Começa com uma rigorosa seleção do repertório. Depois, uma aprimorada dedicação no estudo da poesia e da melodia vai trilhando o caminho que desemboca na interpretação da música. Assim, o mais duradouro conjunto vocal feminino trás, em cy, tão belas páginas da música brasileira para nós.
Em junho, o Quarteto em Cy completará 39 anos de carreira. Mais de 30 títulos gravados, repletos de verdadeira poesia, inteligência e graça. Além de cruzar fronteiras revelando as melhores canções brasileiras na França, Espanha, Japão, México e Estados Unidos, as meninas do Quarteto, senhoras da nossa música, percorrem o interior, e quase todas as capitais do país, realizando apresentações.
Inicialmente formado por quatro irmãs baianas, nascidas na cidade de Ibirataia, — Cyva, Cybele, Cynara e Cylene —, o Quarteto em Cy estreou profissionalmente na boate Bottle's Bar, no Beco das Garrafas, rua Du vivier, em Copacabana, Rio de Janeiro, mais precisamente na noite do dia 30 de junho de 1964. "Estreamos ao lado de Rosinha de Valença, do Copa Trio e do Carlos Castilhos, que era o nosso arranjador vocal na época. Esse show foi o primeiro com nome de Quarteto em Cy", conta Cynara.
Tudo começou quando, em 1962, a estudante de Letras e irmã mais velha das quatro, Cyva de Sá Leite, mudou-se para o Rio, para tentar a vida artística, ingressando na companhia teatral de Adolfo Celi e Paulo Autran. Essa iniciativa acabou por influenciar as três irmãs mais novas que, poucos meses depois, também se mudaram para o Rio, porém sem nenhuma atividade ligada à música ou ao teatro. Cylene e Cynara foram trabalhar como secretárias e Cybele como professora.
Mas, o tempo de Cyva no teatro já lhe havia rendido amizades que iriam influenciar o futuro das quatro como artistas. Na verdade, desde 1959, quando moravam em Salvador, Bahia, elas já tinham atividades artísticas, porém não atuando profissionalmente. Participavam de uma sociedade chamada Hora da criança, que tinha como meta educar através da arte. Dessa forma, cantavam em programas de rádio, faziam dramaturgia radiofônica e encenavam peças infantis, baseadas em textos de Monteiro Lobato.
A parceria com Vinícius
Através das amizades de Cyva, foram convidadas, ainda como um grupo anônimo, para interpretar músicas da trilha sonora do filme Sol sobre a lama, 1963, de Alex Viany, que tinha canções de Pixinguinha e Vinícius de Moraes. Durante esse trabalho, por meio de Carlos Coquejo, um amigo comum, conheceram Vinícius, que ficou encantado com as meninas. "Cantamos Um mundo melhor e fizemos coro na trilha toda. Ele gostou muito do nosso som e nos incentivou a seguir carreira artística", explica Cynara.
Com Tom Jobim |
De tanto que gostou, Vinícius passou a levá-las para as festas que freqüentava, onde se fazia música, proporcionando assim que conhecessem os grandes nomes da música popular brasileira que, na época, estavam se entrosando, como Tom Jobim e Carlos Lyra. "O Vinícius insistia com a idéia de que deveríamos seguir carreira, e todos os dias batia em nossa porta, por volta da meia-noite, tentando nos convencer a acompanhá-lo nas festas. Imagina que estávamos cansadas, porque continuávamos a trabalhar em outras atividades durante o dia, mas acabávamos aceitando o seu convite. Naquele tempo, éramos apenas quatro irmãs, conhecidas entre os amigos como as baianinhas que cantavam juntas", lembra Cynara.
