Quando homens livres produzem

Quando homens livres produzem

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As famílias camponesas organizadas na Liga dos Camponeses Pobres, no município de Campina Verde (MG), estão provando que a união dos camponeses para produzir em grupos de ajuda mútua é a saída para enfrentar grande parte das dificuldades da pequena produção.

Triângulo mineiro, município de Prata. Seguindo quase uma hora por uma estrada não pavimentada e repleta de buracos, como quase todas que nos levam ao chão camponês, é possível avistar a bandeira vermelha da Liga dos Camponeses Pobres, já no município de Campina Verde.

Em Campina Verde existem duas áreas camponesas: o acampamento Conquista dos Palmares e o “Cachoeirinha”. Essas áreas foram conquistadas após um ano de luta incansável pela posse do latifúndio denominado Fazenda Floresta/Salitre (ver AND 17 e 29), na cidade de Patrocínio (MG). Os camponeses estão medindo a terra e preparando-se para cortá-la.

Tão logo os camponeses chegaram à área começaram a libertá-la, realizando a produção de uma pequena roça coletiva. Hoje, quase um ano depois, começam a organizar seu trabalho em formas cooperadas simples, através dos Grupos de Ajuda Mútua, algo institucionalizado nas áreas da Liga.

O surpreendente é que novas formas de produção implementadas pelos camponeses livres engendram novas relações de produção, agora baseadas na colaboração, na ajuda mútua e não mais nas relações de exploração.

— Um grupo de ajuda mútua funciona da seguinte forma: todos trabalham e a produção é dividida entre todos. É possível ter um bom desempenho na produção porque funciona o coletivo. Além disso, não queremos escravizar ninguém, somos todos companheiros. Todos têm os mesmos direitos. Aqui não tem patrão, nós queremos é acabar com o sistema de trabalho imposto por aquele que não faz nada e fica com tudo o que produzimos. Nunca mais vamos precisar de trabalhar para os latifundiários — explica o camponês José dos Santos, que participa da produção de tijolos.

— No grupo todos têm suas tarefas próprias, mas sempre procuram ajudar os outros companheiros. O grupo tem suas normas e nós dividimos a produção igualmente — completa a camponesa Maria Helena da Silva, coordenadora da produção de rapadura.

Vale lembrar, os camponeses não criaram alguns ramos de negócio, mas atividades, com um determinado estilo de trabalho, que apóiam a economia da área libertada.

Lutar e produzir

A luta pela produção é uma questão chave no desenvolvimento do movimento camponês, parte do princípio defendido pela Liga dos Camponeses Pobres de libertar a terra (meio de produção que está nas mãos dos grandes monopolistas do trabalho) e libertar o povo trabalhador.

Os camponeses sabem que expulsar o latifundiário não significa assegurar a supressão da renda da terra, porque ele domina os negócios na região e maneja todo o aparato burocrático local, assim como a repressão. Portanto, sempre se expedirá um mandato de reintegração de posse contra os camponeses. É preciso organizarse contra a violência das classes dominantes, porque ela é infalível.

Para isso, é preciso mudar as relações de produção naquele solo. Dividir a terra e imediatamente introduzir uma maneira nova de produzir, ao que não pode faltar a mais elementar forma de produção coletiva.

Se não há produção, os camponeses são obrigados a depender das cestas básicas distribuídas pelo INCRA, que não tem a menor regularidade, além de não conter o mínimo necessário às necessidades nutricionais de um trabalhador. Pior, empurra os trabalhadores para os braços do latifúndio, desmoraliza sua causa, sua razão de viver.

Se a produção é individual, tendo que contar com a cesta básica irregular e insuficiente, o combativo trabalhador cai na armadilha dos latifundiários e de seus burocratas, enquanto que toda a luta travada por um pedaço de chão é frustrada. Os trabalhadores permanecem mão de obra farta e barata, moribundos confinados numa pequena área vizinha ao latifúndio que retomará a terra em seguida. Nessas condições, muitos dos camponeses voltam a implorar trabalho no latifúndio para sobreviver alguns anos mais ou meses, conta José dos Santos:

— Esse ano muita gente saiu para trabalhar nas colheitas de café do latifúndio. Mas eu falei que não iria. Porque eu queria dar um jeito para todos nós tirarmos o sustento desta terra que já conquistamos. Então, o problema é libertar a terra e nós mesmos. Não é entrar apenas na terra — prossegue.

Dentro deste contexto, a ajuda mútua é imprescindível. É a aplicação prática do princípio de “apoiar-se nas próprias forças”. Cada um deve ter assegurado o seu lote e trabalhar para si, mas em muitas ocasiões a necessidade da produção coletiva se revela e é prontamente respondida pelos camponeses da Liga.

