Banho de sangue das últimas semanas coroa política de massacre da população pobre promovida por Alckmin e Saulo.
Arte: Alex Soares
Entre as incontáveis arbitrariedades praticadas contra a população pobre de São Paulo nas últimas semanas, está a expedição pelo Judiciário de um mandado coletivo de busca e apreensão em todas as residências do Jarbim Elba, localizado na região de Sapopemba, periferia leste da capital. Para os moradores, não se trata de uma novidade. No ano passado, o bairro já havia sido o primeiro cenário da estratégia de ocupação militar permanente das zonas periféricas denominada “saturação” no linguajar policial.
Habitado por empregadas domésticas, trabalhadores da construção, catadores de papel, o Jardim Elba é um dos locais mais pobres de São Paulo. Subindo as vielas ou descendo de helicópteros sobre os telhados, centenas de policiais da ROTA ocuparam o local na madrugada de 28 de agosto de 2005. A operação, oficialmente destinada a combater o narcotráfico, durou 50 dias. Segundo a Secretaria de Segurança, 4.797 pessoas foram “abordadas” apenas nas duas primeiras semanas. Considerando que o bairro tem 10 mil moradores, estes números revelam que o alvo era sua população.
Um dossiê elaborado pelo Centro de Direitos Humanos do Sapopemba (CDHS) e pela Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (ACAT) retrata o regime de terror imposto pela PM à comunidade. Um dos relatos mais impressionantes é o de R., catadora de papel, que, com um revólver na cabeça, viu sua filha G, de 5 anos, ser espancada durante uma revista a que a família arbitrariamente foi submetida ao buscar outro filho na escola.
Operação massacre
Na mencionada carta de 2004 aos juízes e promotores, o CDHS, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa e outras entidades já haviam denunciado “constantes agressões e violências policiais de toda ordem (…), espancamentos, prisões ilegais e sequer documentadas, invasões de domicílio, ofensas verbais e torturas físicas” por parte da polícia na região de Sapopemba, “atos geralmente cometidos contra pessoas pobres e indefesas, não raramente em locais ermos e à noite”. Diante dessas denúncias, o governo não apenas não cessou as incursões policiais como transformou-as em ocupação permanente.
O Jardim Elba foi apenas o primeiro cenário da estratégia de saturação. Depois, foi a vez das favelas Tamarutaca e Jardim Pantanal, em Santo André; Nova Tieta, Funerária e Cidade Nova, na zona norte da capital.
Elaborados pela Acat, Comissão de Direitos Humanos da OAB, Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito (Ilanud) e mais 17 entidades de defesa dos direitos humanos, os relatórios São Paulo: política de segurança pública ou política de extermínio? (setembro de 2003) e Pena de morte ilegal e extrajudicial (outubro de 2005), fornecem um bom retrato do conjunto da política de Segurança de Alckmin e Saulo, política que o ex-ouvidor da Polícia, Fermino Fecchio, qualifica como de matança.
Deles, extraem-se episódios como o ocorrido com Natália Glecimara Teixeira, de 15 anos. Na madrugada de 19 de outubro de 2002, ela conversava na porta de sua casa, no Jardim Presidente Dutra, em Guarulhos, com sua mãe, Tereza, dois primos de 15 e 17 anos e dois amigos, também adolescentes. Ao recolher-se para dentro de casa, Tereza ouve tiros. Finda a fuzilaria, sai à rua para ver o que acontecera. A filha, os sobrinhos e um dos amigos estavam mortos. Os assassinos eram policiais militares. Motivo: um dos rapazes discutira com um policial após ter o irmão de onze anos acusado de tentar furtar biscoitos em um supermercado. O velório é dissolvido por PMs à caça do outro jovem (que sobrevivera a treze tiros). Os familiares e amigos das vítimas são espancados e ameaçados de morte. Viaturas permanecem rondando a região e apontando faróis para as janelas de suas casas.
Fábio Rodrigues Francisco tinha a mesma idade de Natália. No dia 4 de julho de 2005, conversava com sua namorada no pátio do núcleo habitacional Jardim Portinari, em Diadema, onde morava, quando um policial militar obrigou o casal a deitar-se no chão sob a mira de uma arma. Após revistar os dois e nada encontrar, o PM dá um tiro para o alto. O irmão de Fábio, Eduardo, protesta e ameaça denunciá-lo à corregedoria. A faxineira Teresa Rodrigues Farias, mãe dos dois, também acorre em defesa de Fábio. Duas horas depois, chegam seis policiais militares que algemam, espancam e matam Eduardo e disparam cinco tiros contra Fábio. Teresa, aos prantos, ajoelha-se diante dos corpos dos filhos e é crivada de balas.