Sem mudar de idéia, Vinícius resolveu apadrinhar o grupo para que se profissionalizassem e a primeira providência foi dar-lhes um nome. Então, buscou reunir-se com as meninas na casa de Carlos Lyra. "Essa reunião foi engraçada, porque cada qual propunha uma coisa, como: As Irmãs em Cy, As Baianas em Cy, As Baianinhas e muitos outros nomes. Mas Vinícius e Lyra propuseram Quarteto em Cy, e nós gostamos". Depois da estréia no Bottle's, já como o Quarteto em Cy, o grupo nunca mais parou, apesar de ter havido várias modificações entre as componentes. No ano seguinte, fizeram show na boate Zum Zum, também em Copacabana, ao lado de Dorival Caymmi e Vinícius, e gravaram o primeiro LP, chamado Quarteto Em Cy, com arranjos de Carlinhos Castilho e Eumir Deodato.
"A primeira modificação aconteceu em 1966, quando nossa irmã mais nova, Cylene, saiu do grupo para se casar com um médico do interior de São Paulo. Foi morar por lá e até hoje segue a carreira de pedagoga, ligada a universidades locais. Em seu lugar entrou Regina Werneck, que além da afinação musical, era nossa amiga e esposa do violinista e arranjador do grupo na época, Oscar Castro Neves", conta Cynara. Em 1967 o Quarteto foi para os Estados Unidos fazer uma temporada de shows na emissora NBC, de Los Angeles, junto com Marcos Valle. "Ficamos lá uns sete meses, voltamos e teríamos que retornar para lá, para darmos prosseguimento ao trabalho, mas, porque estávamos com casamento marcado, eu e a Cybele preferimos sair do grupo, e aí foi a segunda modificação", relata Cynara.
As irmãs foram substituídas por Sônia e Cymiramis, ficando somente Cyva da formação original do grupo, seguindo para os Estados Unidos para uma temporada que durou três anos. No entanto, durante esse período Cynara e Cybele não abandonaram a vida artística, ao contrário, formaram uma dupla de sucesso que venceu, em 1968, o III Festival Internacional da Canção, interpretando Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, sendo que no ano anterior haviam ficado em segundo lugar, defendendo a música Carolina, de Chico Buarque. "Sabiá venceu tanto a parte nacional do festival como a internacional. Isso muito nos projetou", diz Cynara com orgulho.
Mas, apesar do sucesso da dupla, Cynara resolveu voltar a fazer parte do Quarteto, no lugar de Cymiramis, quando esta voltou dos Estados Unidos, em 1970. A formação ficou então com Cyva, Cynara, Sônia e Dorinha, que havia entrado no lugar de Regina.Dessa forma, e sob a direção de Luís Cláudio Ramos, o Quarteto gravou seis discos.
Mais tarde, em 1980, a Dorinha saiu e Cybele também voltou, consolidando a formação que se mantém até hoje: Cyva, Cybele, Cynara e Sonia. Com essa equipe, que também tem Célia Vaz, desde 1983, na direção musical, as meninas já gravaram vários discos, muitos homenageando compositores como Vínicius de Moraes e Chico Buarque, juntando esses nomes ao Cy do Quarteto.
Resistência ao regime militar
Quarteto em Cy e MPB-4 |
Ao longo da carreira, o Quarteto juntou muita história para contar. Nos anos 60/70 trabalharam bastante com Vinícius e Toquinho, participando de festivais e de circuitos universitários, principalmente no interior de São Paulo. "Isso se deu com maior intensidade na década de 70. Era maravilhoso e os estudantes ficavam em ebulição, porque era época de ditadura e os protestos, muitas vezes, eram estimulados através da arte", fala Cynara.
Ela conta que os circuitos universitários eram programados pelos Centros Acadêmicos que, na época, era um foco de resistência de jovens politizados dentro das universidades. "Junto com Vinícius e Toquinho, percorremos todo o interior paulista com esses circuitos. Os jovens cantavam e vibravam, gritavam palavras de ordem, palavras de resistência ao regime militar. Ao término dos shows, um debate com intensa participação da platéia. Também nos apresentamos assim por todo o país", recorda.
