Uma arma apontada para George W. Bush. Luiz Inácio, apavorado, em um último suspiro antes de ser degolado. Sob a mira de uma arma, Fernando Henrique Cardoso, o papa Joseph Alois Ratzinger, Mahamoud Ahmadinejad, Kofi Annan, Elizabeth II, entre outros. O autor dos justiçamentos de inimigos históricos dos povos, registrados com carvão em papel, é o artista plástico pernambucano Gil Vicente Vasconcelos de Oliveira. Em outubro de 2010, durante a 29ª Bienal de São Paulo, “graças à OAB” daquele estado que, ao atacar sua obra, prestou excelente serviço gratuito de “assessoria de imprensa”, seu talento e suas ideias tornaram-se conhecidos por inúmeros brasileiros.
Avesso aos jornalões e à televisão, durante mais de uma hora, Gil Vicente nos falou de seu trabalho e suas convicções. Com simplicidade e contundência relatou a construção de sua polêmica série Inimigos, tachada como “apologia ao crime” pela seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, que recomendou a retirada de sua exposição na 29ª Bienal de Arte de São Paulo. Em nossa conversa, ele se indignou com a situação do povo haitiano, desconhecida até então por ele, que “não lê jornais”. Soube que, naquele exato momento, o povo do Egito havia se levantado e derrubado um presidente pró-ianque. Surpreendeu-se com a valente população de Fonseca, distrito de Alvinópolis – MG, que protestou contra a farsa eleitoral e se mobilizou para boicotar as últimas eleições. Falou-nos de sua vida e seu trabalho.
Juventude e aprendizado
— Ingressei na Escolinha de Arte do Recife com 12 anos e estudei nos ateliês de extensão da Universidade Federal de Pernambuco entre os anos de 1972 e 1977. Em 75, recebi o meu primeiro prêmio, concedido pelo Salão dos Novos, no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco.
Este primeiro aprendizado foi muito importante, me fez entender o papel da arte e da educação através da arte: aprendi a me relacionar melhor com o mundo, com os outros, e até comigo mesmo. No meu ver, mais vale um artista se expressar com clareza do que ter uma boa técnica.
Eu nunca quis fazer outra coisa. Desde cedo, tive que percorrer galerias, brigar para sobreviver no meio. Muitas vezes, meus trabalhos não eram aceitos, tinha que fazer outros. Antes, nem havia curso superior de arte, fiz ateliê de desenho de observação, procurei artistas locais, apresentei meu trabalho. Corri atrás do meu objetivo.
Ossos do ofício
— Na década de 80, havia um espaço importante para as artes plásticas. Havia mais galerias e festivais. As pessoas compravam artes plásticas e nas casas das famílias de Recife havia trabalhos de artistas locais. Hoje, o público é menor, temos poucos colecionadores. O circuito de arte é mais profissional, funciona melhor, mas a quantidade de trabalhos vendidos é menor. Às vezes, os recursos são muito precários…
Fazendo-se entender
— Já fiz quadros de figuras geométricas. É um trabalho que gosto muito. Gosto de pintura, fotografia, desenhos, tudo que é plano. Em paredes, muros, portas. Minha área é essa. Eu brinco dizendo que, quando fui projetado, só me deram altura e largura.
Na Bienal de 2002, quando eu fiz trabalhos mais escuros, mesmo que as pessoas não compreendessem tudo o que eu queria mostrar, captavam as emoções, o sentimento. Eu faço as coisas com essa preocupação: que meu trabalho se comunique com facilidade.
Com um tema tão nítido como o da série Inimigos, claro que o trabalho ficaria também mais nítido. É uma crítica agressiva, fácil de entender, sem complicação, sem elucubrações teóricas, fica legível para o espectador que eu estava tão revoltado com o sistema. Transmiti isso direto.
Quem são os inimigos
— As pessoas pensam que fiz a série Inimigos para a Bienal em 2010, quando na verdade foi bem antes, em 2005.
Eu queria mostrar que nada presta e que situação ou oposição é tudo a mesma coisa. Coloquei o Fernando Henrique Cardoso e o Lula para deixar claro que a coisa não era de partido, mas que era mostrar o que eles são. Bush foi o primeiro que desenhei, é o pior de todos. Um assassino. O que fizeram no Iraque é um crime. E o Kofi Annan é responsável juntamente com o Bush, ele estava na ONU, que é totalmente pró-USA, dizem que interfere em alguma coisa, mas não interfere nada. Eu também pensava que o Lula, depois de chegar ao poder, colocaria as cartas na mesa, mas eu era muito ingênuo. Pouco depois de eleito, fazer o que ele fez… Ele representava a esperança para muita gente, eu acreditava, perdi a crença e não acredito mais.