Casos assim são o resultado habitual de incursões policiais pelas zonas periféricas de São Paulo. Chacinas promovidas por policiais encapuzados — como a ocorrida no dia 2 de julho de 2005 no bairro Recanto Feliz, em Francisco Morato, na região metropolitana da capital, quando quatro homens foram mortos num bar — fazem parte do dia a dia. “Bandido pelo menos mostra a cara” — ouve-se comumente dos moradores destes locais.
A situação piorou após os ataques atribuídos ao PCC. Em 16 de maio, cinco civis desarmados e sem antecedentes criminais foram mortos por policiais usando máscara ao sair de um bar no Capão Redondo (zona sul da capital). A dimensão oficial da política de matança confunde-se com a dimensão encoberta: a estratégia de saturação incorpora o anonimato, já que os policiais que ocupam as favelas atuam sem tarja de identificação.
Como na Palestina
Reduzida às dimensões de um desenho que buscasse retratá-la esquematicamente, a cidade de São Paulo — considerada no geral com sua região metropolitana — poderia ser representada como um conjunto de três ou quatro dezenas de círculos intersecantes. Cada um destes círculos divide-se em anéis concêntricos.
Passando das dimensões do desenho às da cidade, veremos que o anel central é sempre o melhor bairro ou região daquele círculo — o que tanto pode significar que é riquíssimo como apenas razoável. À medida em que nos afastamos do centro, aumenta a pobreza. Passa-se pelos bairros pobres, carregados de concreto e fuligem. Depois, as favelas com casas de alvenaria. Por fim, chega-se a favelas com barracos de madeira ou papelão, onde corre esgoto a céu aberto, a iluminação é pior do que precária e a escola, hospital, delegacia ou área de lazer mais próximos estão a algo como uma hora.
Destes locais paupérrimos, o monopólio da imprensa, quando muito, sabe os nomes: Jardim Pantanal, Jardim Portinari, Morro Feliz, Tamarutaca. Locais que são convertidos em guetos e cujas populações vivem uma situação de terror que, pela condição das vítimas (civis desarmados), pelo caráter permanente e pelos meios empregados, talvez só encontre paralelo na Palestina ocupada.
Mesmo onde a matança ainda encontrava limites antes dos acontecimentos de maio, invasões de domicílio, extorsões, espancamentos e ameaças haviam se tornado coisa corriqueira. Já se tornou rotina a polícia parar, durante a madrugada, ônibus e peruas que se dirigem ao ABC ou ao extremo leste da cidade para revistar os passageiros. Em algumas cidades da região metropolitana, muitos jovens têm medo de ir à escola à noite devido a espancamentos e maus tratos por parte da PM na saída das aulas.
A atividade policial em São Paulo segue um padrão moldado nos anos 60/70.
A PM foi criada com um claríssimo viés ideológico: as 18 estrelas de seu brasão de armas homenageiam a participação de sua antecessora, a Força Pública, na repressão a movimentos populares como Canudos, a Revolta da Chibata e a greve de 1917. Dentro dela, a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) é organizada com o claro intuito de militarizar a repressão social. Suas incursões noturnas passaram a semear terror nos bairros periféricos que iam se formando fora do raio de atuação da imprensa e de todas as funções públicas.
No livro ROTA 66, o jornalista Caco Barcellos atribui-lhe pelo menos 12 mil assassinatos, entre 1970 e 1992. Na gestão Alckmin/Saulo, porém, a situação chegou a um ponto que, pelo caráter permanente, pelo grau de arbitrariedade e violência envolvidos e pela condição das vítimas (civis desarmados), só encontra paralelo na Palestina ocupada.
Crimes de guerra
É esta lógica de guerra que explica alguns dados tétricos. Dos 12 mil mortos da ROTA, Barcellos identificou 4.200. Destes, 680 eram crianças entre 7 e 11 anos, em geral executadas com um tiro na nuca. A transformação da Febem (em especial quando foi presidida por Saulo, em 2001) em campo de concentração e tortura de jovens (principalmente as unidades de Franco da Rocha) e as recorrentes denúncias de extermínio de crianças e adolescentes de rua fazem parte desta orientação bélica.