Ao contrário da Liga e de várias organizações camponesas sérias, as direções oportunistas voltam-se para os acordos com os órgãos gestores do latifúndio — que troca terras que ele mesmo destruiu por indenizações milionárias —, fazem com que os camponeses contraiam dívidas com os bancos e se submetam aos ditames do governo semifeudal e imperialista.

As áreas camponesas de Campina Verde não estão totalmente regularizadas, porque o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INCRA diz estar empenhado em concluir o processo de indenização ao latifúndio e posterior “passagem legal da terra” às mãos camponesas. Claro que sem a posse legal da terra é muito difícil implementar a produção, comercializá-la etc., sendo que o poder sempre considera ilegal a produção do camponês pobre. No entanto, o governo semifeudal e imperialista afirma que tomar a terra das famílias trabalhadoras e não produzir para viver de renda, enquanto matam milhões de brasileiros de fome, como fazem os bandidos latifundiários, é totalmente legal.

Já o camponês pobre — que nunca disputa a terra com os fazendeiros operosos, que de fato produzem —, não considera a produção ilegal pelo simples fato de que necessitam viver. E essa é a única forma que o ser humano tem para viver: trabalhando. É o que explica José dos Santos:

— Eu acho que quando ocupamos a terra temos que trabalhar nela e retirar o sustento da própria terra. Nós saímos da cidade para trabalhar na terra, já viemos de lá porque não tinha trabalho remunerado. Então, temos é que ocupar a terra, que está presa nas mãos dos latifundiários, e libertá-la produzindo para as nossas famílias e para todo o povo brasileiro.

Estudar a terra

O campo permite várias atividades produtivas, ao contrário do que quer fazer crer a lógica dos técnicos em monocultura, defensores do latifúndio e do imperialismo. Lavouras de todo tipo; hortas; granjas de animais variados; piscicultura; transformação de alimentos, produzindo queijos, doces, conserva, etc, podem e devem ser trabalhados pelos camponeses. Hoje, existem mais de trezentas profissões no campo, especializações que a ciência e a técnica nos indicam. Então, não há porque pensar em produzir apenas o arroz, o feijão, o milho.

Ao dominar a terra que lhe pertence, o camponês passa a observá-la para descobrir todas as atividades possíveis, inclusive a que mais frutos pode obter com seu trabalho.

— Quando cheguei ao acampamento Cachoeirinha fui observar a terra e percebi que ela tinha areia. Aí pensei que podia fazer tijolos. Separei o barro, amassei, cortei e consegui fazer os primeiros tijolos. A idéia de formar brigadas de ação coletiva surgiu com a boa produtividade que tiveram os tijolos. Quando o pessoal viu que a gente podia trabalhar sem sair da terra, e trabalhar bem, ficou com vontade de aprender o ofício — explica José.

No acampamento Conquista dos Palmares, a cana crescia rapidamente, já que uma vez plantada e cortada corretamente, ela brota todos os anos. Outrora havia sido utilizada pelo latifundiário para alimentar gado. Os camponeses passaram a discutir uma forma de utilizá-la em proveito de todos e na Assembléia do Poder Popular — onde todos têm direito a voz e voto, mas principalmente é a instância que legisla, julga e executa — decidiram conformar um grupo de ajuda mútua para a produção de rapadura.

Só o crime é legal

Todos os grupos de ajuda mútua iniciaram-se de forma bastante artesanal. Eles não possuíam instrumentos de trabalho, nem havia possibilidade de adquiri-los. Os camponeses trouxeram de casa suas panelas, coadores, tecidos, baldes, latas e demais utensílios que poderiam ser utilizados na produção.

Assim, a burocracia não legaliza a terra, o meio de produção e nem o trabalho humano, honesto — cujo produto é vendido por preço abaixo daquele cobrado no comércio.

Por detrás disso está o latifúndio que não só domina toda a imensidão de terras, porém é dono de tudo; do mais insignificante ao maior negócio estabelecido na região. E é também o dono da vida de todo mundo. Dirige a vida do trabalhador pobre, do pequeno comerciante, do fazendeiro que produz, da polícia, do juiz. Com todos faz chantagem e impõe a sua vontade. A uns ele obriga a trabalhar sempre mais e a se afundar na miséria. A outros o latifúndio torna criminosos, inclusive muitos dos que executam leis.

A origem da qualidade

A qualidade é um critério que somente os trabalhadores podem decretar. A utilidade de um produto é medida pelos interesses do povo, e nunca pelas trapaças promovidas pelas grandes corporações privadas e seus burocratas.