Fazer essas coisas que eles fizeram é próprio de uma classe de gente. Como é que eu posso confiar nessa gente para fazer qualquer mudança?
Quando me convidaram para a Bienal pediram que eu acrescentasse mais um. Foi então que eu fiz Armadinejad, que representa as facções do Oriente Médio.
A montagem que fizeram na Bienal ficou muito bacana. Todos os desenhos afastados uns dos outros apenas 20 cm. Os desenhos se potencializaram, os espectadores subiam a rampa e davam de cara com as obras. Eram trabalhos em tamanho real, impactava muito.
Revolta e motivação
— O que me motivou a fazer isso? Bom, em 2005, eu fiquei completamente revoltado.
Eu votava desde os 18 anos de idade. Na juventude, eu via aquela coisa do Arena e MDB, meus pais eram companheiros de Dom Hélder (Câmara). Eu votava esperando uma mudança social, uma mudança boa, é claro. Sempre quis que a desigualdade social acabasse. Nunca votei preocupado em candidato, mas com um programa. Mas não mudou nada.
Hoje, veja só, falam de democracia e argumentam dizendo que agora “as pessoas tem celular e outras coisas que não tinham antes”, que imbecilidade! Ficam relativizando e teorizando a justiça social, formam consumidores, mas e a educação, saúde e outras coisas mais?
Então, em 2005, decidi não votar mais. Não compareço na urna. O máximo que faço é comparecer ao tribunal regional e regularizar a situação eleitoral, pago uma multa irrisória para manter meu passaporte e viajar. É contraditório demais isto de falarem que votar é direito e obrigar as pessoas. Perdi completamente a inocência e a esperança.
[Nessa altura relatamos a história de Fonseca, distrito de Alvinópolis – MG, onde uma significativa parte da população decidiu não votar e realizou uma campanha de boicote às eleições. Relatamos protestos em outras regiões do país e o índice de abstenções, votos nulos e brancos, a desmoralização do processo farsante.]
Mas no país todo 34 milhões protestaram contra as eleições desse jeito, é? (surpreso) E como é que funciona isso tudo? Então os votos nulos não são considerados válidos na contagem oficial deles? E por que a máquina não tem a opção de anular? Vocês devem mesmo esclarecer isso, eu quero receber esse jornal que fala disso.
Eu acho que esse protesto tem que se estender, as pessoas tem que saber que há como acabar com essa coisa, se conscientizar e entender que podem mudar isso. Obrigatório devia ser o direito a educação, saúde, moradia, essas coisas.
Parei de votar e não voto mais. Nem me chamem para trabalhar como mesário, não tenho mais ilusões. Campanha eleitoral é uma novela, a política eleitoral é uma coisa cheia de acordos absurdos. Eu tenho certeza que em um estado como Pernambuco ou Minas Gerais, ou qualquer outro, o dinheiro que é roubado durante quatro ou oito anos seria suficiente para resolver os problemas do povo como atendimento médico, escolas. Não sei se resolveria todo o problema, mas tenho certeza de que não seria esse absurdo que vemos hoje.
Desde que me entendo por gente, é a mesma coisa. Dizem que não podemos perder a esperança. Como não pode? Pode e deve. Eu tenho muito desejo que isso mude. Mas com esse processo aí, não tenho nenhuma esperança.
Vejo gente de classe média falar que o povo está na situação que está porque quer… Veja só o que tem na cabeça desse tipo de gente!
“Empurrãozinho” da OAB
Dois dias antes da inauguração da 29ª Bienal de Artes de São Paulo, Luiz Flávio Borges D’Urso , presidente da OAB-SP, divulgou uma nota afirmando que:
“Uma obra de arte, embora livremente e sem limites expresse a criatividade do seu autor, deve ter determinados limites para sua exposição pública. Um deles é não fazer apologia ao crime como estabelece a vedação inscrita no Código Penal Brasileiro.
(…) Essas obras, mais do que revelar o desprezo do autor pelas figuras humanas que retrata como suas vítimas, demonstra um desrespeito pelas instituições que tais pessoas representam, como também o desprezo pelo poder instituído, incitando ao crime e à violência.