“A doutrina de segurança nacional que constituía o substrato da ordem constitucional de exceção imposta pelo regime militar foi apenas adaptada, e não revogada” — avaliam as entidades que subscrevem São Paulo: política de segurança pública ou política de extermínio?
Não se sabe ao certo o alcance deste Esquadrão da Morte oficial. Em seu depoimento a Hélio Bicudo por ocasião do caso Castelinho, o presidiário Marcos Massari — atualmente desaparecido — denunciou que a PM mantém um cemitério clandestino. Relatos de que suas vítimas são jogadas em valas são frequentes entre jovens de rua da região central. Há pelo menos um precedente: o cemitério de Perus, distrito no extremo oeste da cidade, onde, em 1990, foram descobertas mais de mil ossadas sem identificação. Algumas eram de desaparecidos políticos; a maioria, de vítimas da ROTA. Anderson Mangolin denuncia que muitos internos que a Febem diz terem fugido durante as rebeliões foram na verdade executados.
Sangue pelas ruas
O hipercentro da capital — onde, nos últimos anos, trabalhadores sem moradia ocuparam muitos imóveis abandonados — também tem sido testemunha de ações violentíssimas, como a que ocorreu na rua Plínio Ramos, no dia 16 de agosto passado, quando policiais do Batalhão de Choque da PM atacaram os moradores com bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e cassetetes; destruíram seus pertences; confinaram e torturaram alguns dentro do prédio. No final, o saldo foi de vários presos e feridos. Não havia maior resistência que um cordão humano de aproximadamente 200 pessoas à frente do prédio. Este quadro piorou muito após a eleição do tucano José Serra para a prefeitura. Serra pretende “revitalizar” a região entregando-a à especulação imobiliária.
Outras vítimas da concepção urbanística tucana e da unidade de ação estabelecida entre prefeitura e estado são os vendedores ambulantes que trabalham na região central. No dia 9 de fevereiro, a Guarda Civil Metropolitana (GCM) apreendeu as mercadorias do vendedor Marcelo Marinho e levou-o preso. Marcelo não saiu com vida do camburão.
Mas nada se compara ao que se passou nas ruas entre a Praça da Sé e a Liberdade, centro de São Paulo, entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004. Quinze mendigos foram atacados a porretadas por policiais militares. Sete deles morreram.
Questionado à época pela imprensa, Saulo disse que os moradores de rua provavelmente estavam matando uns aos outros, já que não teriam “freio limitório”. Mesmo se tratando, na opinião de Hélio Bicudo, de uma ação dos baixos escalões da polícia, manifestou-se mais uma vez a cumplicidade do Judiciário: o juiz do caso, Richard Chequini, teve seu afastamento pedido pelo Ministério Público por proteger os policiais e colocar em risco a vida das testemunhas. Uma delas foi morta e outra está desaparecida.
Movimentos acossados
Militantes de organizações de defesa dos direitos humanos são vítimas constantes de ataques e ameaças de todo tipo. Valdenia Paulino, do CDHS, está sob proteção da Polícia Federal. Maria de Lourdes Escarpi, líder comunitária do Jardim Pantanal, denunciou à Corregedoria da polícia atos de violência praticados por PMs em seu bairro e é alvo de rondas constantes à porta de sua casa. Conceição Paganelle, líder das mães dos internos da Febem, já sofreu três tentativas de assassinato. Em outubro de 2005, Alckmin acusou Conceição e o advogado Ariel de Castro Alves, do Movimento Nacional de Direitos Humanos — que denunciavam a tortura de adolescentes — de incitar rebeliões entre os jovens. Em abril deste ano, reiterou os ataques.
O entrelaçamento entre a repressão social e a política expressa-se também no trato do governo com os movimentos populares. Em 5 de janeiro de 2006, a pretexto de procurar uma arma, a polícia invadiu a comunidade Carlos Lamarca, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, em Osasco, usando bombas e metralhadoras. Moradores foram revistados e espancados. Alguns reagiram atirando pedras e uma mulher que tentava apaziguar o confronto foi tomada como refém pelos policiais, que ameaçavam “estourar seus miolos”. Este tipo de ação foi intensificado após os atentados das últimas semanas.
A ocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos, foi atingida com particular violência. As polícias Civil e Militar invadem quase diariamente o acampamento sem ordem judicial, destroem casas e ameaçam moradores. Aos pretextos de sempre — a busca de armas e drogas —, junta-se agora o combate ao PCC. As vítimas também são as de sempre: a população civil, pacífica, indefesa e desarmada das periferias.