"Fomos patrulhadas pela ditadura, porque cantávamos músicas de protestos, chegando até a ser censuradas. Uma vez, aconteceu com uma música do Milton Nascimento e Fernando Brant, chamada Credo. Outra, foi com Tamandaré, de Chico Buarque, que falava da desvalorização da nota de um cruzeiro, e tinha como estampa o almirante Tamandaré. Também vetaram a música O ronco da cuíca, de João Bosco e Aldir Blanc, que fazia parte do show Resistindo, e, em certa ocasião, impediram nossa apresentação no Programa do Chacrinha, porque iríamos cantar Pedro Pedreiro, de Chico Buarque", acrescenta.
Nos anos 80, a coisa começou a mudar e a alargar ainda mais o espaço para os ritmos estrangeiros e outros segmentos de cultura, especificamente aqueles vindos dos Estados Unidos, segundo ela, justamente porque a ditadura já havia se consolidado no país e a arte nacional estava fragmentada, dispersa, dilacerada.
"Mas, apesar disso, o Quarteto continuou sobrevivendo, sem nada mudar do seu estilo de grande coerência musical, cantando música de qualidade, com boa letra e harmonia", conta Cynara, lembrando que nunca precisaram de nenhum apelo, do tipo decotes e pernas de fora, para atrair um público, podendo muito se orgulhar de ter continuado a busca pela qualidade musical no Brasil.
A luta pela música brasileira
Para Cynara, na década de 90 a situação piorou. Todavia, o Quarteto continuou seu caminho. "Exatamente por sempre termos seguido uma coerência musical, conseguimos manter um público fiel. Permanecemos vencendo, vivendo da música. É claro, temos que lutar contra toda uma engrenagem para defender a nossa sobrevivência, o que chamo ‘matar um leão por dia', em um mercado pequeno para tantos segmentos. Mas continuamos vencendo e fazendo o que gostamos — que é cantar a boa música brasileira", comenta.
O Quarteto vem trabalhando muitíssimo (e bem!); basta ver a imensa discografia apresentada pelo grupo nos últimos vinte anos, por exemplo. Entre os maiores sucessos estão: Verdades e mentiras, 2002; A hora da criança, 2001; A arte do encontro — Vinícius de Moraes, com MPB-4, 2000; Gil & Caetano em Cy, 1999; Somos todos iguais, com MPB-4, 1998; Bate-boca, com MPB-4, 1997; Brasil em Cy, 1996; Tempo e artista, 1994 e Vinícius em Cy, 1993. "A nossa gravadora é genuinamente brasileira e nos dá oportunidade de realizarmos um trabalho de acordo com o nosso desejo", declara Cynara referindo-se a CID —Companhia Industrial de Discos.
Nos anos 90, o Quarteto divulgou a música brasileira na Europa, Estados Unidos, Japão e muitos países da América do Sul. "Entre outras, fizemos uma turnê de um mês pela Espanha, em 1992, porque fomos convidadas pelo Ministério do Exterior de lá, para cantarmos na comemoração dos 500 anos do descobrimento da América. Também viajamos, três vezes, para o Japão, que possui toda a nossa discografia editada, coisa que no Brasil ainda não existe", fala Cynara.
Nos shows pelo exterior, o Quarteto canta as mesmas músicas daqui e em português. "Em 1967 gravamos um disco com músicas brasileiras traduzidas para o inglês, nos Estados Unidos, mas, em contrapartida, eles gravaram um outro com músicas americanas traduzidas para o português. A música brasileira tem uma enorme aceitação no exterior. No Japão, por exemplo, temos um público cativo formado por jovens japoneses que, apesar de não falarem uma só palavra em português, aprendem o fonema e nos acompanham nos shows, cantando todas as músicas", comenta Cynara com orgulho, e acrescenta que os japoneses apreciam os ritmos brasileiros como choro, samba e bossa nova.
"Este ano, nós temos um projeto de reeditar em CD um show que fizemos em 1965, com Vinícius e Dorival Caymmi, na boate Zum Zum, Copacabana, em homenagem a esses dois grandes nomes da MPB. Se Vinícius estivesse vivo completaria 90 anos, este ano, e Caymmi completará 90 anos em 2004", finaliza Cynara.