(…) Por esse motivo é que a OAB/SP está oficiando os curadores da Bienal de São Paulo, para que essas obras de Gil Vicente, da série ‘Inimigos’ não sejam expostas naquela importante mostra.”
— Como eu tenho dito, a OAB de São Paulo fez um trabalho eficientíssimo de assessoria de imprensa. Antes mesmo de expor os Inimigos, quando eu ainda estava montando outra sala com outros trabalhos meus, o pessoal da montagem, os vigilantes da Bienal, se identificaram de cara, vieram me cumprimentar, pediram autógrafo, tiraram fotos comigo. O povo tem vontade de castigar esse pessoal aí que eu desenhei. Há quem não goste, mas a maioria gosta, tive muito mais aderência do que dissidência.
Isso nunca havia acontecido com um trabalho meu. Eu expus esses mesmos desenhos em Natal, Porto Alegre, Campina Grande. Houve polêmica, mas não tanta. Na Bienal de São Paulo, o efeito provocado pela declaração da OAB foi uma coisa fora de série, mas foi muito bem vindo (risos). Divulgou o trabalho e potencializou o efeito.
Recebi muitas mensagens de apoio. Gente na imprensa me defendeu e condenou a censura.
Respondendo às tergiversações
— Acusam meu trabalho de “apologia ao crime”.
Ora, o povo é punido por tudo, mas esses políticos roubam dinheiro público descaradamente, aumentam o próprio salário e estão todos impunes! Quem faz as leis são eles mesmos. Como é que as pessoas que antes diziam que desejavam uma sociedade diferente vivem hoje?
Essa Bienal de São Paulo tinha como tema “Arte e Política”, eu pensava que as pessoas estariam voltadas para debater. Então vêm dizer isso da minha série e mandaram retirar o casal de Urubus da obra de Nuno Ramos, com argumentos de “direitos dos animais”.
Vêm com esse papo de defesa dos direitos de animais, é uma gritaria danada, mas não existe nenhuma associação de proteção dos seres humanos. O principal é o ser humano. As pessoas se entusiasmam com uma causa dessa para deixarem de ver a realidade, ver uma pessoa que podia ser a gente sem ter o que comer, passando frio na rua. Tem isso nas ruas de todas as cidades. Isso sim é revoltante.
Eu me emociono quando falo isso, vejo na rua as coisas e fico revoltado. Como é que pode pessoas nessa situação? Como acontece aquilo e as pessoas se preocupam tanto com uma ficção que eu fiz? Eu fiz uma crítica e incomodo mais que a realidade nua e crua incomoda.
Quando mataram o Saddam Hussein, e aquilo aconteceu de verdade, passaram na TV como se fosse um filme. Eu fiz uma ficção e querem dizer que é crime. O Bush matou tanta gente e nem arma química havia lá no Iraque. E tem gente que ainda aplaude aquilo.
Arte que educa
— Eu pensava que cada inimigo devia ter uma morte diferente. Depois avaliei que isso iria criar um enredo diferente para cada um e isso iria fazer as pessoas pensarem nos diferentes pecados que cada um cometeu e isso iria acabar desviando a atenção do público do que é essencial. Eu não quis refazer a morte do Lula e depois fiz todos os outros com a simples execução com a pistola.
O cenário é simples. Utilizei o papel, que é mais próximo do público. Eu não queria a espetacularização de cinema do USA, com cabeças explodindo e sangue jorrando. Os desenhos são em preto e branco e em tamanho real, se fossem pequenos não provocariam o mesmo impacto.
E um fato excelente: sempre que pisei lá na Bienal havia muitas escolas presentes, turmas inteiras. Foi um movimento que há muito tempo não havia na Bienal. Cumpriu um papel educacional muito grande.
A série segue pelo Brasil
— Depois da Bienal de SP, foram criadas pequenas curadorias e partes das obras serão expostas em outras partes. Agora, em fevereiro, a série Inimigos está em Belo Horizonte e, assim, ainda irá a outras cidades. Outros recortes da Bienal irão para outras partes do país. Portanto, este ano, ainda teremos várias pequenas mostras e meu trabalho ainda está sob guarda da Bienal para esse trabalho itinerante.
No momento, estou fazendo um álbum de gravuras com outros cinco artistas, um projeto que eu gosto muito. E assim pretendo seguir trabalhando, fazendo minha arte com sentimento.