Essa produção de rapaduras, como a de quase todos os doces, tem um ponto que só a prática ensina a identificar. No início, toda a produção teve que ser refeita devido à baixa qualidade. Além do mais, a capacidade produtiva na ajuda mútua era bem maior do que a quantidade das fôrmas. Certa vez, um dos camponeses tomou a iniciativa de fazer ali mesmo uma fôrma de madeira “para quebrar o galho”. O ótimo resultado da nova fôrma — que foi utilizada juntamente com a antiga, possibilitando uma comparação — levou-os a verificar que a fôrma de ferro era inadequada para a produção.

Também o problema da qualidade foi superado e agora oferecem um excelente produto. Resta o da comercialização.

A produção inicial era muito pequena e, em parte, ainda é. Mas o que realmente impressiona é a disposição dos camponeses, a decisão em sustentar-se com o trabalho da própria terra, a firmeza diante dos problemas cotidianos que se impõe a todo pequeno produtor.

— A gente lutava, corria atrás das coisas e fazia de tudo para dar certo. Toda vez que eu fazia um tijolo, eu gritava: “Viva a resistência!”. Porque era uma produção muito pequena, mas a gente queria produzir bem, até que foi indo e rendendo — comenta José dos Santos.

— Eu acho que a gente tem que lutar até o final. Se não der certo, tenta de novo. Fome a gente não pode passar e não somos ladrões — explica Maria Helena.

Atualmente, a brigada produz 100 rapaduras por dia. O preço de uma unidade, no comércio nas cidades vizinhas, oscila entre R$2,00 e R$4,00. Segundo os camponeses, uma fábrica de rapadura grande pode produzir, em média, dez vezes mais.

Maria Helena defende as vantagens da pequena produção que realizam e o que dela se obtém:

— No final das contas, nossa rapadura é melhor. Aqui não somos explorados, sobra tempo para criar e plantar; para fazer outras coisas. Trabalhar para o latifúndio é só sofrimento. Aqui a gente trabalha e não precisa aguentar humilhação. E nas fábricas deles, hoje, quase não tem trabalho, é tudo máquina.

Ou seja, a máquina que serve para facilitar o trabalho humano, nas mãos dos exploradores é utilizada para fazer o proletário trabalhar mais pelo mesmo salário de fome e tirar o emprego dos outros. É o que o explorador chama de progresso.

Teremos as máquinas

Outra vantagem apontada pelos camponeses é a quantidade de pessoas envolvidas nas atividades de ajuda mútua, tanto na produção de tijolos como de rapadura. De acordo com os camponeses, em nenhuma época do ano se consegue igual número de vagas de trabalho na região.

As pretensões dos camponeses envolvidos no sistema de ajuda mútua são práticas e simples: garantir a alimentação de suas famílias e utilizar uma parte do dinheiro para preparar a terra visando o plantio diversificado. O objetivo da produção não é tornar nenhum camponês rico.

Outra coisa: num sistema de monopólios privados, como o que domina o Brasil, os pequenos empreendimentos estão fadados ao fracasso. Além do mais, eles dizem, isso não é tudo no seu meio de vida. Não é a produção de tijolos e de rapadura que vão se tornar grandes empreendimentos, mas a economia da área libertada como um todo, junto com os camponeses que exercem as mais diversas atividades. Aí reside sua vitória, o futuro radioso.

Aliás, sabem os camponeses, eles estão avançando sempre que cada latifúndio é destruído, cada vez que modificam as relações de produção, como agora.

O resultado político, a construção desse poder a cada passo, deste pequeno empreendimento é que é verdadeiramente importante. Afinal, organizar a economia para quem? — adverte orgulhoso o camponês José dos Santos:

— Nós estamos desmascarando as intrigas dos latifundiários e de seus capachos. Estamos mostrando que os camponeses trabalham mais e melhor. Cada vez que se abata a economia do latifúndio e se exerce uma nova todos têm produção e comercialização. As localidades vizinhas já sabem disso, se beneficiam dessa nova situação. Aqui na região tem muitos acampamentos de diversos movimentos, e o nosso já ganhou a fama de lugar de camponês trabalhador, porque mostramos nossa qualidade. E essa qualidade não é só nossa, é de toda a Liga porque nós somos a Liga dos Camponeses Pobres.

José desfecha resoluto:

— Não estamos pedindo, implorando nos pés dos burgueses, como neste tempo de eleição, quando eles dizem “eu te dou tantos tijolos para você votar em mim”. Nós podemos dizer: “Não precisamos dos seus tijolos. Nós mesmos o produzimos na nossa área revolucionária”.

E conclui defendendo alguns dos princípios da Liga:

— Não somos enganados por esses vigaristas políticos, nem pelo governo dos exploradores em nosso país. Lutamos para construir a nossa economia, a nossa política, a nossa cultura, com as nossas próprias mãos. O povo brasileiro há de ter a terra, as máquinas, o alimento, a escola e a independência de nosso país.

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