o povo pobre nada.

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*Konbit pou lapé – artigo publicado na revista Estatégia e Defesa n° ??

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